IPDJ 21:30 | 30 de Abril 2013| Alvorada Vermelha / A Última Vez Que Vi Macau, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata


DIA 30 - ALVORADA VERMELHA, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Portugal, 2011, 20’
A ÚLTIMA VEZ QUE VI MACAU, João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Portugal/França, 2012, 85’

FICHA TÉCNICA: 
Título original: A Última Vez Que Vi Macau
Realizadores: João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata

Com: João Pedro Rodrigues, João Rui Guerra da Mata, Lydie Barbara
Género:Documentário
Classificação:M/12
Outros dados:FRA/POR, 2012, Cores, 85 min.

SINOPSE:

Um homem viaja de Lisboa a Macau, uma das mais multiculturais e labirínticas cidades do mundo, a pedido de Candy (Cindy Crash), amiga de longa data, que lhe diz estar a viver coisas estranhas e assustadoras. Ele, que vivera em Macau há muitos anos e ali passara os melhores tempos da sua vida, encara a viagem como um regresso às suas origens e às suas memórias mais felizes. A longa-metragem, que mistura o documentário e o policial, marca a terceira co-realização de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (depois de "China China" e de "Alvorada Vermelha"). Escolhido como filme de abertura da edição de 2012 do Doclisboa, ganhou o prémio da secção de documentário do Festival de Cinema de Turim, Itália, e teve uma menção especial do júri do Festival de Locarno. Em complemento, a curta "Alvorada Vermelha", também de João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata. 
 CRÍTICA:
Produto mais ambicioso da expedição a Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, A Última Vez que Vi Macau é um feliz casamento entre “ficção” e “documento”, na acepção convencional dos termos, conquistado na dissociação entre a banda de imagem e a banda de som. Na imagem, um desfile de planos de Macau, ruas e casas, ao perto e ao longe, raramente encenados, ou “preparados”, para a câmara. No som, e sempre em off, um longo monólogo, em jeito e em espírito de film noir, onde o protagonista envolve numa história de mistério (o que aconteceu à sua “amiga” Candy?) as reflexões suscitadas pelo reencontro, muitos anos depois, com o território macaense. Lembramo-nos de algumas conversas que tivemos depois da exibição do filme no último DocLisboa (onde A Última Vez... foi exibido na sessão de abertura), e de algumas reservas apontadas à “arbitrariedade” dessa relação entre som e imagem. Pensamos, pelo contrário, que essa arbitrariedade não só não merece reservas como é, ela própria e por ela própria, o fulcro do filme, que se encontra aí, nessa aparente ausência de necessidade da conjunção entre o que a imagem mostra e o que o som diz (ou vice-versa). É o real como espigão da ficção, a cidade de Macau como viveiro de “um milhão de histórias”, glosando a lengalenga introdutória de uma célebre série sobre “cidades nuas”.

Mais directos ao que de facto importa, Rodrigues e Guerra da Mata também glosam: o Macao de Sternberg, expoente do exotismo hollywoodiano de coloração noir, de que pelo menos um plano é incluído no filme, matriz cinéfila que vem contrapor, de algum modo “infectando-o”, o real reconhecimento territorial. A mecânica do filme sugere que um deles (provavelmente Guerra da Mata) tem de facto uma história pessoal com Macau, enquanto para outro (João Pedro Rodrigues) Macau é, antes de outra coisa qualquer, um território mental povoado por fantasmas de cinema. Esta outra espécie de “dissociação”, prévia e essencial, é raiz do grande jogo que os cineastas vão jogar àquela terra de casinos, como se tudo (cinema e real) puxasse para seu lado até se tornar claro que a realidade e os seus fantasmas são, pelo poder do cinema, uma e a mesma coisa, e caminhassem lado a lado, alegremente, rumo à dissolução no belo “apocalipse” final (tão grande é esse poder do cinema que pode destruir uma cidade).
Alvorada Vermelha, que aparece como “bónus” desta sessão, foi o primeiro filme macaense dos realizadores, mostrado pela primeira vez em 2011. Com o seu título que também convoca uma aura hollywoodiana, não faz nem da alvorada nem do vermelho (vermelho de sangue) palavras vãs. Um mercado macaense, e os trabalhos de preparação daquilo (peixes, sobretudo) daquilo que virá a ser “comida”. Na crueza intrínseca das suas imagens, lembretes de uma relação esquecida (ou escondida) entre homens e natureza, traz para o primeiro plano aquilo que a dominante cultura “gourmet” sublimou: mata-se para comer, há vísceras, sangue, facalhões e mãos humanas na cadeia alimentar.
Luís Miguel Oliveira, Ipsílon

 
  ENTREVISTA:
Documentário sobre uma ausência? Ficção sobre uma angústia? Fusão inesperada do passado com o presente?
Bem-vindos a um diário de bordo fascinante “em que nem tudo o que parece é”: “A Última Vez que Vi Macau” .


