O vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro é uma pequena surpresa - um filme "mainstream" como Hollywood já deixou de saber fazer há muito tempo.
Há um problema muito sério a encimar qualquer abordagem a "O Segredo dos Seus Olhos": foi a este o filme que a Academia de Artes e Ciências de Hollywood atribuiu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, no ano em que concorriam à estatueta "Um Profeta", de Jacques Audiard, e "O Laço Branco", de Michael Haneke. Como é possível, perguntar-se-ão os mais atentos, que dois dos mais extraordinários filmes europeus recentes, entre eles uma Palma de Ouro em Cannes, tenham sido negligenciados em favor de um filme argentino que vinha apenas com a reputação de ser o maior êxito comercial da história do cinema local?
Obviamente, tal "escândalo" só o é se partirmos do princípio de que os Oscares premeiam a qualidade acima de tudo o resto - coisa que já por repetidas vezes compreendemos não ser verdade. Mas este é um caso em que vale a pena deixar de lado os preconceitos. Mesmo se assumirmos que o Oscar foi roubado a "Um Profeta" ou a "O Laço Branco", "O Segredo dos Seus Olhos" é uma pequena surpresa. Primeiro, pela elegância e pela inteligência com que abrange e entrelaça géneros muito diferentes (o melodrama romântico, o filme policial, o "thriller" político) num todo plenamente satisfatório. Segundo (e principalmente), pelo facto de este ser um filme exemplar de um tipo de cinema "mainstream" inteligente, adulto, sóbrio, que Hollywood produzia em tempos desembaraçadamente mas que hoje abandonou por completo. Este podia perfeitamente ser um dos "thrillers" liberais dos anos 70, dirigidos por gente como Alan J. Pakula ou Sydney Pollack - e, nem por acaso, o filme passa-se de facto nos anos 70, na transição da Argentina liberal para a época peronista da repressão política e dos "desaparecidos", só que vistos a 30 anos de distância, pelos olhos de um antigo investigador judicial que recorda o crime que mudou a sua carreira e decide escrever um romance nele inspirado.
Oscilando entre o presente em que Benjamín recorda e o passado em que procura resolver quem violou e matou uma jovem na sua própria casa, Juan José Campanella constrói um elaborado quebra-cabeças onde a história se desenrola em três tabuleiros simultâneos. O mistério policial clássico com laivos de film noir, com o investigador no papel do "incorruptível" desencantado metido em cavalarias demasiado altas, desdobra-se ao mesmo tempo no melodrama de amores desencontrados que dá ao filme o seu centro emocional, e nas discretas alusões políticas que lhe dão um aroma simultaneamente histórico e claustrofóbico. Os acontecimentos de um nível reflectem-se nos outros de modos distintos mas constantes, com Campanella a não fazer mais do que uma adequadíssima gestão dos vários níveis em função do que a história lhe pede e do que o espectador precisa de saber.
Mais do que um "autor" como Audiard ou Haneke (as únicas notas de autor que se podem sentir em "O Segredo dos Seus Olhos" acabam por minimizá-lo: os planos "descentrados" algo óbvios e a única sequência de acção do filme, um longo plano-sequência trucado com câmara à mão que parece ter sido enxertado de um outro filme), Campanella está aqui do lado dos grandes funcionários de Hollywood que se moldavam àquilo que o filme lhes pedia e, no processo, construiram um modo de pensar o cinema com inteligência e lealdade que se perdeu completamente. "O Segredo dos Seus Olhos" não será a obra-prima que o Oscar faria pensar. Mas é, por onde se quiser ver, um exemplo de um cinema "mainstream" que não toma o espectador por parvo e que anda a fazer demasiada falta. Se o Oscar levar as pessoas a vê-lo, já não se terá perdido tudo.
