DIA 4 DE DEZEMBRO
MICHAEL, Markus Schleinzer, Áustria, 2011, 96’, M/18
Sinopse
Michael (Michael Fuith) tem 35
anos, um emprego estável como gestor numa agência de seguros e uma vida
aparentemente igual a tantas outras. Porém, na intimidade da sua casa ele
guarda o mais terrível dos segredos: um "bunker" à
prova de som onde mantém prisioneiro Wolfgang (David Rauchenberger), um menino
de 10 anos. Para Michael, que quer forçar uma naturalidade onde ela não pode
existir, estes momentos são uma escolha; para Wolfgang, pelo contrário, aquela
é uma existência de pesadelo.
Primeira obra do austríaco Markus Schleinzer (director de casting reconhecido pelo seu trabalho com Ulrich Seidl, Jessica Hausner e, mais recentemente, Michael Haneke), um filme que, tendo como ponto de partida um crime hediondo, tenta ficcionar a dinâmica existente entre um molestador e a sua vítima.
Primeira obra do austríaco Markus Schleinzer (director de casting reconhecido pelo seu trabalho com Ulrich Seidl, Jessica Hausner e, mais recentemente, Michael Haneke), um filme que, tendo como ponto de partida um crime hediondo, tenta ficcionar a dinâmica existente entre um molestador e a sua vítima.
FICHA
TÉCNICA
Título Original: Michael
Realização e Argumento: Markus
Schleinzer
Fotografia: Gerald Kerkletz
Montagem: Wolfgang Widerhofer
Música: Lorenz Dangel
Interpretação: Michael Fuith, David Rauchenberger, Christine Kain, Ursula Strauss
Ano: 2011
Origem: Áustria
Duração: 96’
TRAILER http://www.youtube.com/watch?v=o_7Xd1rZlYo
FESTIVAIS
Festival de Cannes - Selecção Oficial
Festival de Toronto - Selecção Oficial
Festival do Rio de Janeiro - Selecção Oficial
PRÉMIOS
Festival de Viena - Melhor Filme
CRÍTICA
O filme tem levantado polémica pela escolha do ângulo. Desde quando os pedófilos têm direito a uma perspetiva? Mas nada disso é feito de forma doentia, tendenciosa ou compassiva, pelo contrário, num tema de mau gosto, há bom gosto. Markus Schleinzer afirma que o cinema não pode ter tabus. O grande mistério da humanidade continua a ser o Outro. É difícil os patrões perceberem a perspetiva dos empregados, dos israelitas, a dos palestinianos, os freaks da bolsa as necessidades do povo. E vice-versa, claro está. Esse pode ser um dos maiores desafios da arte. Um desafio tão grande que facilmente se torna insuperável. Como poderemos alguma vez ter o nível mínimo de empatia para perceber um monstro? O cinema tem os seus truques. Habituou-nos a gangsters extremamente sedutores, que nos fazem entrar num jogo de ilusões inerentes ao próprio género: num filme de ação os socos não doem e as balas não matam de verdade, não há qualquer drama existencial, a morte é uma brincadeira, um ponto que se perde, como quando as crianças brincam aos cowboys. Num aprofundamento do género, Tarantino incute um charme irresistível aos seus assassinos, põe-nos a falar de massagens nos pés nos preparativos de um crime hediondo. George Clooney em O Americano (2010), de Anton Corbijn, faz-nos crer que a profissão de assassino profissional se assemelha à de um sapateiro. E Woody Harrelson e Juliette Lewis, em Assassinos Natos (1994), de Oliver Stone, mostram que matar aleatoriamente pessoas é bem mais divertido e amoroso do que passear de mão dada num jardim. Mas nem Samuel L Jackson, nem George Clooney, nem Woody Harrelson se safariam se em vez de assassinos fossem... pedófilos. Essa é a limitação ética: podemos rir-nos do humor de um psicopata, mas nunca das piadas de um pedófilo.
