DIA 15 DE NOVEMBROABC ÀFRICA,
Abbas Kiarostami, Irão, 2001, 85’
FICHA TÉCNICA
Título
Original: ABC Africa (2001)
Realização: Abbas Kiarostami
Fotografia: Seyfolah Samadian
Montagem:
Abbas Kiarostami
Origem:
Irão
Ano:
2001
Duração:
85’
SINOPSE:
ABC
África é
uma viagem ao Uganda, em Abril de 2000. Abbas Kiarostami e o seu assistente,
Seifollah Samadian, a convite de uma associação humanitária, a FIDA (Fonds
International de Développement Agricole) chegam a
Kampala.
Durante dez dias a sua câmara descobre e acaricia mil rostos de
crianças, todas órfãs de pais que morreram de sida. Mostra-nos os risos e as
lágrimas, a música e os silêncios, a vida e a morte. Testemunha
uma África alegre apesar do sofrimento e da doença…
CRÍTICAS:
"A primeira oportunidade de Kiarostami experimentar,
justamente, o uso dessa lente "omnipresente" surgiu em ABC
África (2001). Depois
de um convite de uma associação humanitária internacional, visita o Uganda para
testemunhar a realidade de milhões de órfãos vítimas da guerra civil e da SIDA.
Mas ABC é
uma aprendizagem pessoal: uma nova cultura (os seus rostos, a sua música, a sua
expressão corporal com a qual o realizador se deixa envolver), um olhar livre e
sem barreiras de produção (o digital), uma nova interacção com personagens
desconhecidas que se interpretam a elas próprias, espontaneamente, nas ruas que
visita (gesto que o realizador busca incessantemente nas suas ficções - e
efémero, tal como a vida e a morte que a interrompe). Tocante a sequência em
que anda sozinho nos corredores escuros dos seus aposentos (um território
desconhecido), de electricidade cortada, para voltar ao seu quarto, sem
desligar a gravação da câmara DV - é ela a sua vela. "
Uma
breve constatação, antes de tudo: Abbas Kiarostami é sempre o homem que chega
depois. Depois da tempestade, ele chega, vem e observa. Seus filmes são antes
de tudo a notável declaração de que apesar
de tudo, há vida ainda
brotando de cada pedaço de chão, de cada pessoa, seja a adversidade que for.
Nada mais indicado, então, do que fazer o cineasta da vida visitar o continente
da morte, assolado desde que se tem notícia pelo homem branco, por suas doenças
e pelas infindáveis lutas entre tribos. Mas não é um documentário sobre a
África que Kiarostami deve fazer. Como diz o fax, no primeiro plano do filme,
ele deve filmar o esforço que vem sido feito por uma instituição capitaneada
por um grupo de mulheres da Uganda para amenizar a vida e dar condições de
existência a 1,5 milhão de órfãos no país, muitos deles portadores da síndrome
de imuno-deficiência adquirida, a AIDS. O pedido deixa claro: com um filme de
Kiarostami, o mundo inteiro saberia sobre esse esforço hercúleo para tentar
reconstruir um país arrasado por guerras civis e doenças destruidoras (além da
AIDS, a malária). Kiarostami deixa o espectador ciente da natureza do projeto,
um filme de encomenda, e das esperanças do grupo nele. O cineasta só não deixa
claro de início aquilo que ele espera do filme que vai fazer. Mas
isso não será necessário, pois o próprio A.B.C.
Africa deixará
suficientemente claro.
Claro,
como filme de encomenda, A.B.C.
Africa está restrito a certas
regras, a certos protocolos. E eles certamente não são do interesse de
Kiarostami. Todo o processo através do qual as mulheres de Uganda devem
aprender contabilidade e sustentar seu grupo, todas as medidas tomadas para
fazer com que os grupos não tenham dificuldades financeiras são acompanhadas com
frieza puramente descritiva por Kiarostami. Em todas as visitas necessárias e
protocolares às instituições e hospitais, a câmera insiste menos nas pessoas
entrevistadas (que quase nunca aparecem) do que nos rostos das pequenas
crianças. Assim, a visita ao hospital para tratamento de crianças com AIDS, um
tema muito delicado de ser tratado, algo quase interdito ao cinema sob risco de
exploração pseudo-humanitária, é filmada com frieza, com contenção, sem saber
exatamente de onde extrair o sentido profundo daquilo que está sendo filmado.
