ela não está cá esta noite, mas o filme premiado que realizou sim:


Pelas Sombras, Catarina Mourão.

IPJ, 21h30 (Extensão Indie)

Uma mulher, os seus gestos e o seu paraíso privado. Aida e o seu palácio goês em "A Dama de Chandor" (1998)? Não, Lourdes Castro, artista plástica, e o seu jardim madeirense em "Pelas Sombras" (2010).
Mas é claro, concorda Catarina Mourão, 39 anos, há relações inescapáveis entre estes seus dois documentários sobre mulheres, casas e um microcosmos. É com humor, aliás, que a realizadora expõe o seu hipotético "fetiche" por pessoas "que têm muito tempo atrás de si", pessoas "com mais de 70 anos" ("se calhar sou eu própria precocemente envelhecida", ri-se).
"De facto houve momentos em que senti que estava a espelhar coisas: por exemplo, sempre que filmava rituais como os de abrir janelas. Mas há diferenças, e têm a ver com a relação estabelecida com as personagens". Estamos novamente de acordo.
"Em 'A Dama de Chandor' fui buscar aquela mulher para explicar um contexto: o da Índia portuguesa. A Aida começava logo por dizer que era da Índia portuguesa. Em 'Pelas Sombras' não tive a preocupação do contexto, de dar informação. Não me interessava fazer um retrato de artista. A Aida estava-se nas tintas para nós. A sua obsessão era a casa" - e aquele aristrocrático pragmatismo na forma como geria um mundo que acabou e que preservava sem excessiva generosidade para com a curiosidade dos que o visitavam. Por isso, a realizadora limitou-se a observar, "tentando apanhar as coisas à medida que elas iam acontecendo."
Em "Pelas Sombras", pelo contrário, "houve uma fusão com a casa, com o acto criativo". Coisa viva.
"A construção do filme foi muito baseada na minha relação com a Lourdes Castro. 'Pelas Sombras' também é um documento sobre a minha relação com ela." Uma relação construída no tempo, pelo tempo. E o tempo, fundamentalmente, constrói o filme. Que acaba por se transformar num "objecto" produzido por um Éden, aquele, contaminado por ele, pela luz, pela água, pelas sombras. Resultado: "Pelas Sombras" também é uma produção Lourdes Castro - o filme espelhará, aliás, uma espécie de co-autoria -, também é feito de luz e de sombras, é um objecto que pode habitar também a casa.
"A Lourdes é, de facto, de uma lucidez impressionante. Aquele é um Éden construído. A obsessão pelo presente, por desfrutar o presente, a desaceleração... tudo isso influenciou-me. Foi um filme feito por etapas, porque a Lourdes tem o seu tempo. É engraçado porque eu pensava que podia ser uma manta de retalhos, mas aquele tempo foi entrando em mim de forma inconsciente."
"Quando a conheci, não conseguia decifrar o que ela era", continua Catarina Mourão. "Ela é muito zen, e eu não sou nada assim. Em certos momentos achei que aquilo podia ser treta. Mas descobri que há um lado de solidão. E que ela não pode estar sempre a construir uma personagem. Faz sentido viver assim".
O filme estreou no Museu de Serralves, Porto, com a exposição "A Luz e a Sombra", antologia do trabalho de Lourdes Castro e Manuel Zimbro. Catarina Mourão testemunhou "reacções incríveis, muito emotivas, do mundo das artes plásticas".
Vasco Câmara, Público
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ENTREVISTA
Sempre admirou Lourdes de Castro e a sua arte, o "caminho de depuração" que levou a artista ao Teatro de Sombras e ao seu jardim. E foi esse momento de absoluta "harmonia entre a vida e a obra", em que deixou de ter sentido para ela fazer objectos para pendurar na parede que Catarina Mourão quis revelar no seu filme. Pelas sombras, que acaba de estrear no auditório do Museu de Serralves é a revelação de um retrato da artista no quotidiano da sua casa e do seu jardim.

Mas o próprio filme de Catarina Mourão, autora entre outros de A Dama de Chandor, Desassossego ou A minha Aldeia já não mora aqui, foi um "caminho", uma descoberta ao correr do tempo e há uma década que a ideia germinava do universo de Lourdes de Castro e da cumplicidade entre a artista e a cineasta.

O que essencialmente procurou captar e sublinhar com o seu filme?

