CIÚME, 14 OUTUBRO, 21H30, IPDJ



CIÚME
Philippe Garrel, França, 2013, 77’, M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: La Jalousie
Realização: Philippe Garrel
Argumento : Marc Cholodenko, Caroline Deruas-Garrel, Philippe Garrel, Arlette Langmann
Montagem: Yann Dedet
Fotografia: Willy Kurant
Música: Jean-Louis Aubert
Interpretação: Louis Garrel, Anna Mouglalis, Emanuela Ponzano, Arthur Igual
Origem: França
Ano: 2013
Duração: 77’


NOTA DO REALIZADOR
A ideia que sustenta este filme é que o meu filho Louis interpreta o seu avô aos 30 anos - a actual idade de Louis – apesar de se passar nos dias de hoje. Fala de um caso de amor do meu pai com uma mulher – e, por admirá-la, eu causei, involuntariamente, ciúmes à minha exemplar mãe. Eu era uma criança que estava a ser criada pela minha mãe (no filme, eu sou a menina).
Estas são as origens históricas deste filme contemporâneo - o meu filho interpretando o meu pai quando ele tinha trinta anos.
Philippe Garrel



CRÍTICA
Há o receio de não conseguir amar, de não conseguir filmar, de perder tudo entre dois planos.
Não podemos estar sempre a repetir as mesmas coisas a cada novo filme de Philippe Garrel, mas é sempre difícil não começar (algures) por isto. Quanto mais se sabe do cinema de Garrel, mais os seus filmes fazem sentido. Cabe-nos aqui dar um pouco do que já recebemos. Por exemplo: se Garrel não trabalhasse com pessoas que lhe são caras, porventura não teria coragem de pegar numa câmara. Garrel tem “a câmara no lugar do coração”, bela boutade que o define e define a infância perdida — e o cinema é a infância perdida — de “L’Enfant Secret”. Mas tudo isto soará a vago para a maioria das pessoas, para quem nos lê. Nos filmes de Garrel, no seu cinema manufaturado e doméstico, não há muita gente no ecrã nem muita gente nas salas. As coisas são o que são. Mas “Ciúme” estreou-se em sala, contra todas as expectativas. Nem todos os países se podem orgulhar disso.
Tentemos ser mais concretos. Primeiro plano: uma mulher chora. Chora em scope no mais belo 35 mm a preto e branco do mundo que ainda se pode encontrar e que um certo cinema ainda se dá ao luxo de fazer. Chora entre as paredes de um quarto tal como outrora chorou outra mulher no filme que Garrel anda há 40 anos a querer dar continuidade, o filme de toda a ressaca política dos anos 70, o filme em que as pessoas eram mais importantes do que o cinema e que se fazia, precisamente, para que se pudesse continuar a viver. O filme em relação ao qual, conscientemente ou não, Garrel tenta ‘propor um remake’, “La Maman et Ia Putain”, de Jean Eustache.
“Ciúme” começa com uma situação comum do quotidiano: um casal em processo de separação. Louis (Louis Garrel) deixa Clotilde (Rebecca Convenant), com quem tem uma filha menor, a pequena Charlotte. Parte para os braços da nova namorada, Claudia (Anna Mouglalis). O destino já tomou o seu rumo. Louis e Claudia são atores de uma pequena trupe de teatro. Claudia gosta de Louis, mas tem medo que ele a deixe. Mais à frente, é Claudia quem encontra um arquiteto e é Louis quem tem medo de ficar sozinho. Não o ficará realmente, porque Clotilde continuará presente (é a mãe da sua filha). E também porque há Charlotte — que é outra espécie de amor e a quem Louis às tantas perguntará: “Também tu tens ciúmes de mim?”
Mas há outra dimensão em “Ciúme” que, embora não seja nova em Garrel, adquire neste filme particular importância: um rasto autobiográfico indelével, intimamente ligado ao cinema — e assim tem sido desde “Les Baisers de Secours” (1989), esse making of em que Philippe se filmava a fazer filmes com Maurice Garrel, seu pai, e com Louis Garrel, seu filho. Não por acaso, “Les Baisers de Secours” foi também a primeira colaboração com o argumentista que escreveu todos os filmes de Garrel desde então, Marc Cholodenko. O que quero dizer é que os filmes de Garrel — e isto agora vem menos de Eustache do que de Godard — têm um valor universal intrínseco, uma sinceridade a toda à prova que comove e magoa, mas são também um diário de bordo de quem os faz e onde os alter egos, mais ou menos nítidos, bem como a vontade de falar por portas travessas em nome da primeira pessoa, se vão sucedendo.