Esse sentido, ele logo será encontrado logo depois, quando uma das câmeras
encontra um pedaço de pano dobrado. Dentro, uma criança morta, jamais visível.
Esse pequeno pano é dobrado, é colocado numa frágil caixa de papelão, e é
levado até a parte traseira da bicicleta, onde quase cai. Toda a fragilidade e
a crueldade existencial de uma criança infectada por AIDS, não encontrada em
nenhuma das imagens de dentro do hospital, atinge entretanto toda a sua
significação em outro lugar.
Mas o
grande tema de Kiarostami não é a visita. Como sempre, seus filmes que têm como
aparente tema a morte ou a desgraça são na verdade ardorosas declarações de
amor à vida. Assim, uma visita humanitária, obrigatoriamente lidando com
afecções de tristeza, transforma-se em gloriosas odes à vida quando a câmera da
Kiarostami está na rua, filmando os nativos dançando e atuando diante da
câmera, nos grupos de dança, tendo aulas debaixo de uma árvore que oferece uma
sombra agradável, etc. Ele nunca será o cineasta que se lamenta pela morte, mas
aquele que procura, entre cem mortos, um vivo. Na piada, ele é aquele que vê
seu copo 50% cheio. O verdadeiro tema do filme, a verdadeira intenção de
Kiarostami que aparece desde cedo no filme é: "A vida que resiste à guerra
civil, à doença, à orfandade, à pobreza". Não a pergunta: "Como é que
eles vivem assim?", mas justamente a constatação: "Eles vivem
assim". A vida é sempre mais forte, ela é essa incrível vitória.
A.B.C.
Africa atinge
seu momento mais importante quando deixa tudo isso às claras, ou melhor, no
escuro. À meia-noite em Uganda, todas as luzes se apagam, medidas de contenção
de eletricidade. As câmeras estão ligadas às 23:59, e filmam justamente o
momento em que a luz cai. Puro momento de cinema, passamos alguns minutos em
breu total, a tela incapaz de nos mostrar nada além de um negro homogêneo, e
somente ouvimos a voz de Kiarostami e de seus assistentes: "Deve ser
horrível viver assim", etc. Ao que o cineasta responde, "Sim, para
nós é insuportável porque estamos há cinco dias. Em cinco meses, em cinco anos,
nos acostumaríamos". Continuamos ouvindo passos em escada, imaginamos que
todos se dispõem para dormir. A câmera, no entanto, permanece ligada. A chuva
começa a cair. Ouvimos um barulho. Finalmente aparece uma fonte luminosa, e
finalmente podemos enxergar alguma coisa novamente: um relâmpago preenche a
tela de um branco forte, e da visão da paisagem, pois descobrimos que a câmera
está apontada para a janela. Essa imagem, contudo, só nos comprova a fugacidade
da luz (logo, da paisagem, de Uganda, da África, e por fim do cinema). A imagem
seguinte tem ares de ressurreição: o dia renasce, a luz volta, a paisagem está
salva dos barulhos e raios. O cinema está salvo, e a vida continua, como já
dizia um de seus filmes.
Se há
momentos brilhantes em A.B.C.
Africa, eles são o suficiente para alçá-lo à dimensão de grande obra, mas
não à de obra-prima, como ele vinha fazendo filme após filme. Nunca obra de
encomenda em sentido estrito, o filme sofre às vezes de falta de interesse no
projeto relatado duas vezes na tela, sofre de necessidade demais de cumprir o
prometido. Quando vai até seu foco de interesse, às vidas e costumes da
população ugandense, o filme atinge momentos de muita força, alguns gloriosos.
Como a pequena menina, com uma camiseta escrita A.B.C. – que, ao que parece
óbvio, dá o nome ao filme –, que ensaia seus primeiros passos, frágeis,
tentando firmeza. Ela é importante pelo conteúdo humanitário do filme porque é
adotada por uma família européia. Para Kiarostami, entretanto, o que é tão
importante nela é que trata-se antes de tudo de alguém que está dando os
primeiros passos. Malgrado o ambiente, os dramas e adversidades de um país
miserável, há algo que vive. Há algo que tenta sustentar-se em seus pés. Esse
pode não ser necessariamente o A.B.C. da África. Talvez seja antes a sua
exceção. Mas é certamente o ABC, o beabá de Abbas Kiarostami. E esse esforço
por manter-se vivo, por lutar contra a morte e mostrar-se uma afirmação de
vida, isso existe em A.B.C.
Africa.
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