5ª
F, 06 Novembro 2012, 21:30, "DEZ"
ABBAS KIAROSTAMI, IRÃO, 2002
Ficha técnica:
Título original: Ten
Título em português: Dez
Realizador: Abbas Kiarostami
Actores: Mania Akbari e Amin Maher
Género: Drama
Distribuidora: Atalanta
Produção: França/Irão
Ano: 2002
Duração: 94 minutos
NOTA
DE INTENÇÕES
NOTA
DE INTENÇÕES
Às
vezes digo-me que DEZ é um filme que não poderia voltar a fazer. Não se pode
decidir fazer um filme assim... Parece-se um pouco com Close-Up. É possível
continuar nesta via, mas é preciso muita paciência. De facto, não se trata de
uma coisa que se repete facilmente. Deve acontecer por ele próprio, como um
incidente ou um acontecimento... ao mesmo tempo precisa de muita preparação.
Inicialmente era a história de um psicanalista, os seus doentes e o seu carro,
mas isso foi há dois anos...
Fui
convidado na semana passada para ir a Beirute, no Líbano, a um “workshop” com
estudantes de cinema. Um deles disse-me: “Só tu podes fazer um filme assim por
causa do teu nome. Se fosse um de nós a fazê-lo, ninguém o teria aceitado”.
Respondi-lhe que enquanto professor devia dizer-lhe a verdade: fazer uma coisa
simples necessita de uma boa dose de experiência. E antes disso é preciso
compreender que a simplicidade não é sinónimo de facilidade.
Kundera
conta uma história fascinante que me impressionou imenso: ele conta que o
léxico do pai diminuiu com a idade e que no fim da vida se resumia a apenas
duas palavras: é estranho! é estranho! Evidentemente, ele não chegou a este
ponto porque não tinha mais nada para dizer, mas porque estas duas palavras
resumiam efectivamente toda a experiência da sua vida. Eram mesmo a sua
essência. É talvez também a história do minimalismo...
O
desaparecimento da mise en scène. É disso que se trata. O abandono de todos os
elementos indispensáveis ao cinema actual, e digo com muita prudência que a
mise en scène, no sentido actual do termo, poderia desaparecer neste género de
processo. O realizador neste cinema parece bastante um treinador de
futebol. Tem de fazer a maioria do
trabalho antes do processo começar. Para mim o filme começa muito antes da
preparação inicial e quase que nunca acaba. É um jogo perpétuo, cada vez que o
mostro, observo as reacções do público e cada uma das vezes as discussões que
se seguem à sessão adquirem um novo sentido... Toda a beleza da arte resume-se
para mim às reacções que suscita.
Este
filme foi criado sem propriamente ser fabricado. Sem ser, no entanto, um
documentário. Nem um documentário, nem um filme puramente fabricado. Talvez a
meio caminho entre as duas coisas... Uma cena acontece e eu percebo que ela me
convém. Mais tarde apercebo-me que aquele elemento particular era fundamental
para a integração do todo.
Em
DEZ, temos um plano no carro com o rapaz em frente à câmara. A cena acontece
perante a câmara. Há, no entanto, pessoas que se aproximam, baixam o vidro e
olham para dentro do carro. Isso é documentário. É o que se passa por trás.
Eles olham a câmara. Mas o que se passa à frente da câmara não é documentário,
porque é guiado, controlado, de alguma forma. Aquele que está à frente da
câmara esquece a sua presença, ela desaparece. A emoção é criada desta forma,
como o resultado de uma certa quantidade de energia e de informações que damos
para recuperar mais tarde. Que circulam... Daí a complexidade da situação. Este
fluxo deve ser controlado de forma a que seja libertado no momento certo.
Não podemos
prometer a nós mesmos voltar a fazer um filme assim. É como oscilar nas suas
convicções e ideias bem estabelecidas, às vezes é mais fácil protegermo-nos com
a velha mise en scène, a paisagem, o cenário...
Se me
perguntassem o que fiz enquanto realizador deste filme, responderia: “Nada, e
no entanto se não existisse, este filme também não teria existido”.