“Se voltas a dizer que vais morrer, sou eu que te mato”, dirá logo no início Claudia antes de ouvir de outra personagem um sábio conselho de Séneca. Não sabe nem desconfia, nem ela nem Louis, do que o futuro está para trazer — e às vezes há tentações, de resto frequentes em Garrel, para acabar depressa com tudo. Parece-me, no entanto, que o que ganha aqui forma, aquilo que de novo este filme traz é a definição do próprio ciúme em si.
“Ciúme” está infiltrado e vai organizar-se em torno do, chamemos-lhe infeliz, mas humano, sentimento do seu título. Das relações de dependência que ele cria. Do tão difícil que é por vezes na vida seguir caminho e dizer adeus, para sempre, sem olhar para o espelho retrovisor — e Garrel é alguém com dificuldade em dizer adeus, os fantasmas do passado visitam-no sem cessar, e é também um cineasta angustiado pelo tempo, inconformado com cada segundo que passa. Acontece que o ciúme deste “Ciúme” não é banal. Nem é apenas o de dois amantes. É que há uma história atrás que o filme não conta mas que Philippe contou: Louis está a interpretar anacronicamente a convulsão amorosa que o seu avô Maurice viveu quando tinha 30 anos e que o levou a trocar a família, era Philippe criança, por outra mulher. Não, o ciúme deste filme é outro: é o ciúme de pais e filhos (de um pai e de uma filha na ficção), é o ciúme dos mortos que a vida já não pode trazer de volta, dos filmes que já não se podem fazer e, neste ponto, é um filme de Garrel sobre o sofrimento do seu próprio cinema.
Em Portugal, não passou “Un Été Brûlant”, trabalho anterior de Garrel, muito próximo de “Le Mépris”, de Godard, e em que o ‘fantasma’ de Maurice Garrel surgia às tantas no ecrã (o ator faleceu logo a seguir a essa rodagem). Muito provavelmente, é ainda o pai Maurice que Philippe procura através do seu filho Louis. Pelo ciúme, encontrou uma ligação filial, a paternidade, outra forma de amor. Enquanto isso, o ciúme deixou de ser o que era. Deixou de ser morte de homem. E deu-nos o que habitualmente não dá: serenidade.
Francisco Ferreira, Expresso, 2/8/14





ENTREVISTA AO RELIZADOR
Porquê o título, Ciúme?
O título estava no manuscrito que eu mantive ao meu lado durante os seis meses que levou para escrever o argumento. Eu ia dormir todas as noites com ele e acordava todas as manhãs com ele. Então, eu pensei que era possível mantê-lo. Uma vez tentei o título Discórdia, mas rapidamente me livrei deste nome, ou o nome livrou-se de mim. O ciúme é pior do que a discórdia, mas também é algo que todos já sentiram e pelo qual todos já sentiram culpa... Há um lado que estamos a tentar esclarecer. O ciúme é um enigma com que toda a gente já teve de lidar.
Há também os títulos de dois capítulos: "Eu mantive os Anjos" e " Faíscas num barril de pólvora".
É frequente fazer isto; é útil para mim quando filmo. Mais tarde, pergunto-me se deveria removê-los, mas acabo sempre por querer mantê-los, mesmo que não seja muito cinematográfico. É uma forma de manter o momento do nascimento de um filme perto de mim.
"Eu mantive os Anjos" é bastante misterioso.
Ele vem de um professor no Liceu Montaigne, que foi muito importante para mim e que é representado no filme pelo homem mais velho a quem Louis vai visitar no final, aquele que diz que ele entende personagens fictícias melhor do que as da vida real. Ia visitar este professor de francês até ele ser muito velho e lembro-me que na última vez que nos vimos lhe perguntei: "Ainda não acredita em Deus?" ao que ele respondeu "Não, mas eu mantive os anjos". Nunca me esqueci. Mais tarde, ele morreu.
Claro que no filme ele se refere, obviamente, a ter mantido os filhos, ao facto de que o rompimento entre o homem e a mulher não envolver uma ruptura com a filha.
O argumento foi co-escrito por Caroline Deruas, Arlette Langmann, Marc Cholodenko e você. Quatro argumentistas - não são muitos?
Sim, foi a primeira vez que dirigi uma coisa semelhante e acho interessante. Dois homens e duas mulheres. Na verdade, escrevemos o primeiro rascunho em três meses, muito rapidamente. Depois foi só uma questão de adicionar pequenos retoques.
