Obras-Primas na Sede, 5ªf 10 - VIRIDIANA, de Luis Buñuel, o Herege.

21h30. Entrada livre. Cerveja ou água a 1€...

Ciclo "Buñuel, o Herege", antecipando a Conferência sobre este realizador que será proferida pelo Dr Reia Baptista no próximo dia 6 de Junho, na Sede, integrada no Projecto "Livros em Cadeia" (iniciativa com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian).

Se há filmes «malditos», Viridiana é um deles. Em contrapartida, porém, o génio de Luis Buñuel conseguiu ultrapassar essa maldição inicial e transformá-lo numa das datas maiores da história da cinematografia mundial. Senão, vejamos.

Radicado no México, há longos anos (precisamente desde a época em que Franco assumiu o poder em Espanha), exilado por vontade própria, Buñuel não tinha voltado a pisar terra pátria desde fins dos anos 30. No que era acompanhado por outros «gigantes» como Picasso ou Casals. Quando em 1960 surge a noticia de ter aceite filmar em Espanha o seu próximo filme, para uma casa produtora dirigida por Bardem e Munoz Suay, os antifascistas espanhóis colocaram logo as mais negras hipóteses de capitulação por parte de Buñuel. O cineasta aceita entregar à censura a planificação do seu filme, aceita conversações, aceita mesmo alguns retoques no fim e principia as filmagens. Resta acrescentar que, pela parte mexicana (dado que o filme surgia como co-produção), se encontrava o jovem produtor Gustavo Alatriste.

Em princípios de 1961, com Buñuel em França, ultimando trabalhos de montagem e sonorização, Viridiana é convidada a participar no próximo Festival de Cannes, a titulo individual. Atendendo a que mais nenhuma outra obra espanhola se fazia representar na edição desse festival, Viridiana é assumida como «representando oficialmente a Espanha». No último dia do certame, nas sessões de encerramento, Viridiana é projectada e obriga o júri a voltar para trás com os prémios já estabelecidos. Dizem os livros que destas coisas se ocupam, que o palmarés de Cannes-61 só no dia seguinte ao do encerramento se conheceu, e Viridiana via-se colocada à cabeça, conquistando exaequo a palma de ouro, com Une aussi longue absence, de Hénri Colpi, e Madre Joana dos Anjos, de Jerzy Kawalerowicz.


O representante oficial da Espanha, José Munoz Fontan, director geral da cinematografia espanhola, recebe visivelmente envaidecido o galardão máximo, mas, na manhã do dia seguinte, L'Osservatore Romano mimoseia a obra com adjectivos como «sacrílega e blasfematória». O que alerta Franco: na Imprensa espanhola ficam proibidas todas as referências à película; as autoridades pretendem destruir o negativo, apagar Viridiana da história.

As pressões diplomáticas exercem-se em todos os campos, mas Viridiana sobrevive. Alegando o estatuto de co-produção, a obra consegue ultrapassar esta tempestade, sem que, todavia, lhe seja permitida autorização para tiragem de cópia e consequente exploração comercial. Somente em 1962, e sob a nacionalidade integralmente mexicana, ela conseguiu vencer a barreira e atingir o público de todo o mundo.

Irreverente e rebelde como poucos, Buñuel partiu para Viridiana unicamente com algumas, ideias, sugestões, imagens. Ele próprio confessa que lhe veio à ideia o significado de Viridiana, uma santa muito pouco conhecida, da época de São Francisco de Assis. E ainda «a imagem de um velho com uma jovem drogada, completamente à sua mercê». Foi a partir desse enublado inicial que Viridiana se construiu, à boa maneira de um poema surrealista que vai buscar a lógica do seu significado à forma complexa e inconsciente como as imagens se articulam, gerando-se umas das outras, por prolongamento, por oposição, por sugestão, por ruptura.

Para Buñuel qualquer argumento é uma boa base de trabalho. Aqui, os infortúnios de uma noviça que, dias antes de professar, e a conselho da madre superiora, vai visitar um velho tio, que a educara, a sustentara e lhe enviara já o «dote». Na herdade do tio, os «avanços» deste são visíveis. Com a cumplicidade de uma criada, propõe-lhe casamento. Perante a recusa, engendra um noivado fictício que permite desfrutar Viridiana inconsciente. No último momento detém-se e acabará enforcado numa corda de saltar. Perturbada, Viridiana recusa regressar ao convento, passando a viver, juntamente com um filho ilegítimo do tio, na herdade deste. A parte que lhe toca da velha casa transforma-a num asilo para mendigos e necessitado que, numa noite de orgia, subvertem toda a ordem reinante. Reocupados os lugares, Viridiana assume finalmente (?) o seu corpo e aceita intervir num estranho jogo, cujos "partenaires” são o primo e a criada.


Como quase sempre em Buñuel, a obra parte de uma estrutura dramática que se aproxima em muito do romance picaresco ou do melodrama. Uma multiplicidade de peripécias sobrecarregam as personagens em constantes situações novas. Mas haverá que acrescentar a tudo isto a mordacidade crítica, a virulência, a aposta algo blasfematória (L 'Osservatore Romano dixit) deste ateu moralista que não recua perante nada, subvertendo a ordem instituída, recriando um universo de monstruosidades sobre as aparências serenas da normalidade. Neste aspecto Viridiana é o despoletar, de resultados sempre imprevisíveis, de uma realidade comummente aceite como estável e que subitamente se pulveriza sob o efeito fragmentador da análise lírica e trágica de um poeta visionário.