Procurei trabalhar a ideia de que é possível falar sobre uma vida, um percurso, sempre a partir de um microcosmo.

Através do quotidiano da Lourdes percebemos outras questões que transcendem a sua arte mas que a marcam obviamente. Por exemplo a forma como estamos cada vez mais rodeados de betão e ainda tão pouco acordados para a defesa da natureza, para a nossa defesa. O filme tem uma mensagem ecologista, mas também uma dimensão filosófica. "O que é a vida? Qual o nosso papel enquanto aqui estamos?"

Por que decidiu fazer este filme? O que a motivou no trabalho da artista ou no seu percurso?

Sempre fui uma admiradora do trabalho da Lourdes de Castro, há uma dimensão plástica muito forte, mas também uma grande inteligência e sentido de humor. Por outro lado sempre me interessou a atitude por trás do trabalho, o caminho de depuração que Lourdes foi fazendo, até chegar ao Teatro das Sombras e ao jardim. E foi este percurso afinal que me motivou a fazer o filme, queria perceber e revelar este momento da vida da Lourdes em que para ela deixou de fazer sentido "criar objectos para pôr na parede".

Fui percebendo que a chave desta revelação passava por um retrato do quotidiano de Lourdes hoje na sua casa e no seu jardim.

Por outro lado já nos meus filmes anteriores havia esta preocupação de trabalhar sempre a partir do tempo presente, do quotidiano, e nesse sentido o meu caminho e o da Lourdes cruzaram-se de certa maneira.

Teve surpresas?

Antes de arrancar para o filme, sinto que já estava bastante próxima do universo da Lourdes de Castro, no entanto é evidente que com o passar do tempo o retrato desse universo se torna mais rico e complexo. Hoje aquilo que me continua a surpreender no seu universo é uma capacidade incrível de estar atenta ao pormenor e de conseguir uma harmonia muito grande entre a sua vida e a obra.

A criatividade e o prazer em fazer as coisas estão sempre presentes em qualquer gesto, independentemente deste resultar numa obra da artista ou se esgotar no quotidiano.

Como foi a experiência de rodagem do filme?

Como todos os filmes foi um caminho, onde temos de fazer escolhas. Neste caso tratandose de uma personagem é um caminho que passa por conhecer essa pessoa e perceber como vamos representá-la no filme. Por muito que tentemos que a pessoa filmada se reveja no retrato que dela damos, no fim há sempre uma construção da personagem e do seu mundo. Há uma história que se quer contar que tem uma verdade, um ponto de vista e que não pode conter todas as verdades. No caso deste filme com a Lourdes de Castro, houve momentos em que essas escolhas foram bastante discutidas entre nós as duas.

Foi difícil trabalhar com ela, dada a reserva que a parece caracterizar?

Há alguma história que possa contar? Os primeiros contactos com a Lourdes aconteceram há mais de dez anos, o filme é o resultado também dessa aproximação, dessa confiança. No início há sempre mais filtros e barreiras, tanto ela como eu estávamos a descobrir quem era a outra. Depois é um pouco difícil verbalizar, é uma relação afectiva e como em todas há momentos de maior cumplicidade e momentos onde é preciso trocar ideias, mas no fundo esse caminho acontece naturalmente. Houve momentos em que senti que ainda não tinha uma ideia clara do que este filme ia ser, ele foi tomando forma na rodagem e depois mais tarde na montagem e lembrome de perguntar à Lourdes se ela conseguia perceber o que eu estava a fazer a partir das cenas que ia filmando. Ela respondeu-me que neste momento parecia-lhe que eu tinha uma data de post its uns em cima dos outros e que ainda não havia um fio condutor... mas que eu havia de o encontrar... e era verdade. Aprendi com a Lourdes a ter menos pressa.

Pelas Sombras foi marcante no seu próprio trabalho, de que maneira marcou o seu cinema?

Ainda é cedo para eu conseguir fazer essa reflexão, não sei de que forma este filme vai marcar o meu cinema. Vejo-o como um filme que estabelece uma grande continuidade com os filmes que fiz antes, nomeadamente com o Desassossego e a Dama de Chandor, mas por outro lado julgo que se trata de um filme menos observacional de certa forma mais construído. Não há uma preocupação tão grande de informar ou dar um contexto, a motivação é sempre levar-nos a mergulhar num ambiente, num universo. Não sei. Devolvo a resposta a esta pergunta aos espectadores...

Leonor Nunes, Sapo

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