Arlette Langmann para o argumento, Yann Dedet como editor, mesmo Willy Kurant... Todos eles sugerem uma referência a Pialat.
Exacto. Nunca tive problemas em referir os mestres, da mesma forma que os pintores estudam nos museus. Não é uma questão de imitação, mas estaremos mais bem equipados, se pudermos ter como referência o que os grandes artistas descobriram antes. Sou um discípulo de Bresson, Godard e Truffaut. E há também outras referências.
É esta abundância de inspiração reflectida pelo facto de que havia vários argumentistas?
É importante para mim que o script deva ser o resultado de diferentes contribuições. O argumento final é o fruto da contribuição dos quatro participantes. Partimos de uma tela simples e daí todos captaram cenas que escrevemos separadamente. Mais tarde, juntámo-las e vimos qual o resultado, se o que tínhamos era o suficiente, para fazer o conjunto da história compreensível. Depois a verdadeira unidade na narrativa tem de ser escrita com a câmara, durante as filmagens. Às vezes, duas pessoas escrevem a mesma
cena, cada um de modo próprio, e tentamos decidir mais tarde qual versão funciona melhor.
Assim, um escritor assume o comando das cenas passadas no teatro, e outro as cenas com a criança...
Não, de maneira nenhuma. Todo mundo trata cenas em todos os pontos da história. É realmente livre, o que é necessário é que em determinado momento nós tenhamos, entre nós quatro, coberto a história como um todo. Dentro da narrativa, o facto de que nós passamos de uma cena escrita por um homem para outra escrita por uma mulher traz uma diversidade de sentimentos, de relação com o mundo, que é o que eu procuro. A escrita masculina e feminina são frequentemente muito diferentes.

Há uma diferença geracional, bem como aquela de género, por exemplo, entre Arlette Langmann e Caroline Deruas
Sim, isso também importa, mesmo que eu não acredite que seja tão importante.
É este argumento partilhado muito fiel ao que vemos no filme ou houve espaço para mudança?
É a história que escrevemos, como a escrevemos, mas houve uma grande liberdade na filmagem. Há partes improvisadas, o que escrevemos não foi utilizado obrigatoriamente nos diálogos; muitas vezes é a “situação pela situação” que me interessa. Quando a cena está escrita, favorecendo a situação relativamente ao diálogo ou ao próprio drama, os actores têm espaço para improvisar.
Quanto é que Louis se envolveu no script? Desde o início que sabe que ele vai desempenhar o papel, este é o vosso quarto filme juntos, ele é seu filho... É difícil imaginar que ele não tenha influenciado a personagem, que também tem o seu nome...
Ele não se envolveu directamente, mas é claro que nós, os argumentistas, sabíamos que ele ia interpretar o papel. A sua personagem foi escrita tendo em conta os laços pessoais que ele tem com tal e tal situação, e, claramente, o Louis do filme assemelha-se a ele. Eu tive a sorte de ter sido capaz de o estudar como actor durante um longo período de tempo, da mesma forma como o fiz com o meu pai quando eu era mais jovem. Foi uma grande ajuda para mim. Além disso, Louis é muito bom a improvisar, eu sei que dentro da moldura e enquadramento que lhe demos, ele vai saber como inventar, que o vai desenvolver bem, trazendo coisas que “vêm” dele.
Isto implica deixar aos actores muito espaço.
Sim. Quando Louis diz que as cenas não devem ser demasiado vinculativas, ele está certo. Essa abertura permite tanto o que está escrito como o que é improvisado, para alcançar uma certa unidade, uma verdade. Para mim, fazer o filme significa, em grande parte, garantir que isso aconteça. Como se o fosse definindo à medida que se vai filmando. Quando faço um filme eu não quero apenas terminar um projecto que o teria precedido. Não há fantasia no filme seguido apenas da sua fabricação: isto seria apenas a prática. Na escrita e na filmagem, algo toma forma, algo aparece no acto de fazer. Como a canção do
fim que diz: “Coloque o seu fardo aqui”.
Quando se fala de improviso, sobre o filme que aparece no momento em que está sendo feito, isso significa que filma sem saber o que vai acontecer?
Não, de maneira nenhuma, trabalhamos muito em cada cena. Primeiro, durante os ensaios, depois na rodagem, em seguida, depois de se terem decidido as posições de câmara, e, ainda, após a iluminação ter sido organizada, o som, etc... até esse momento ainda não filmámos nada. Somente quando todos se sentirem preparados é que digo "Acção!" E, em princípio, só fazemos um take. A menos que haja um incidente grave que necessite de um segundo take.