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Jorge Mourinha, Público
Quando O Segredo dos Seus Olhos conquistou o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro, em Março deste ano, muita gente torceu o nariz em reprovação e/ou desconfiança pela escolha da Academia. Eu, admito, fui um deles. Não apenas como ‘adivinhador’ dos vencedores, como todos somos um pouco, mas acima de tudo como forte defensor de O Laço Branco que era e sou. A surpresa foi, portanto, compreensível, apesar de ter alertado, na minha antevisão desta categoria, para a possibilidade da Academia ir contra as expectativas. A verdade é que O Segredo dos Seus Olhos venceu mesmo e deixou a dúvida no ar, em todos aqueles que não haviam visto o filme, se havia ‘merecido’ ou não. Dois meses e pouco depois estreia finalmente em Portugal e essa dúvida pode ser tirada: a resposta é sim.
É sim por várias razões, mas a principal é o facto de ser um filme capaz de transmitir mil e uma coisas, de colocar na mesma tela, na mesma cena até, o melhor e o pior do que significa ser humano. Examinando e desconstruindo os conceitos de justiça e vingança, no seu significado mais lato versus a sua verdadeira natureza, o filme centra-se na figura de Benjamin Esposito (Ricardo Darín), um federal de justiça de Buenos Aires reformado, ainda assombrado por um caso por resolver, ocorrido 25 anos antes, em 1974. Ao decidir escrever um romance baseado nesse caso (em que uma jovem de 23 anos havia sido brutalmente violada e assassinada), Esposito depara-se com a necessidade de tentar resolver o caso uma última vez, ao mesmo tempo que redescobre o seu amor por uma mulher (Soledad Villamil) a quem nunca revelou os seus verdadeiros sentimentos.
Construído como thriller-crime convencional, contado através de flashbacks, O Segredo dos Seus Olhos é, efectivamente, um mistério cuja força propulsora se concentra no puzzle que se vai formando e na necessidade de descobrir o que, e como aconteceu. Mas essa é apenas a primeira de várias camadas de um filme complexo e exigente; debaixo dela escondem-se muitas mais. Como nos grandes filmes da era noir do cinema americano, o crime funciona como o elemento mais visível, escondendo-se atrás dele uma belíssima, mas subtil história de amor, um estudo sobre a memória, um olhar sobre a sociedade Argentina dos anos 70, sobre a justiça, a corrupção e a vingança.
É, no fundo, a sua dedicação ao estudo da condição humana que faz de O Segredo dos Seus Olhos um filme poderosíssimo e capaz de encapsular temas com os quais qualquer pessoa consegue facilmente identificar-se, independentemente da sua origem geográfica ou social. Enquanto que O Laço Branco e Um Profeta se concentravam em temas e lugares muito específicos, recorrendo também a técnicas muito próprias, o filme de Juan José Campanella dedica-se essencialmente à análise do homem pelo que ele é, do que faz da humanidade a humanidade: amor, paixão, ódio, inveja, fraqueza, luxúria, amizade, arrependimento, maldade, etc. É tudo isto e muito mais que nos define, quer recuemos ou avancemos no tempo, ou viajemos a qualquer ponto do planeta.
As personagens, e a forma como são interpretadas, ajudam igualmente a reforçar esse sentimento de empatia e identificação. Ao longo do filme não há um único momento em que pareçam nada menos que reais, o que provém tanto dos diálogos naturais de Campanella como das sólidas interpretações do elenco. Darín, interpretando o que são no fundo duas personagens diferentes – o Esposito jovem e optimista, que sorri frequentemente e manda piropos a qualquer mulher bonita, e o de 25 anos depois, desgastado, solitário e permanentemente invadido pelo sentimento de uma vida perdida – é fantástico, conseguindo fazer essa separação na perfeição. Villamil complementa-o, fazendo da sua personagem uma mulher forte, independente, dividida entre as suas obrigações e desejos. Destaque também para a fenomenal interpretação de Pablo Rago, como o marido da vítima, que nos mantém em constante dúvida sobre a sua natureza, e Guillermo Francella, como Sandoval, colega e melhor amigo de Esposito, responsável por grande parte do humor com que Campanella vai regando a película.
Complementando o elenco está o trabalho de Campanella por detrás da câmara que, nunca sendo exagerado, consegue manter o filme a um ritmo quase sempre perfeito, com opções estéticas que fazem dele visualmente atractivo, mas obtendo sempre um raro equilíbrio entre o que vemos e o que ouvimos, já que O Segredo dos Seus Olhos é em muitos sentidos um filme de diálogo.