Em
todos os meus filmes, há planos em que o impacto emocional ultrapassa a
realização, triunfa sobre ela, e a emoção torna-se mais forte que o próprio
cinema. Há um plano em O Sabor da Cereja, em que M. Badii ao falar de si
próprio não quer deixar fugir a emoção. Então fica com os cantos da boca a
tremer. São planos que não tenho a pretensão de ter feito. Eles merecem mais do
que isso. Soube provocá-los e captá-los no momento certo. É só.
Este
filme são as minhas “duas palavras”. Que resumem quase tudo. E digo quase,
porque já estou a pensar no meu próximo filme. Talvez um filme numa só
palavra...
Abbas
Kiarostami
ENTREVISTA COM O REALIZADOR
DEZ é
o contrário de “ABC África” onde a câmara digital permite um desdobramento da
sua presença. Em DEZ, perguntamo-nos onde está durante a rodagem?
Se
realmente quer saber onde é que eu estava efectivamente, respondo-lhe mais
tarde. A câmara está fixa. Pelo menos em metade do filme desapareceu,
eliminámo-la. Compreendo melhor Bresson e o que ele sentia pela câmara fixa,
porque agora sei que muitas coisas podem acontecer neste género de situações. A
partir do momento em que o artista é obrigado a mexer-se, perde um pouco a
realidade das coisas... A câmara pode mover-se naturalmente, mas na maioria das
vezes é um constrangimento e sente-se de imediato. Os actores não profissionais
estão mais à vontade porque a câmara não se mexe. O diálogo pode então
acontecer livremente. Fiquei muito impressionado com a interpretação da mãe e
do filho. Quando eliminamos o grupo de pressão, conseguimos eliminar o próprio
realizador, num momento particular. É preciso exercer a função de realizador
antes do início da rodagem. Semanas e meses antes, é preciso começar a
trabalhar e, quando começa a rodagem, é preciso apagarmo-nos, desaparecer. É o
que eu faço. Como um treinador de futebol, é preciso preparar bem o grupo antes
do início e quando eles começam a jogar, é só preciso olhar e verificar.
No final de O Sabor da Cereja, há uma contagem
decrescente: 10, 9 , 8, 7, 6, 5, ... Como se o vídeo fosse qualquer coisa que
vem depois do cinema, qualquer coisa de post mortem. Em DEZ, há uma
reapropriação do que o vídeo pode trazer de positivo. É uma contagem
decrescente como se fosse começar um filme verdadeiro.
Exactamente,
mas utilizei a câmara digital de forma diferente. Em O Sabor da Cereja era só
um instrumento para tirar notas. Mas no fim do filme, percebi que este
instrumento podia mostrar a intensidade do momento. Em O Sabor da Cereja, esta
utilização da câmara digital não era intencional. Tínhamos esse filme na
câmara, podíamos não ter olhado para ele. No momento da montagem, percebemos
que isso se poderia introduzir no fim. Era uma espécie de documento, como um
certificado de nascimento que pode ser maltratado ou rasgado. Às vezes é bom
que a qualidade não seja muito boa porque parece mais natural. Em DEZ, a minha
intenção não era criticar a câmara de 35 mm, mas sim a forma como ela é
utilizada. Ela tornou-se realmente o símbolo do Cavaleiro do Apocalipse.
A câmara digital permite distanciarmo-nos da tecnologia e da indústria do
cinema, evitá-las. Quando trabalhamos com os capitalistas, aqueles que metem o
dinheiro, estamos sob pressão, pedem-nos contas. Renunciámos a isso. O cinema
não precisa de tantos instrumentos. No entanto, são os cineastas que estão sob
pressão dos instrumentos do cinema, que os devem utilizar de uma forma ou
outra.
Em O Sabor da Cereja, a câmara está tanto no lugar do
condutor como do passageiro. Em DEZ, o espectador está no exterior, os
protagonistas parece que não falam com ele. Ele nunca está no lugar deles.
Isso
corresponde a eliminação do autor. Um dia fizeram-me um elogio involuntário que
me impressionou bastante. Apresentaram-me a uma pessoa, dizendo “aqui está o
realizador de ‘Close Up’”. O tipo, que não era uma pessoa da área do
cinema, respondeu: “Ah, pensava que esse filme não tinha realizador!”
Achei esta ideia sublime. Foi isso que tentei fazer com DEZ.