Denúncia de uma certa caridade individual que nada resolve (admiravelmente exemplificada a dois níveis: o cão preso, à carroça que é libertado, enquanto outros passam em direcção contrária; o asilo de mendigos, criação de Viridiana), este filme de Buñuel demonstra bem a genialidade do seu cinema.
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Lauro António, Sete, 31/08/88


Luís Buñuel conseguiria voltar a Espanha após longos anos do exílio do terras do Franco. Um produtor arranjara-lhe condições para que pudesse trabalhar do novo na sua terra natal. Era uma oportunidade que não podia desperdiçar. O argumento foi, no entanto, "reajustado” várias vezes, o final do filme refeito, mas Buñuel nunca traiu a sua vontade indómita de dizer o que sentia, e o desfecho de todo o processo foi a sua total interdição Buñuel não mais voltaria a filmar em Espanha.

Transcorridos que são quinze anos sobre a sua feitura "Viridiana" aparece-nos intacto ao tempo, filme de hoje o até (infelizmente) de amanhã. Esta é a fronteira exacta que separa a obra prima da encomenda de cordel que se perde a seguir à palavra “Fim”. Uma resposta presente a um tempo que não passou. A acusação certa e incisiva apontada a um quotidiano que se repete.

"Viridiana” tem uma narrativa aparentemente simples. Filme “racional”, se quisermos, e se pensarmos noutros exemplos do fascinante e surreal loucura como "A Bela do Dia", "O Charme Discreto da Burguesia" ou "O Fantasma da Liberdade".



Viridiana é uma freira que não chega a professar os votos. Devolvida ao mundo dos homens, deixa para trás um "marido" omnipresente e omnisciente, um casamento desfeito, para reencontrar os males da sociedade, as desgraças dos desventurados, os crimes da classe dominante, opressora e exploradora, numa palavra, a realidade da vida. Consigo transportará somente objectos santificados pelo texto do Evangelho (Novo Testamento ), sinais de penitência permanente, de renúncia aos bens materiais, de fé inabalável, de eterna fidelidade ao seu credo: uma pesada cruz, uma pedra, um martelo, pregos e uma coroa de espinhos. Mala aviada para o que der e vier, não vá o diabo tecê-las!

D. Jaime, por sua vez, é um velho aristocrata, homem crente e muito "digno" proprietário de enormes latifúndios (por certo obtidos com a graça de Deus Nosso Senhor!). Fantasma Vivo do uma casta decadente, de um casamento não consumado (tal como Viridiana) verá na sobrinha a imagem devolvida da sua virgem esposa. Incapaz do esquecer a sua sorte, terá no voyerismo inofensivo, ou em mutações eróticas do travesti e feitichismos vários a busca do prazer que nunca conheceu. Viridiana por seu lado vai descobrindo a vida entre os homens, a força da natureza criadora.


Evitará o contacto com a apetecível teta de uma vaca numa evidente fuga à sedução e fascínio que sobre si exerce esse símbolo fálico, mas não escondendo a sua perturbação, violenta tontura do uma vertigem queda em precipício do "pecado mortal". Cena de antologia na galeria do provocações em que Viridiana vai abrindo aos nossos olhos. Mas Viridiana não regressará ao convento, presa que ficou numa cumplicidade auto-atribuída após o suicídio (enforcamento) de seu tio. Escolherá para a sua efémera passagem pala terra o caminho "difícil" da ventura e da caridade, ajudando os pobres, ganhando o seu lugar no império dos céus. A sua fraca consciência leva-a a actuações piedosas despidas do racionalismo. A sociedade está dividida em classes e os oprimidos não se libertarão pelo facto do lhes darmos esmola, de "fazemos bem". Viridiana não vai (não pode ir) tão longe. Age pelos ensinamentos das Sagradas Escrituras. E não de todas. A Inquisição e as Guerras Santas, a gula e a opulência, a opressão e a violência, são "conquistas" da Santa Madre Igreja contra os pensamentos do Cristo.

Por fim, os pobres que Viridiana acolheu em casa, incapazes que são duma revolta consequente, aceitando passivamente essa sua condição, figuras que referem a um grosso exército de proletariado de estropiados, cegos, anões, leprosos e vagabundos de faces várias, decidem-se a uma última ceia. Montam um forte aparato em casa dos "senhores", ocupando a mesa, os talheres, as pratas, o vinho. Lauto repasto em mesa que requeria a tela de Leonardo da Vinci, não em pose para pincel ou fotografia mas para um sexo de mulher... "Viridiana" não se esgota numa leitura, como não se adivinha a sua profundidade com uma única visão. Buñuel tenta assim uma abordagem destruidora do clericalismo (mais do que da religião),das suas mentiras, da sua pompa, do falso "bem querer" e "bem fazer" de que está corrompida a caridade cristã, chamando a atenção para os valores que encobre, para a realidade que mistifica... Buñuel, a Espanha dos toiros, do sol e da violência que paira em cada sombra, o calor do seu erotismo, a religião de que o fascismo se utiliza, a Igreja conselheira de um regime e justificadora da exploração, ,são alguns dos elementos que perpassam pelo filme...
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Mário Damas Nunes, Boletim Cineclube de Faro, Abril 1979



(para ver, carregue na imagem)

Realização: Luis Buñuel
Argumento: Luis Buñuel e Julio Alejandro
Fotografia: Jose F. Aguayo
Montagem: Pedro del Rey
Música: Gustavo Pittaluga
Interpretação: Silvia Pinal, Francisco Rabal, Fernando Rey, Jose Calvo, Margarita Lozano, Luis Heredia
Origem: Espanha/México
Ano: 1961
Duração: 90’

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