Quando as palavras não têm destaque, a belíssima e clássica fotografia de Félix Monti assume-o, com imagens saturadas, ora estáticas ora dinâmicas, por vezes flutuantes, bem como a música de Federico Jusid e Emilio Kauderer, que reforça o ambiente a que Campanella aspira criar.
Na sequência central do filme, uma cena de perseguição ininterrupta de sete minutos, Esposito e Sandoval, após descobrirem que o autor do crime (cuja identidade é revelada na primeira meia hora) é um apaixonado adepto de futebol e do Racing Club de Avellaneda, localizam-no (de forma pouco provável, diga-se) num estádio Argentino no meio de 60.000 pessoas, seguindo-se uma perseguição a pé que se inicia nas bancadas, continua no interior do estádio, passando por uma casa de banho e acabando no relvado. Campanella e Monti fazem desta cena o ponto alto do filme ao filmá-la de forma rápida, estilística e feroz, como se de um filme de acção se tratasse, iniciando-a com um plano aéreo do estádio e descendo, claramente com assistência CGI, até ao público, furando por entre este até encontrar Esposito e Sandoval. É uma cena magistralmente pensada e executada, que se contrapõe ao tom literário e romântico de grande parte do filme e que por essa mesma razão o eleva.
O Segredo dos Seus Olhos tornar-se-á, acredito, um clássico do cinema, no futuro. Ilude em apresentar-se como mais um típico thriller baseado num romance, pois a forma como incorpora elementos de drama, noir e suspense distinguem-no como uma obra única que consegue ir buscar inspiração a Hitchcock e ao cinema americano em geral e mesmo assim manter-se distintamente sul-americano, conseguindo no entretanto agradar a Hollywood. O seu único defeito será o recurso frequente ao melodrama, que nunca ofusca o quão brilhantemente construído é, nem tão-pouco a sua extrema dedicação e atenção a detalhes, que o tornam natural e ao mesmo tempo imprevisível, qualidades insubstituíveis em qualquer thriller.
Indiscutivelmente um dos melhores filmes de 2010, até ao momento e provavelmente depois do ano terminar.
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Pedro Ponte, ante-cinema
Título Original: El secreto de sus ojos
Realização: Juan José Campanella
Argumento: Juan José Campanella e Eduardo Sacheri, a partir da novela deste último
Direcção de Fotografia: Félix Monti
Montagem: Juan José Campanella
Música: Federico Jusid e Emilio Kauderer
Origem: Argentina / Espanha
Ano: 2009
Duração: 127'
Classificação: M/16
2 comentários:
Eu sei que é o hype do momento e que, por norma, há uma programação delineada, mas seria pedir muito dedicarem umas sessões de cinema ao Brillante Mendoza?
E será que o Filme do Desassossego vai passar por cá?
Abraço,
Afonso
Caro Afonso,
também nós estamos atentos aos 'hypes' todos. :-)
mendonza passará, claro que sim.
filme do desassossego estamos em estado de choque, porque o filme não vai ser distribuido por nenhuma distribuidora, e sim pela produtora (quanto a este aspecto, tranquilos...). ora, as condições da dita cuja são:
aluguer do filme: 1000 euros!!!!! (habitualmente são 200!) + , obrigatoriamente, a vinda de 3 pessoas acompanhando o realizador - uma assistente de produção, um técnico de com e um técnico de imagem; pagando nós a estadia (hotel e alimentação) dos 4.
a alternativa é a produtora ficar com toda a receita, ou 80% dela, da sessão.
acha normal? nós não.
é exequível? nem pensar - nem o seria em condições normais, quanto mais nas que atravessamos...
pelo que:
1. iremos contactar o TMF (que em Junho, quando contactado pela produtora, recusou estas condições, mas, enfim, tentaremos mais uma vez) e a Ualg. ambos sem grande esperança, como é fácil de compreender.
2. iremos negociar com a produtora, para ver se conseguimos colocar tudo isto em parâmetros mais razoáveis.
abraço, e obrigada pelo contacto.
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