Por que filma em scope? Isso ajuda-o na sua forma de trabalhar?
É o único luxo relacionado com a imagem a que eu tenho acesso. Eu uso o verdadeiro scope anamórfico, 35mm. Dá excelentes resultados, principalmente - e paradoxalmente - em lugares muito apertados. Este sistema de filmagem permite que a câmara capte os pormenores nas margens extremas da imagem, dando-lhe um alcance que os outros métodos não oferecem. Mas para isso precisa de um excepcional cameraman, como Jean- Paul Meurisse, que é capaz de filmar em scope com uma câmara portátil na perfeição. Foi assim que a maioria das cenas foram filmadas.
Há algumas escolhas de framing muito fortes, tão mais poderosas quanto não são exigidas pela narração. Em particular, os close-ups que ocorrem frequentemente, quando o que deve ser dito já foi dito, e que funcionam de uma maneira diferente.
Isto vem do cinema mudo. Fiz cinema mudo, eu adoro filmes mudos. Eles deixaram a sua marca em mim, mesmo que saiba que nunca vou voltar a ter a possibilidade de fazer um. Eu adoraria, embora… tenho certeza de que saberia como fazê-lo. Para certos closes-ups usei lentes especiais, desenhadas para filmar a partir de muito perto, que permitem aos rostos uma incrível expressividade.
Está a trabalhar com Willy Kurant como D.F. como uma espécie de continuidade da sua longa colaboração com William Lubtchansky?
… e Raoul Coutard. Precisamente. Os três carregam uma história excepcional; fizeram os filmes mais rápidos de sempre. A partir dos anos sessenta e isto não pode ser esquecido. Willy Kurant fez desde então Masculino Feminino ou Skolimowski’s The Departure. Estes três foram os criadores da Nouvelle Vague, e como os realizadores ou actores, autodidactas que construíram o seu próprio conhecimento, a sua própria capacidade de responder às situações.
Exigiu algo em particular relativamente à imagem?
Para o meu filme anterior That Summer, fundamentado na cor, pedi a Willy Kurant um efeito guache, em vez de um efeito de pintura a óleo como a maioria das imagens coloridas em cinema. E aqui, no Ciúme, a preto e branco, pedi-lhe o efeito de carvão vegetal, ao invés de lápis preto. E ele fê-lo muito bem. Como Coutard ou Lubtchansky, ele percebe estas exigências. Eles trabalham a fotografia, a luz, o filme em si, quando não foram talhados para isso, em princípio. E - e isto é o mais importante - com Willy, como também com Raoul ou William, assim que definem o local do “spot”, eles sabem exactamente como posicioná- lo de modo a que os atores pareçam bem. Imediatamente! E para todas as cenas, sem nunca repetir-se. É excepcional, especialmente quando tem que se filmar muito rápido, como fizemos.
Filma Anna Mouglalis, em particular o seu rosto, como nunca vimos antes.
Não há nenhum truque especial, não pedi para ela fazer nada de especial relativamente à sua aparência, isto acontece da forma mais obscura. A relação entre a nossa vida e o que filme representa para nós… um filme tem sempre a sua “própria história”, o seu “próprio lugar”. Isso é o que deve ter acontecido. Mais uma vez, não se deve absolutamente tentar fazer algo que foi planeado com antecedência. É por isso que o cinema é uma arte colectiva, ele pode receber tudo o que vem de quem participa, salvaguardando apenas uma condição: que lhe permita essa possibilidade.

Procura a relação com a vida de um modo mais preciso, mais directo do que muitos cineastas. Ciúme é um filme sobre relações de casal, relações pais-filhos, co-escrito com Caroline Deruas, interpretado por seu filho e sua filha...
Sim, é quase uma operação química, misturei elementos, tornando-os mais visíveis e mais rápidos, mas com a ideia de que ela diz respeito a todos. O que eu faço aparecer é como um pigmento que dá cor, de alguma forma, a todas as vidas. O título Ciúme refere-se a este fenómeno e parece-me que toda a gente sabe imediatamente do que se trata, todos já sentiram isso em suas vidas, desde a infância, em múltiplas formas.
A actriz Esther Garrel é também sua filha e irmã de Louis. O que procurava quando a escolheu para o papel?
É o aspecto documental do filme. Esther é a irmã de Louis, ela interpreta a irmã de Louis e eu estou retratando os meus filhos. É tudo o que posso dizer.
