Co-organização com Associação Académica da Universidade do Algarve. Bar aberto.
Primeira (e fascinada) impressão: estamos perante um filme que se organiza como um programa de computador. Ou seja: entra-se na cabeça e sai-se da cabeça de John Malkovich como quem percorre um «link» que aproximaria o mundo tal como o conhecemos (ou julgamos conhecer) de um universo outro, gerido pelas regras de contiguidade da informática.
É, não há qualquer dúvida, uma experiência extrema — extremista, à sua maneira —sobre novas possibilidades de inventar e contar histórias. O mínimo que se pode dizer é que é também uma fabulosa iniciação a outros modos de ser espectador.
Talvez seja interessante insistir no facto de Spike Jonze ser um cineasta que vem do mundo dos telediscos (foi ele que fez, por exemplo, o magnífico «It’s Oh So Quiet», de Björk). Digamos que ele possui, dos telediscos, esse gosto pela colagem, não apenas de imagens muito diferentes, mas também de mundos estranhos entre si. Nessa medida, apetece dizer que «Queres Ser John Malkovich?» é um filme sobre a reconversão de todas as fronteiras — tudo se passa como se viajássemos entre os dados mais banais do quotidiano e os segredos mais íntimos de uma personalidade: e, entre uma e outra coisa, tudo é possível. Este é mesmo um cinema que podia ter como subtítulo: Tudo é possível.
Creio que uma das dimensões mais fascinantes deste filme (e também das mais perturbantes) decorre de um paradoxo muito calculado: é que a ambiência pode ser irrealista (de facto, não é todos os dias que alguém entra na cabeça de alguém), mas os dados de base são muito realistas. E o dado mais realista é, obviamente, John Malkovich a fazer de... John Malkovich. Nessa medida, este é também um filme sobre a sedução e a ilusão que podem estar associadas a um actor, em geral, e a uma estrela, em particular. Como se, agora, víssemos o interior do «star system» de Hollywood — literalmente, o interior: a máquina psicológica de ser uma estrela para si e para os outros.
No fundo, «Queres Ser John Malkovich?» funciona como um gigantesco programa de computador. Este é um filme em que a ficção se constrói por uma sucessão de «links», cada um deles mais inesperado que o anterior. Spike Jonze pertence, de facto, a uma geração de cineastas e narradores que estão a mudar a maneira de contar histórias. Por isso, «Queres Ser John Malkovich?» é também um filme sobre as novas formas de ser espectador.
www.beingjohnmalkovich.com — Isto é um «link»? Afinal, o que é um «link»? Uma porta, uma janela, uma página a seguir a outra página, uma dobra do mundo, uma ruga na pele de um corpo cósmico.
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João Lopes
É o sétimo andar e meio que dá acesso à cabeça de John Malkovich. Não o sétimo nem o oitavo, é o 7 e 1/2. A notícia espalha-se, e a fila dos que querem experimentar outra identidade - têm direito a 15 minutos - enche-se de rostos deprimidos. Dir-se-ia a "sopa dos pobres". É um retrato de depressão, porque os corpos têm de se dobrar pelos joelhos e nem mesmo assim as cabeças podem estar levantadas - é que o tecto é baixo.
Quando John Malkovich descobre o "complot" dos seus parasitas e dá de caras, aterrorizado, com uma fila de pessoas amontoadas num corredor de um edifício de Manhattan, a sequência é de pesadelo, o horror é "kafkiano". Além do mais, John Malkovich, ele próprio, não é bem ele próprio. Sim, é ele. Começamos por estar seguros daquilo que vemos – afinal, conhecêmo-lo dos filmes. Mas mais ninguém em "Queres ser John Malkovich?" acerta com os filmes em que ele entrou. E há sempre alguém que nunca ouviu falar de uma estrela de cinema chamada John Horatio Malkovich. O problema, se calhar, é o "Horatio": não pertence ao nome próprio do actor, é invenção de argumentista.
Ou seja, ele é e também não é. E o piso, o tal que está a meio entre o sétimo e o oitavo, é um limbo. Resultado: o espectador, e não apenas Malkovich, começa a sentir que alguém está a querer ocupar a sua cabeça.
Dentro do filme, a culpa é de Craig (John Cusack) e de Lotte Schwartz (Cameron Diaz). Abriram a "caixa de Pandora": descobriram uma porta que dá acesso a John Malkovich e são dos primeiros a experimentar as suas possibilidades.
