Kiarostami: Reflexões Sobre o Cinema | 29.11.12 | Sede CCF | 21:30 | Entrada Livre



DIA 29 DE NOVEMBRO "O SABOR DA CEREJA", Abbas Kiarostami,  Irão, 1997, 99’


FICHA TÉCNICA
Realização: Abbas Kiarostami
Argumento: Abbas Kiarostami baseado num poema de Omar Khayyam
Montagem: Abbas Kiarostami
Fotografia: Homayon Payvar
Música: I. Milles
Interpretação: Homayoun Ershadi, Abdolhossein Bagheri, Ali Moradi, Hossein Noori, Afshin Bakhtiari
Origem: Irão
Ano: 1997
Duração: 99’


SINOPSE
Este é um dos mais famosos filmes do realizador iraniano Abbas Kiarostami, consagrado no festival de Cannes, em 1997, com a Palma de Ouro. Filme de contornos aparentemente simples, O Sabor da Cereja torna-se, à medida que a história vai avançando, numa complexa meditação sobre a condição humana e a legitimidade do acto do suicídio, a partir da história de Badii, um homem desesperado que quer pôr fim aos seus dias e que parte à procura de alguém a quem possa pagar para o enterrar após a sua morte.
Marca indiscutível na obra de Kiarostami é a forma como o cineasta se liberta das habituais técnicas ficcionais e documentais, baralhando as fronteiras das duas e desafiando assim o papel dos espectadores, jogando com as suas expectativas e provocando a sua imaginação. Os seus filmes convidam o espectador à reflexão, pondo em causa estereótipos e questionando os seus próprios preconceitos. Neste filme, por exemplo, não é explicada a razão para o suicídio de Badii. Segundo Kiarostami, as partes não contadas ou não esclarecidas vão sendo criadas pelo espectador, tornando-o responsável e mesmo activo no filme que tem perante si.