Desafio enorme de Michael, um filme notável de Markus Schleinzer, que esteve em Cannes, passou no IndieLisboa e agora estreia-se em sala. Mais surpreendente ainda tratando-se de um filme austríaco, o país de Natascha Kampush, um dos mais mediáticos casos de sequestro: a criança foi raptada por um homem aos 10 anos e só se conseguiu libertar aos 18. Assunto altamente delicado, portanto, que Schleinzer trata com mestria. A perspetiva, o que interessa ao realizador, é sempre Michael o sequestrador, deixando para segundo plano a criança, a vítima, que é a protagonista de todos os outros filmes do género. Nunca ficamos encarcerados ao lado do miúdo, de que mal conhecemos o nome, sabemos apenas que ela está lá.
O verdadeiro milagre do filme é fazer-nos seguir uma personagem com a qual não empatizamos (seria impossível). Porque Schlneizer tem essa honestidade ética e intelectual de não dar traços sedutores a Michael. Por um lado não vitimiza o carrasco: não se descobre qualquer opressão social ou familiar, nem mesmo um estado de demência que justifique, explique ou atenue os seus atos. Por outro lado, não há qualquer traço de estilo que faça de Michael uma personagem cativante, à moda dos assassinos de Tarantino. É uma figura opaca, moderadamente obsessiva, relativamente reservada, mas que, apesar de tudo, se relaciona socialmente. Na relação com o rapaz, não explora o síndrome de Estocolmo em demasia: há uma dependência, mas é uma dependência essencialmente opressiva.
O que torna assustadora esta história é a aparente vulgaridade do sequestrador-pedófilo, que até é bem-sucedido profissionalmente. E de como um crime é mantido e repetido de forma quase perfeita por um tempo longo. Alerta-nos para o perigo do insuspeito. Apesar de, num retrato mais profundo, observarmos os distúrbios de personalidade em Michael.
O filme tem levantado polémica pela escolha do ângulo. Desde quando os pedófilos têm direito a uma perspetiva? Mas nada disso é feito de forma doentia, tendenciosa ou compassiva, pelo contrário, num tema de mau gosto, há bom gosto. Markus Schleinzer afirma que o cinema não pode ter tabus.
Manuel Halpern, http://visao.sapo.pt/michael-como-pintar-um-monstro=f666206#ixzz29ZOOeInD
ENTREVISTA
A MARKUS SCHLEINZER
De onde lhe veio a ideia e a vontade de fazer um filme destes?
Nos
últimos anos, interessei-me bastante pela forma como se abordam estes
criminosos e a própria noção de criminoso na opinião pública. Na nossa
sociedade, e a meu ver correctamente, o abuso sexual de menores é o crime cuja
condenação é mais veemente e unânime. De tal forma que mesmo certas pessoas com
alto sentido de justiça e conformidade com a lei gostariam de regressar a um
direito medieval e de enforcar os agressores. Eu próprio não sou imune a isso
quando ouço falar ou leio alguma coisa que está para além do meu entendimento
ou da minha imaginação nos jornais sensacionalistas, a quem se deixou
praticamente o exclusivo destas matérias.
Esta
constatação chocou-me e quis tentar encontrar respostas e abordar o tema
abertamente, o que o cinema de ficção me permite. Para tal, recusei
conscientemente inspirar-me em acontecimentos ocorridos na Áustria ou no
estrangeiro e criei personagens em nada relacionados com o que era relatado
pela comunicação social. A história tão pouco possui elementos autobiográficos.
Nem eu, nem os que me são próximos alguma vez nos confrontámos com a pedofilia.
Depois de escrever o argumento, pedi ao Dr. Heidi Kastner, um psicólogo forense
de reputação internacional, que analisasse o personagem e o seu comportamento.
Teria sido estúpido e perigoso confiar apenas na imaginação livre num tema
destes. Este filme procurava narrar os últimos cinco meses de convivência
forçada de um rapaz de 10 anos com um homem de 35 anos. Para mim, o essencial
era perceber como é que se podia contar uma história destas. Queria partir do
universo do criminoso, do universo idílico e artificial que ele elabora, e
construir a narrativa partindo do seu ponto de vista. Era, portanto,
fundamental não introduzir qualquer julgamento ou moral exteriores e não deixar
os meus próprios valores éticos contaminarem a história. Assim, só vemos o
homem, o garoto e a interacção entre os dois. Pretendia criar uma situação à
qual tivéssemos de nos expor, como se de um perigo se tratasse. Em que cada um
tivesse de examinar cuidadosamente estes sentimentos.