Ele manipula marionetas e está zangado com o mundo porque ninguém lhe dá o valor que ele merece; ela tem o seu próprio jardim zoológico em casa. Craig e Lotte são um casal que se esqueceu de si, e o portal para Malkovich é a hipótese de vingar os falhanços. No caso de Lotte, que também perdeu algures a sua feminilidade, isso vai ao ponto de, através de Malkovich, se sentir o homem que quer ser e possuir outra mulher (Catherine Keener, em pérfida "alumeuse"). Portanto, frustração artística, falhanço humano. Todos querem ser o que não conseguiram ser, e ninguém vai deixar de infernizar a vida alheia.
A culpa última, essa, é do realizador, Spike Jonze, que contraria todas as possibilidades de "fantástico" que está no argumento de Charlie Kaufman (este diz que não precisou de fumar nada para o escrever, o seu cérebro é que se encarregou de fabricar todas as substâncias duvidosas que foram necessárias). Ao manter-se nos limites do "realismo", como se ele fosse uma incontornável casualidade, Jonze abre as portas a todos os deslizes, e não podemos deixar de escorregar neles, ficando sem referências de espaço e sem identificação possível com as personagens - não é que elas não existam; mas são vacilantes, estão sempre a escapar.
O espaço fica aberto à virtualidade, e uma estranheza monstruosa agiganta-se no interior. É a nossa cabeça a responsável pela distorção? Quem é que está a querer colonizá-la na sala de cinema?
Sim, "Queres Ser John Malkovich?" já foi considerado um filme da era da Internet, e Spike Jonze, homem de vários instrumentos, tem o perfil à medida do "artista do século XXI" - foi nessa base que se construiu o "hype" desta comédia, filme de culto de 1999 que valeu a Jonze chegar e vencer, com uma nomeação para o Oscar do melhor realizador.
Dito assim, é fácil imaginar "piscadelas de olho", artifício a rodos, enfim, um labirinto saturado de produção, até porque Jonze vem do videoclip, mundo de possibilidades que tem ao seu dispor o "state of the art" da técnica. Ora, em vez disso, "Queres ser John Malkovich?" é um filme anacronicamente artesanal: humano, desesperadamente humano. É uma fábula negra, negríssima, feita de personagens dilaceradas, cindidas na sua personalidade, ausen¬tes da sua sexualidade. Como se o surrealismo à Buñuel não se conseguisse despegar da agonia à Bergman.
À superfície, o tom é o de comédia absurda, que podia apenas ser "espertalhona". Ao fundo - não tão ao fundo; a angústia cola-se-nos à pele - desfila a desgraçada comédia da condição humana. Tão desgraçada como se estivesse inscrita nos princípios darwinianos de evolução da espécie. Atenção à personagem de Cameron Diaz e aos seus animais; atenção a um discreto chimpanzé. Como se verá, a culpa também está inscrita no macaco, e o filme faz da biologia da evolução um infernal mote de comédia negra.
Olhando bem para as personagens: elas parecem ter sobrevivido a uma catástrofe (o impressionante "low profile" da habitualmente exuberante Cameron concentra em si o abandono emocional de todos). Esse desastre é a sua própria e solitária humanidade. Não há como escapar.
Para regressar a Spike Jonze: atravessa o seu filme (como atravessa os seus videoclips), apesar dos malabarismos de argumento e dos prodígios da técnica (isto, nos vídeos), um apego, irónico e inevitavelmente trágico, ao que no homem permanece depois de todas as euforias, depois de todos os "pós qualquer coisa..." (do estilo, "depois da Internet"). Ou seja, a solidão. Para simplificar: é esse o optimismo de um filme que termina com um "happy end" que se recebe como um pontapé de humilhação.
Para voltar a John Malkovich: é bom ver um actor que nos últimos tempos não tem feito muito para disfarçar a sua preguiça e o enfado profissionais deixar-se, assim, assaltar pelo desconforto.
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Vasco Câmara
Título Original: Being John Malkovitch
Realização: Spike Jonze
Argumento: Charlie KaufmanInterpretação:John Cusack, Cameron Diaz, Ned Bellamy, Eric Weinstein, Madison Lanc, John Malkovitch
Fotografia: Lance Acord
Montagem: Eric Zumbrunnen
Música: Carter Burwell
Origem: EUA
Ano: 1999
Duração: 112’
Classificação etária: M/18
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