Teve alguma particular dificuldade a dirigir Olga Milshtein, a menina que interpreta Charlotte filha de Louis?
Não. Ela é a filha de alguém que conheço, que trabalha no filme. Eu tinha notado que ela era muito engraçada, com muita presença. Mas fiquei preocupado; realmente nunca tinha dirigido uma criança. Arlette e Caroline tinham escrito cenas de Charlotte e quis saber como estava indo para continuar a fazê-lo. Acontece que Jacques Doillon, que é muito melhor do que eu com as crianças, também tinha notado Olga, e tinha filmado Un Enfant de Toi com ela. Assim, ele ensinou-lhe como estar na frente de uma câmara e eu beneficiei com isso. Eu não fiz nada de especial, vi-a a fazer as suas cenas com os outros actores, e ela gostou. Foi praticamente a mesma relação que tive com os outros actores, a maioria dos quais eu ensinei no Conservatório - incluindo Louis, mas não Anna, que fez os seus estudos no Conservatório, mas não comigo. Olga era uma "antiga aluna" de Jacques Doillon.
Como surgiu a cena inesperada quando Anna Mouglalis lava os pés do velho escritor?
A partir do desejo de uma imagem. No argumento, ela faz-lhe uma massagem. Eu pensei que isto seria mais bonito. Algumas ideias visuais - neste caso, claramente, uma referência à história sagrada e à arte – adquirem o seu lugar na construção da cena durante as filmagens e, consequentemente, transformam-na. Uma jovem mulher lavando os pés de um homem velho é uma imagem clássica que em um momento encontra o seu lugar. Aqui, novamente, esta forma de usar uma poderosa imagem visual carregada de história, vem do cinema mudo.
Um dos principais aspectos do filme são os pais. De Louis e Esther, pai ausente, já falecido; e os pais substitutos que Louis e Claudia encontram - o velho professor e o velho escritor. Será que os pais substitutos aparecem como que “um padrão num tapete”?
Sim, das mulheres. Arlette Langmann e Caroline Deruas. Cada uma escreveu uma cena com um homem velho. Tendo gostado de ambas as cenas, mantive-as. Queria filmar actores mais velhos, pessoas que representaram muito, mas cujos rostos não fossem
conhecidos. O meu pai apresentou-me a dois actores, Robert Bazil e Jean Pommier. Um já estava a trabalhar em Wild Innocence e outro em Regular Lovers.
Porque escolheu Jean-Louis Aubert para a música?
Há muito tempo ouvi dizer que ele gostaria de trabalhar comigo em um clip de música. Na altura, eu não podia, mas a ideia permaneceu. Quando o seu mais recente CD "Roc'éclair" saiu, ouvi-o dizer, numa entrevista, que estava ligado à morte de seu pai. Caroline comprou- me "Roc'éclair", e achei a forma como ele evocou o que sentiu, sem o mencionar, muito bonita. Mais tarde, durante as filmagens de Ciúme eu estava à procura de uma ideia para a música, algo simples. E o meu director de produção, Serge Catoire, sugeriu entrar em contacto com Jean-Louis Aubert. Mais uma vez, os elementos encontraram o seu lugar. Mostrei a Aubert o filme, ele gostou e começou a escrever a música imediatamente. Todo o filme foi feito assim: muito rápido, mas também muito simplesmente.
Pediu-lhe algo de particular?
Não, eu só lhe disse que sentia que deveriam ser como canções, só que sem letras. Foi o que ele fez, ele entendeu muito bem.
Há uma espécie de continuidade na música dos seus filmes.
Sim, privilegio a música escrita por músicos de rock, mas baladas... como John Cale fez para alguns dos meus outros filmes, este tipo de música realmente serve-me bem. Há provavelmente uma coisa geracional com esse tipo de música, desde os meus primeiros filmes, a partir de Les enfants désaccordés em 1964 e Marie pour mémoire em 1967. Mas tudo se resume aos encontros; fazemos filmes com o que encontramos pelo nosso caminho de vida.
"Ouvre ton Coeur" (Open Your Heart), a canção nos créditos finais, não foi composta para o filme.
Não, Jean-Louis Aubert tinha acabado de a escrever quando nos encontrámos. Assim, ele disse-me: Estou trabalhando nisto, e cantou-a para mim depois de eu lhe ter mostrado o filme. Ele e eu concordámos que ela se iria encaixar muito bem.
Jean-Michel Frodon


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