“A Última Vez que Vi Macau” chega finalmente às salas depois do seu estonteante percurso pelos festivais internacionais desde a estreia em Locarno. Em complemento, é exibida “Alvorada Vermelha”, uma curta também filmada em Macau que ganhou autonomia no trabalho mais recente de João Pedro Rodrigues (J.P.) e de João Rui Guerra da Mata (J.R.). Conversámos com os dois realizadores sobre esta viagem tão real como sonhada à ex-colónia portuguesa, em que a personagem de Guerra da Mata, em ambientes thrillescos, tenta salvar uma amiga de longa data, Candy (Cindy Scrash), que está ser ameaçada por gente pouco recomendável. Pelo caminho, é o cinema que interroga o eu próprio poder de representação.
Qual é a origem de “A Última Vez que Vi Macau”?
J.P. — Quando partimos para Macau, com um apoio financeiro do ICA para um documentário, a ideia do trabalho era pouco clara. Começámos por filmar aquilo que a cidade nos deu, classificámos a informação, e o filme só começa a ganhar forma durante o processo de rodagem e na montagem, que funcionaram paralelamente. Passámos seis meses em Macau ao longo de três visitas. Fomos para lá no fim de 2009, voltámos na primavera de 2010 e um ano depois, em 2011.
J.R. — Este filme tem várias camadas de leitura, quer a nível narrativo quer a nível emocional. O meu pai foi oficial da marinha durante o Estado Novo e viveu em vários sítios. Nasci em Moçambique, vim cedo para Lisboa e depois parti, ainda miúdo, para Macau, regressando depois. Há vinte anos, conheci o João Pedro, começámos a trabalhar juntos e desde então que andávamos a adiar uma visita a Macau, onde passei parte da minha infância. Queria saber até que ponto as minhas memórias de Macau correspondiam ainda à realidade, ou se elas se transformaram entretanto num produto da minha imaginação, numa matéria ficcional.
Já a relação do João Pedro com Macau era distinta. Foi por isso que decidiram coassinar a realização do filme?
J.P. — Sem nunca lá ter estado antes, eu tinha, várias ideias sobre Macau na cabeça. Tinha o relato das memórias do João Rui. Tinha também a representação de Macau que o cinema clássico me deu, enquanto um espaço labiríntico, secreto, cheio de perigos. A Macau do filme de Sternberg, por exemplo. Embora quase todo rodado em estúdio, o filme de Sternberg parte de imagens documentais e de um travelling filmado num barco em que aparece a capitania do porto e a casa em que o João Rui, de facto, viveu. Este tipo de coincidências começou a surgir de uma forma inexplicável. A Macau que descobrimos começou lentamente a tornar-se um espaço mental, uma espécie de jogo lúdico com um espírito de grande aventura. Quisemos refazer essa aventura, vivê-la durante a rodagem. No fundo, nunca acreditámos muito na palavra ‘documentário’ e foi essa ‘falta de convicção’ que acabou por nos levar para outro rumo.
J.R. — A Macau ‘óbvia’, turística, que se pode ver no YouTube, não nos interessava. Não queríamos filmar os casinos e uma parte da cidade que, de belo, aliás, tem muito pouco. Há pessoas que não reconhecem a Macau que nós mostramos porque o filme não é o estereótipo da cidade, foge do cartão postal e dessa noção de ‘belo’, que é ambígua. O que me fascina em Macau são as suas contradições arquitetónicas e culturais. A minha personagem diz às tantas que passou ali os melhores anos da sua vida e eu queria que este filme fosse a continuação disso: a história de um observador que constata uma transformação radical da paisagem. E queria voltar a perder-me em becos e vielas. Perder-me no tal espaço imaginário, fragmentado, que ao mesmo tempo é um espaço físico ‘habitado’, oposto ao do turista. Por outro lado, foi através dos jornais portugueses de Macau que soubemos da morte da Jane Russell, a protagonista de “Macau”. O filme de Sternberg ganhou então uma importância decisiva.