Acredita que o objectivo último do cinema é chegar, pelo
falso, a fazer sentir a essência da vida? Essa sensação de verdade pode
conseguir-se sem truques, sem manipulação?
A
realidade só é possível entre duas pessoas, basta haver uma terceira pessoa
para que tudo mude. Sobretudo se essa terceira pessoa é o realizador e está a
filmar. É preciso então encontrar uma solução para os levar, de certa forma,
para a sua verdadeira realidade. Para mim, a realidade filmada já não é real.
Então os truques só permitem regressar à normalidade que normalmente não
conseguimos filmar.
Porque é que decidiu fazer DEZ? Viu esta mulher, teve
vontade de ser o passageiro e ouvi-la falar?
Nem por
isso, porque a ideia de ela estar ao volante é minha. Estes diálogos podiam ter
acontecido há 20 anos. De qualquer forma, os diálogos não são meus. Não é pura
criação, apenas uma utilização de colectânea de vários anos. O conjunto
torna-se sim um criação. Mas o carro, não foi eu que o fiz, esta mulher, não
fui eu que a criei, e este diálogo é normal, ouvimo-lo muitas vezes. Não fui eu
que fabriquei estas relações. Tudo isto se passa à nossa volta, mas quando
entra numa imagem particular torna-se uma criação. (...) Perguntou-me se para
dizer a verdade eram necessários truques. Efectivamente não há limites para
isso. (...) O nosso truque foi tentar apagarmo-nos. (...) Sempre trabalhei
assim, mas acho que desta vez esse trabalho foi mais conseguido graças à câmara
numérica que nos permitiu apagarmo-nos e ficar distantes mais facilmente.
.......
por Patrice Blouin e Charles Tesson
Cahiers du Cinéma, Setembro de 2002
DEZ
RAZÕES PARA AMAR DEZ
por
Olivier Joyard e Patrice Blouin
Cahiers
du Cinéma, Junho de 2002
10.
A COMPETIÇÃO
A
palavra tinha desaparecido do vocabulário de Kiarostasmi desde O VENTO
LEVAR-NOS-Á, apresentado em Veneza em 1999. O cineasta previa não voltar a
aparecer em festivais a não ser como estrela convidada. Não teria ele nada a
ganhar ou a perder na confrontação com outras propostas de cinema? Pior, não
teria ele nada a opor-lhes? A presença de DEZ em Cannes desmente
radicalmente esta suposição. A sua ausência do palmarés não muda nada. Filmado
em DV, como ABC AFRICA, estes 94 minutos cortados em dez quadros são uma
resposta violenta ao conjunto do cinema contemporâneo, antes de mais marcada
pela escolha de uma estrutura inédita: as cenas são separadas pela contagem
decrescente dos números que, normalmente, vemos passar no início dos filmes que
ainda não estão montados. DEZ termina no número 1 quando, noutra parte
qualquer, o cinema ainda não começou.
9.
O DISPOSITIVO
Em
DEZ tudo tem um ângulo. Na parte da frente de um carro, Kiarostami colocou duas
câmaras, uma apontada para a condutora inalterável, outra para o passageiro – à
vez, o filho, uma velha religiosa, uma prostituta, duas amigas. Este
dispositivo, os espectadores do Canal Jimmy já o conhecem. É (mais ou menos) o
da emissão de “La Route” que propõe a dois convidados célebres que se conheçam
enquanto viajam. Primeira questão (sem interesse): o que faz um conceito
televisivo num cineasta iraniano? Segunda questão (infinita): como é que o
dispositivo funciona aqui de forma bruscamente inesperada? É aí que com DEZ nos
perguntamos se os dispositivos não serão também um assunto de moral.
8.
A PALAVRA
Aqui
as pessoas falam pelos cotovelos como em Rohmer e são inteligentes como em Oliveira.
Palavras normais mas que importunam os lugares comuns, invertendo as
implicações do poder, aparecendo sempre onde não se está à espera: de certa
forma, só existem elas.
7.