Penso que
isso pode ajudar a sociedade, todos nós, a ir mais longe, a avançar. Mede-se o
grau de desenvolvimento de uma sociedade pela forma como esta é capaz de se
confrontar com os seus criminosos.
Na comunicação social, os autores destes crimes são frequentemente
apresentados como monstros...
Os jornais
sensacionalistas adoram empregar rótulos chocantes como “O monstro de...”. Mas
os monstros não são seres humanos: o monstro é um ser mítico, um personagem de
conto de fadas. Ao agir assim, nega-se ao criminoso a sua condição humana. É
óbvio que conferimos importância extrema à distância que temos de colocar entre
nós e os criminosos. E pouco importa de que forma o fazemos, apenas que essa
distância seja a maior possível. Não temos vontade de encarar tais pessoas e
muito menos de nos aproximarmos delas por via de uma possível identificação. A
maior parte do tempo, procuramos características interiores e exteriores que
nos permitam definir essas pessoas. Não para nos obrigarmos a compreendê-las e
a reconhecê-las mas para as distanciarmos de nós. Regressamos invariavelmente a
rótulos, procuramos obstinadamente uma “libertação” através de explicações
psicológicas.
É
precisamente este mecanismo que tentei neutralizar em Michael. O que é
essencial para mim é que só posso estabelecer uma relação com um comportamento
criminoso, qualquer que seja, se reconhecer a sua existência. Isso não
significa nem perdoar, uma vez que só as vítimas o podem fazer, nem condenar, o
que cabe à justiça.
O mais assustador, afinal, é a faceta de normalidade da vida deste
criminoso...
O que é
que acontece, a ambos, quando se convive naquelas condições? O que é que
acontece quando, passado algum tempo, se ultrapassa a primeira resistência da
vítima, esta se resigna e apesar de tudo se instala uma rotina? De acordo com
os nossos parâmetros habituais, há uma relação entre duas pessoas que vivem
juntas. Mas qual é a natureza dessa relação neste caso? É o que eu queria
contar e questionar, abordando também uma forma de sexualidade, por ser um dos
elementos desta vida em conjunto, ainda que, bem entendido, totalmente
controlada pelo criminoso. Creio efectivamente que esse é um dos aspectos
assustadores do filme: um homem que procura a normalidade no âmbito de um crime
extremo e que todavia vive como muitos de nós... É que o criminoso tenta apenas
viver de forma muito convencional. Procura ser como os outros. Cumpre fielmente
os ritos da normalidade, uma vez que o normal mascara o crime. Se eu me interesso
por esses mundos “ideais” que alguns elaboram, julgando-
-os “naturais” e “normais”, é porque para mim eles colocam em
causa a normalidade e o quotidiano em que vivo. Saber que numa situação extrema
se procura a normalidade, que ela é necessária para poder suportar essa
situação e a perpetuar, permite encarar o quotidiano e a sua normalidade sob um
outro prisma. O que é que isso representa para a minha própria normalidade? O
que é que nesta advém da simples auto-protecção ou da necessidade de se manter
em segurança?
Para mim, o que
é interessante e assustador no filme é que não só o criminoso procura a
normalidade, como a normalidade não o vê de todo como um anormal. Ele é um
empregado de uma companhia de seguros muito competente, é mesmo promovido, é
estimado ao ponto de ser convidado para umas férias de esqui, etc. No contacto
directo, as pessoas “normais” reagem como se ele fosse um tipo de facto normal.
Esse é um dos aspectos mais estranhos e inquietantes do filme.
Mesmo que
a anormalidade seja o oposto da normalidade, não creio que se estenda a todas
as esferas da vida. O anormal é apenas uma faceta. Em Michael, a
anormalidade do criminoso, a pedofilia, levou-o a raptar a criança. Mas isso
não o distingue em nada, não permite um distanciamento imediato dele. E quando os vizinhos, como é frequente nestes
casos, acorrem a dizer “Mas ele era tão simpático” não fazem mais que, para o
bem e para o mal, tentar compensar o disfuncional com o funcional. Há sempre
esta incompreensão: como é que alguém que tomou conta dos meus gatos pode
revelar-se repentinamente um anormal? Parece-nos altamente improvável, porque
põe em perigo a nossa própria normalidade.
Em Michael, os personagens reagem com uma certa frieza, as lágrimas
são raras... Precisamente quando a comunicação social daria largas a um registo
sensacionalista, a sua realização recua.
Já é
suficientemente horrível. Não vejo porque insistir nessa tecla escolhendo
outros processos narrativos. É por isso que desde o início da escrita do
argumento decidi não fazer um filme cujo personagem principal fosse a vítima.
Seria de muito mau gosto. Primeiro, porque não sei quase nada sobre o assunto.
Em segundo lugar, porque é frequente que os “filmes de vítimas” as explorem e
eu não queria fazer isso. Não podia abordar esta história de forma sentimental,
numa escalada emocional. Protejo os actores e deixei espaço aos personagens, tanto
ao da vítima, como ao do criminoso. Não há grandes planos obscenos com lágrimas
a escorrer pelas faces. Isso seria simplesmente desrespeitoso. Mas também não
queria cair no erro de acreditar que só há um ponto de vista, uma única
abordagem emotiva – nunca é assim.
Falou dos actores: fazer uma criança participar num filme destes é
uma grande responsabilidade...
Desde
logo, o mais importante era a sinceridade absoluta. Numa das últimas sessões de
casting, uma mãe levantou-se e foi-se embora, porque eu não lhe podia
prometer que ia ser capaz de proteger o seu
filho no
futuro e impedi-lo de ser alvo de chacota dos colegas na escola. Não o posso
fazer e fazer de conta que sim seria mentir. Tentámos acompanhar esta criança
através do diálogo e ouvindo-a, para que
também
pudesse existir por si mesma, enquanto pessoa, na história.
O
essencial era encontrar pais que não se contentassem com autorizar o filho a
desempenhar este papel mas que fossem igualmente interlocutores interessados;
encontrar uma criança com talento suficiente
e com uma
personalidade forte e sã. Não posso fazer um filme sobre maus tratos e eu
próprio maltratar o meu personagem. Claro que isto diz essencialmente respeito
à criança, porque faz de vítima, mas também ao actor que faz de criminoso,
Michael Fuith. Era muito importante confrontarmo-nos seriamente com a questão
“Nós próprios, quem somos?” antes de começar a falar de personagens.
Como é que uma criança de dez anos experiencia uma história destas?
Trabalhei
muito com crianças. Aprendi muito, em particular, com Michael Haneke na rodagem
de Das Weisse Band [O Lenço Branco]. Sem esta experiência, não me
atreveria a fazer Michael. Aprendi que é
preciso
encontrar as crianças onde estão, ou seja, no seu ser criança. Isso é muito
importante. Não se tratava, sobretudo num tema destes, de puxar a criança para
o mundo dos adultos. Nós falámos muitas
vezes
disto abertamente com o nosso jovem actor. Dei-lhe sempre a possibilidade de
ele próprio reflectir sobre o que podia acontecer ao seu personagem. Era
igualmente importante que ele participasse na construção do seu quarto na cave:
todos os desenhos que aí vemos são dele. Ele imaginou cenários de fuga (cavando
um túnel, por exemplo) e como é que se ia vingar. Conhecia o argumento, sabia
como acabava e foi ele próprio que decidiu como é que o seu personagem se ia
escapar. Ainda que fosse sempre claro de que é que ele regressava, encontrámos
com o miúdo e com os pais uma linguagem apropriada para falar sobre tudo isso.
Era muito importante não o saturar com informação mas permitir-lhe perceber a
situação de forma concreta.
É preciso
não subestimar as crianças. Elas percebem muito mais do que, por vezes,
estaríamos à espera e, também por essa razão, devem ser protegidas de modo a
eliminar o voyeurismo e a obscenidade.
E como é que foi para o actor principal, Michael Fuith?
Ele é que
devia responder a essa questão. Do que pude observar, diria que ele arriscou
verdadeiramente com esta história, que se documentou bastante e que lhe terá
sido, sem dúvida, frequentemente muito
difícil
expor-se à representação deste personagem, compreender os comportamentos de um
ponto de vista lógico mesmo reprovando-os. Encarou tudo isso com grande
sinceridade e fez um excelente trabalho, mas espero que o seu próximo papel
seja muito diferente...
Ursula Baatz
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