A sua personagem, João Rui, parte para Macau para ajudar uma amiga, Candy. Ela ‘abre’ o filme com uma interpretação de ‘You Kill Me’, a canção que Jane Russell cantava em “Macau”. Quem é a Candy?
J.R.
— É a nossa Jane Russell!
J.P. — E ao mesmo tempo é a Cindy Scrash, a maravilhosa performer dos shows de travesti e uma pessoa que adoramos.
J.R. — A Cindy tem uma aura e uma star quality do cinema clássico que já não são deste tempo. Aliás, o nome da personagem, Candy, é outro somatório de coincidências. A gata em que eu me transformo no final do filme chama-se Candy, por causa da Candy Darling do Warhol. Quando estávamos em Macau, descobrimos um bambu com a inscrição Candy, outro feliz acaso. O que eu quero dizer com isto é que Macau é uma cidade que se ficciona a si própria. Candy é a personagem que lança os dados do filme e também o jogo de aparências que se estabelece com o espectador.
“Macau é a mais amável e a mais cruel das cidades, onde nem tudo o que parece ser, é”...
J.R.
— Eis a tagline do nosso cartaz
Há duas vozes off, a de João Rui, que viaja só e é de facto uma personagem, e outra voz, que é a sua, João Pedro, mas que “não está lá”. Gostava que me falassem de uma noção de off no filme que me parece uma proposta narrativa radical. A Macau ficcionada é sobretudo sonora, não visual. É um fora de campo, quase de ficção científica, com aquela misteriosa gaiola que anda de mão em mão...
J.R. — A gaiola é um macguffin, o símbolo de uma identidade cultural que, receio, vai desaparecer, tal como o Mercado Vermelho em que filmámos “Alvorada Vermelha”, ou tal como o patoá, outrora a língua dos macaenses e hoje praticamente extinta.
J.P. — E a ideia de ficção científica agrada-me bastante... Eu acho que a minha voz off aparece já como um comentário, não sobre Macau, mas sim sobre a construção do próprio filme. É uma voz que dialoga, que conta. A voz do “era uma vez” dos contos tradicionais e a voz da “última vez”, que nunca é a última. Não sei se não voltaremos a filmar ali...
J.R. — O som levou-nos meses de trabalho e foi todo reconstruído de raiz. Tínhamos a sensação de que, se quiséssemos, podíamos contar outra história completamente diferente sobre aquelas imagens. Quando eu era miúdo, lembro-me de ver filmes no cinema e na TV em Macau, em línguas que não compreendia. Então, inventava histórias sobre o que via. Queria recuperar esse grau de liberdade...
J.P. — Como se cada espaço real tivesse um fantasma equivalente. Cada plano tem o seu fantasma, que vem do som e dos seus subterfúgios.
No final do filme, as pessoas começam a desaparecer, Macau começa a ficar deserta e os animais tomam o lugar dos homens. Porquê?
J.P. — Há uma coisa que eu detesto no cinema e que se chama conforto. Detesto um cinema de estilo. Ora, este filme, pelas suas próprias condições de produção, e também pelo seu delírio mais ou menos controlado, permitiu-me correr riscos, pôr-me em causa. Aposta numa história detectivesca em que experimentei e filmei coisas que até então não tinha feito. Mas “A Última Vez...” não é um filme menos íntimo do que os outros. Pelo contrário, parece-me cada vez mais difícil fazer cinema na atualidade sem se falar de si próprio.
J.R. — Quanto à transformação dos homens em animais, são também coisas que vieram ter connosco. Há agora imensas matilhas de cães vadios em Macau, coisa que não existia no meu tempo porque eles iam parar à panela. E quando filmámos, estávamos no ano do tigré, é por isso que a Candy surge ao pé deles. Talvez os homens precisem desta transformação para se salvarem. Afinal de contas, a metamorfose é há muito tempo uma das maiores obsessões do cinema do João Pedro.
Francisco Ferreira, Expresso, 16/3/13
 

  

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