O PRINCÍPIO DA INCERTEZA
É
impossível destacar apenas um único assunto, porque o conteúdo e o tom das
conversas está sempre a mudar, violentamente contraditórios – com o rapaz -,
amorosamente calmas – com as amigas – ou ironicamente desinteressado – com a
mulher mais velha. É ao longo de cada sequência que a intensidade sobe ou baixa,
que as vozes se misturam ou separam. DEZ, sequência de monólogos ou série de
disputas? Estamos no Big Brother ou na Ágora? E Kiarostami: escreveu um
argumento ou só sugeriu temas de conversas, ruas, semáforos onde parar, sítios
onde virar? São possíveis horas de conversa. “Tenho o papel de um treinador de
futebol”, disse ele, “quando o jogo começa, deixo de intervir”.
6.
O TRIÂNGULO
Graças
à constância do dispositivo, o poder é esticado, trocado, partilhado, entre o
espectador, as personagens e o cineasta, que inventam, cada um deles, uma
posição e combinações de pensamento novas. Estamos colados ao pára-brisas do
carro, mas também imaginariamente sob o véu da heroína. Ao mesmo tempo
cativados e desatentos, podemos, nalguns momentos, contemplar a palavra como
uma cor ou um barulho, e escutar o corpo como um discurso em si. A condutora
abandona o seu papel, eventualmente unívoco, de “mulher iraniana” ao erotizar a
forma como ajeita o lenço quando este cai. Kiarostami assumiu claramente a
liberdade de mudar de sexo – a condutora usa os óculos de sol que são a marca
certificada de todos os seus duplos no ecrã. Que trio!
5.
O SORRISO
Insultada
pelo filho que não suporta que ela se tenha divorciado sem ter vergonha,
incomodada por uma velha que fica surpreendida por ela não a acompanhar à
mesquita, a condutora é um grande corpo político uma vez que nunca se desfaz do
seu sorriso flutuante. A sua sedução é a sua resistência.
4.
A REVELAÇÃO
Num
dos últimos planos, uma jovem baixa o véu e mostra, com precaução, o seu cabelo
rapado. Uma cabeleira perdida por um desgosto de amor. Um pouco antes, nesse
mesmo lugar, uma prostituta, entre duas gargalhadas histéricas, diz que não se
preocupa com o sexo. Antes dela, uma velha oferece-se para guardar o carro para
a condutora ir rezar. No carro-cinema de DEZ, as pessoas revelam-se sem se
despirem, como que protegidas pela ausência do olhar atrás da câmara.
3.
A TRAVESSIA
Quando
a condutora estende a mão para a passageira e limpa uma lágrima da amiga,
aparece uma emoção enorme e imprevista. Até aí este gesto simples de atravessar
o enquadramento nunca tinha acontecido. O dispositivo estanque de DEZ
estende-se pela primeira vez. Esta mudança brusca revela o que podíamos ter
notado sem o ver: não há afrontamentos entre o interior e o exterior – as ruas,
em segundo plano, desfilam indiferentemente, tal como o dia e a noite -, mas
apenas entre os dois lugares. O fora de campo esta literalmente no meio do
carro, cortando o plano ideal em dois.
2.
O ALÉM-TÚMULO
No
fim de “O Sabor da Cereja”, Kiarostami
enterra o realizador e com ele o cinema tal como o conhecíamos. O vídeo aparece
simplesmente como o que “vem depois” em alguns planos de um suposto making-of.
“ABC África” construiu-se seguindo a facilidade de utilização e deslocação que
permitia a DV, como um diário de viagem. (...) Em DEZ o vídeo encontra o seu
verdadeiro sentido. Supressão do corpo do realizador, acrescento de um
dispositivo fixo, regresso primeiro e definitivo à vida.
1.
O CONTEMPORÂNEO
Antes
de vermos DEZ, concebíamos o cinema contemporâneo na linha de “Disponível para
Amar”, “Mulholland Drive”, “Millennium Mambo”: um longo oscilar musical
hesitando com beleza entre autismo e esquizofrenia. Kiarostami mostra, numa
proposta única e inédita, que pode ser de outra forma. Linear, quotidiano, com
diálogos, DEZ regressa ao zero não só pela escolha de dispositivo, mas também
por uma forma, misteriosa e insondável, de o exceder sem efeitos. (...) DEZ é
todo o cinema, toda a vida e toda a televisão reunidos numa hora e meia.
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