  
TRAILER



O pano de fundo continua a ser o Irão. Mas nunca como antes Abbas Kiarostami foi tão longe. Agora, a história implica um desafio maior: o que separa a vida da morte. Ou vice-versa. Por isso, “acreditar na vida” implica acreditar na livre escolha de cada um. Mesmo que a escolha dos outros seja a sua própria mor­te. Esse é o mundo com que Kiarostami sonha. Mas pode pôr-se a questâo: ensaia-se uma defesa da beleza ontológica dos referentes cinematográficos ou a elegia de uma qualquer moral que discorra sobre a “pureza” de um real em bruto? Filme ­profundamente politico, em “O Sabor da Cerja” a política só pode ser entendida como algo de muito mais subtil e muito mais es­sencial que o tipo de regime no poder num determinado país.
A descoberta ocidental do cinema de Abbas Kiarostami, ocorrida sensivelmente no iní­cio da década de noventa, pôs acima de tudo em destaque as propriedades da sua relação com o real, e chegou-se mesmo a falar de uma hipotética inclu­são de Kiarostami na tradição neo-realista. Em parte por uma espécie de reflexo condicionado: tratava-se um cinema relativa­mente "pobre" de               meios, oriundo de um país acabado de sair de uma guerra demolidora e arrastada, e a uma primeira vista aquilo que mais sobres­saia era, de facto, a sua capaci­dade para habitar o real e para nele se dissolver sem rupturas aparentes. Coisa que, se não é de maneira nenhuma uma mentira, está longe de corres­ponder a toda a verdade – hoje em dia, depois de se conhecer o trabalho posterior do cineasta ou as suas curtas-metragens mais antigas, isso aparece com mais evidência do que nunca.
Se na obra de Kiarostami encontramos um relaciona­mento com o real ímpar no ci­nema contemporâneo, é cada vez mais visível que essa rela­ção assenta menos na contem­plação do que na procura cons­tante de uma "fricção" entre os materiais (ou entre diversas realidades), como forma de in­terrogar, precisamente, o tipo de relação passível de se estabe­lecer entre a câmara de cinema e a realidade ao seu alcance. Os filmes de Kiarostami estão dis­poníveis para a realidade cir­cundante mas não se lhe entre­gam de mãos caídas, e para além do lado semidocumental que forçosamente nele se ins­creve, são sempre labirintos que encenam (e baralham) dife­rentes níveis de representação do real. Contradizendo algu­mas impressões iniciais, trata­-se de um cinema sofisticadíssimo onde o artificio e o realismo se mascaram mutuamente e se alimentam um do outro – por vezes até um ponto próximo da pura abstracção (veja-se, por exemplo, a curta-metragem "O Coro", pequeno ensaio sobre o som no cinema). Sendo verdade que Kiarostami não precisa de muito para fazer um filme (dir­-se-ia, quase sem caricatura, que lhe basta uma câmara e um mi­crofone) a grandeza do seu cine­ma não provém da simplicidade ou da singeleza de meios mas, antes, da sua ultrapassagem prática; dizendo de outra maneira: não é uma questão de métodos ou condições mas de intenções e de resultados.
Haverá talvez uma razão forte para que o cinema de Kia­rostami funcione assim, por su­cessivas camuflagens. Kiarosta­mi quer (também) falar do Irão, mas o Irão é um país onde, pelas suas características intrínsecas, mais do que o discurso em si, há que elaborar a sua forma. Basta ler qualquer uma das entrevis­tas com o cineasta para se perce­ber as suas cautelas, e o modo como elas influem na concepção dos filmes: lembre-se "Traba­lhos de Casa", obra onde Kioros­tami se escondia por detrás da "inocência" das crianças para traçar um retrato das estruturas familiares e sociais iranianas. Provavelmente, é essa necessi­dade de se "esconder" que faz com que o sentido último de ca­da filme de Kiarostami pareça algo de dificilmente isolável es­capando-se sempre por entre os múltiplos "corredores" do seu cinema, numa espécie de rico­chete perpétuo entre espaço "on" e espaço "off".
Vemo-lo bem em "O Sabor da Cereja", outro filme cons­truído como um jogo de escon­didas com o espectador, deixan­do pistas que imediatamente apaga sem ter medo de parecer que se está a anular a si próprio. Neste jogo talvez Kiarostami nunca tenha ido tão longe como aqui: a polémica sequência final em vídeo vem suspender a "fic­ção" (são imagens da equipa de rodagem durante os trabalhos), trazendo para primeiro plano o espaço do cinema e correndo o risco de sabotar, em termos de adesão emocional do especta­dor, tudo o que tinha ficado pa­ra trás. Como se Kiarostami, atenuando o impacte da verten­te dramática do seu filme, esti­vesse a dizer que não é ela que mais importa.
E, no entanto, "O Sabor da Cereja" é, do ponto de vista da construção dramática, de um rigor inexcedível, até pela ma­neira como o realizador vai ge­rindo o acesso do espectador à informação sobre personagens e situações. A princípio, vemos apenas um homem conduzindo um jipe, com a câmara montada dentro do carro de onde pratica­mente só sai ao longo da primei­ra hora de filme para alguns planos de "respiração" - a câ­mara montada dentro de um carro é um dispositivo caro a Kiarostami, com antecedentes na sua obra, e que lhe permite aquilo que ele próprio chama um "travelling permanente". Sobre o homem ao volante nada sabemos, para além da condi­ção económica pressuposta pelo facto de guiar um jipe (mas esse também é um saber ilusório: nada nos garante que o jipe é seu). Acompanhamo-lo nas suas deambulações e nas suas tentativas de recrutar alguém para um "trabalho simples e bem pago", interpelando de­sempregados e operários de construção civil sem encontrar o homem certo e sem que o es­pectador consiga perceber qual é o trabalho proposto. Sabê-lo-­emos mais tarde: a personagem procura alguém que o ajude a suicidar-se, ou melhor, que depois de confirmar que se suici­dou mesmo o enterre e guarde segredo sobre a sua sepultura.
Nunca sabemos, no entan­to, quais as motivações da per­sonagem para o suicídio, que desgosto ou que desespero o le­vam a optar pela morte. Dei­xando isso de fora, Kiarostami age um pouco como um "cien­tista" que quisesse observar, pura e simplesmente, os com­portamentos e as reacções do ser humano perante a iminên­cia de uma morte escolhida. Re­gistando, por exemplo, as "pul­sões de vida" que se manifes­tam mesmo na certeza, obsessi­va e maníaca, da proximidade da morte: o momento em que a personagem recusa uns ovos es­trelados porque "fazem mal à saúde" é um pouco o equivalen­te da famosa história do conde­nado à morte que a caminho do cadafalso, se desvia de uma po­ça de água para não molhar os pés. Isso está no filme, nessa ou noutras situações, tal como está a morte propriamente dita.
O plano assombroso do sui­cídio do protagonista, um longo plano negro rasgado por súbitos clarões, passa por ser uma belís­sima figuração do momento em que à vida sucede a morte e em que as últimas réstias de luz se extinguem perante o negrume definitivo. Mesmo que depois, na citada sequência final, Kia­rostami acabe o filme em tons luminosos, ao som de uma or­questra de metais a interpretar uma versão do "Summertime" de Gerswhin - sequência que, ao chamar a atenção sobre o ca­rácter de representação daquilo a que assistimos previamente, funciona como "dénouement" invulgar mas que não tem nada de contraditório: como se, crua­mente, desvalorizasse a morte de um (e apenas um homem­) que nem sabemos se realmente morreu - e dissesse que "a vida continua" .
Em fundo, no entanto, per­manece a ideia de mais um olhar sobre a sociedade irania­na. Os homens interpelados pe­lo protagonista são sucessiva­mente desempregados, operá­rios, um soldado (o primeiro a entrar no jipe), um seminarista e um homem mais velho que, pela idade e pelo discurso, indi­cia ter vivido (e bem) no Irão antes da revolução islâmica. E é este último homem que vai aceitar com mais naturalidade o desejo do protagonista e pron­tificar-se a ajudá-lo, mesmo que seja ele quem mais parece acre­ditar na vida - é também ele quem vai mostrar ao protago­nista "o sabor da cereja".
Mas é precisamente isso que importa: "acreditar na vi­da" implica acreditar na livre escolha de cada um, sem impor objecções morais às decisões que apenas dizem respeito aos outros. Mesmo que a escolha dos outros seja a sua própria morte. Esse é o mundo com que Kiarostami sonha em "O Sabor da Cereja".
Luís Miguel Oliveira, Público, 13/2/98




Sem comentários: