SÓ OS AMANTES SOBREVIVEM, 21 OUTUBRO, 21H30, IPDJ


SÓ OS AMANTES SOBREVIVEM
Jim Jarmusch
Reino Unido/ Alemanha/ Grécia, 2013, 123’, M/14


FICHA TÉCNICA
Título Original: Only Lovers Left Alive
Realização e Argumento: Jim Jarmusch
Montagem: Affonso Gonçalves
Fotografia: Yorick Le Saux
Música: SQÜRL (Jim Jarmusch, Carter Logan, Shane Stoneback), Jozef van Wissem
Interpretação: Tom Hiddleston, Tilda Swinton, Mia Wasikowska, John Hurt, Anton Yelchin, Slimane Dazi
Origem: Reino Unido/Alemanha/Grécia
Ano: 2013
Duração: 123’





CRÍTICA
Escusado será dizer que os amantes do novo filme de Jim Jarmusch (um casal very british: Tom Hidelleston e Tilda Swinton) vêm de tempos imemoriais, de uma ideia de Éden, ou não se chamassem eles Adam e Eve... Em montagem paralela, o cineasta começa a aproximá-los ‘magneticamente’.
Adam vive num decadente palacete dos arredores abandonados de Detroit (e não é Detroit por acaso...), ao lado de guitarras raras, amplificadores e gravadores em banda magnética. Eve vive em esconderijo mais quente, nos becos e ruelas de Tânger, perto do seu iPhone e de um Christopher Marlowe (o pequeno papel de John Hurt evoca o dramaturgo elizabetano) que assume no filme o papel de figura paterna. Adam e Eve não se veem há muitos anos. Andam por cá, na Terra, há séculos e séculos, privaram com Shakespeare e Byron (“esse pomposo...”), conheceram Proust e Kafka. São vampiros dândis, chiquérrimos, têm aura de estrelas rock e só bebem ‘sangue vintage’ (tipo O negativo). Só que Eve, através de uma videochamada, percebe que Adam não está bem e decide rumar a Detroit para um reencontro que nada tem de paradisíaco. Mais tarde, e após a visita da irmã dela que os considera um par de “snobes condescendentes”, é Adam quem vem com a amante para Tânger à procura de melhor sorte: é que os humanos, esses filisteus a que o filme chama de zombies, estão a dar cabo do mundo. A contaminar a sua beleza.


Jim Jarmusch vinha de um filme que se encaixou muito mal na sua filmografia, o muito poseur e conceptualmente confuso “The Limits of Control”. Também aqui, como sempre em Jim, se falava de um inquérito ao romantismo e à solidão, de uma Humanidade prestes a ruir num mundo em que já não dá vontade de viver. “Só os Amantes Sobrevivem”, pelo contrário, é puro sangue novo. Embora Jarmusch parta de ‘família conhecida’ e com tradição na história do cinema (a do filme de vampiros), opera a esse género já de si fantástico uma torção assinalável que apaga todas as suas convenções: ora cruza, saindo imaculado da ousadia, os seus sedentos heróis com a mitologia rock (não nos sai da cabeça o ‘Can’t Hardly Standing’, de Charlie Feathers, uma das belas escolhas musicais do cineasta), ora descobre na narrativa um tempo muito estranho que é coisa para se saborear devagar, com prazer.
Adam e Eve, heróis imortais, podem estar separados pelo espaço, mas não estão separados pelo tempo. Esse tempo (figurado na rotação do disco da sequência inicial) é uma espiral, uma trip sem fim que, de facto, não se concluirá, tal como não se concluía a viagem de William Blake no túmulo da sua piroga indiana em “Dead Man”. O que nos diz Jarmusch? Talvez nos diga que o desejo de exílio da natureza humana é tão predador e tão eterno como a vida das suas criaturas crepusculares e sem consolo. E também Jarmusch renasce aqui, através de Adam, através de Eve, um filme em que temos vontade de ficar para sempre.
Francisco Ferreira, Expresso, 13/6/14


ENTREVISTA AO REALIZADOR
[...]
“Only Lovers Left Alive” é filme de doces apocalipses, a cruzar a mitologia vampírica com a mitologia rock. Tem nome de film noir americano, ou de série B, e não é exagero dizer que inaugura um subgénero. Traz uma história de amor, a de Adam e Eve (!), vampiros ‘civilizados’, ligados por uma paixão de séculos, e que agora se abastecem de sangue tipo O negativo nos hospitais — só que a raridade está cada vez mais cara e o sangue dos humanos, a que o filme chama de “zombies”, anda cada vez mais contaminado. Adam vive nos arrabaldes abandonados de Detroit, numa casa-estúdio recheada de guitarras e amplificadores. Eve está em Tânger, cidade que acolheu o decano dos vampiros, Marlowe (John Hurt). Ela começa por ir à América ver Adam, recebendo entretanto a visita da sua irmã, também sedenta (Mia Wasikowska). Mais tarde, é ele que vem a Marrocos, noutro filme de Jarmusch em trânsito entre cidades, com o cineasta a encarregar-se também das malhas de guitarra e da seleção de uma banda sonora sublime.
Como é que chegámos aos vampiros?
É uma velha história. A Tilda Swinton disse-me em tempos num festival que eu tinha passado a vida a fazer filmes de vampiros. Isto foi muito antes da rodagem de “The Limites of Control”, em que ela própria entrou. O argumento começou aí, e depois eu inspirei-me um pouco num dos últimos livros de Mark Twain, “The Diaries of Adam and Eve”, embora o filme, apesar dos nomes das personagens, não lhe fazer referência direta. A Tilda é uma mulher fantástica. Tem uma inteligência rara, interessa-se por mil coisas diferentes, da cultura underground à geologia. E é uma grande cinéfila. Acabei por escrever este papel para ela.
Quem são aqueles dois amantes?
São seres marginais, boémios à sua maneira e muito sofisticados. Atravessaram o mundo, estão cá há séculos e viveram sempre no lado mais obscuro da sociedade. E são vampiros, embora não partilhem uma história banal de vampiros. Aquele comentário de Tilda tinha-me marcado. Eu nunca havia pensado nisso, mas os vampiros são criaturas da sombra, são outsiders em que me reencontro e reconheço. Vivem de noite, como eu vivi quase sempre. E são profundamente humanos na sua busca incessante de sangue. Às tantas, comecei a pensar nisto: como seriam as nossas relações e a nossa experiência se vivêssemos ao longo de séculos? Conseguiríamos suportar tanta nostalgia? Não o sabemos, mas este recuo sobre a história da Humanidade intrigou-me. Depois há aquela ideia de que os vampiros encarnam uma forma de apocalipse. Adam e Eve começam a aperceber-se que a extinção está próxima. Descobrem que se tornaram metáforas da atual vida humana e que estão vulneráveis aos comportamentos irrefletidos dos homens.
São, contudo, vampiros diferentes: Adam é músico, tal como você, vive no recato de um subúrbio de Detroit, Eve usa as novas tecnólogias, adaptou-se ao presente e é ela que toma a iniciativa. Digamos que o Adam é mais vintage. Você também é assim?
Sim, sou como o Adam. Não sou ‘o’ Adam, mas sou como ele. Vejo-o facilmente integrado no movimento nova-iorquino que me lançou. Ele é guitarrista, e a música que faz é bastante minimal. Detesta o virtuosismo, como os músicos em torno dos quais eu girava quando comecei a fazer filmes, os Ramones, os Television, a Patti Smith, os Heartbreakers, e depois os Talking Heads.

Esse tempo foi importante para si?
Foi, porque havia uma liberdade de espírito muito grande no fim dos anos 70. Vivíamos em dissidência absoluta, uma coisa romântica e muito fora da lei. Líamos os poetas malditos do século XIX. Nessa altura, eu só queria tocar guitarra e escrever poesia, tinha uma banda, não pensava em fazer cinema.
O Adam é daqueles tipos que ainda prefere o analógico ao digital...
É uma questão de bom gosto. Ele é um romântico puro, é mais sensível e mais frágil do que Eve, mas os meus filmes falaram quase sempre disso, de mulheres desembaraçadas e de homens recolhidos nos seus próprios problemas. Por outro lado, não acredito que as novas tecnologias nos tenham dado mais conforto, pelo contrário. Não tenho e-mail, prefiro passar o tempo a fazer outras coisas.
Quais?
 A ler, a tocar, a escrever argumentos ou simplesmente a conversar com a família e os amigos.
Os seus filmes alimentaram-se sempre de um cinema de género. Tinha alguma predileção especial por filmes de vampiros?
Hum... Lembro-me de ver em criança o “Drácula”, com o Bela Lugosi. E o “Nosferatu”, de Murnau. São filmes que marcam. Eu cresci em Akron, no Ohio, uma terra que detestava. A minha mãe era crítica de cinema num jornal local e chegou a entrevistar o Humphrey Bogart. Acho que o que mais me interessou foi ver como o estereótipo do vampiro se foi alterando no cinema, do “Drácula” de Tod Browning aos filmes da Hammer, do “The Fearless Vampire Killers”, do Polanski, ao “The Hunger”, do Tony Scott, até filmes contemporâneos em que os vampiros já não têm de responder aos clichés do costume, como em “The Addiction”, do Abel Ferrara. Ah, e há ainda o “Vampiro” do Dreyer, claro. Eu também quis entrar nesta família. Deixar a minha marca. Com vampiros que andam de luvas brancas e de óculos escuros.,.
Como é que encontrou aquela casa de Detroit em que vive o Adam?
Procurámos um décor assim, e quando o encontrámos disse a mim mesmo que não me importava de viver ali. Depois havia pessoas da equipa que me diziam: “Jim, mas isto parece a tua casa”. Eu também tenho velhas guitarras em casa, amplificadores dos anos 50. Precisava de um ambiente que me fosse familiar. E Detroit não é Detroit por acaso. Eu cresci na zona de Cleveland, a menos de 200 milhas, e minha adolescência Detroit era uma cidade mítica. Um dia parti para lá à boleia, debaixo de frio e chuva, para ver um concerto dos MC5, que foi anulado. Fui recolhido por um bando de hippies que me encheram a cabeça co suas ideias e me fizeram fumar charros. Os The Stooges, de Iggy Pop, também estavam em Detroit.
Mas a cidade que você filma é a Detroit atual, em ruínas, entregue ao abandono... É uma cidade fantasma com um passado musical glorioso que Adam, de certa forma, ainda representa. Detroit tornou-se um símbolo do declínio do império norte-americano. A crise rebentou aquilo tudo, 70% das casas do centro estão desocupadas, há escolas desertas, parece que estamos em Chernobyl. A população negra teve de partir e vive agora a milhas do centro, em bairros sem eletricidade. Esta ideia da queda do sonho americano sempre me impressionou muito, está em todos os meus filmes desde o “Stranger Than Paradise”. Mas, apesar de tudo, Detroit ainda tem vida. Há muitos artistas e muitas associações que se criaram. Estão a tentar salvar a cidade do “ruin porn”, que agora se tornou uma coisa um bocado chique. 

E Tânger?
Bom, Tânger é a eternidade. A cidade que tantas civilizações tentaram tomar e que ficou sempre na mesma. A cidade da beat generation e dos Stones. Gosto de lá estar, gosto do seu lado cosmopolita e dos vendedores ambulantes poliglotas. Gosto da cultura ligada ao haxixe. Vemos a Espanha no horizonte, mas ao mesmo tempo esta a ‘milhares de quilómetros’ de distância da Europa. Os meus vampiros, ali, só podiam sentir-se em casa.
A última: porque é que começou o filme com um plano picado sobre um gira-discos?
Porque o movimento circular do disco responde à errância das minhas personagens. Elas estão condenadas à vida infinita. A estrutura também segue essa forma circular, tal como “Dead Man”. Aliás, acho que estes dois filmes têm muitos pontos em comum. De todo que fiz, são os meus preferidos.  
Francisco Ferreira, Expresso, 7/6/14


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