Filme Socialismo: «ainda é possível encontrar novos caminhos para o cinema». 2ªf, IPJ, 21h30, o mais importante filme desde há muito, muito tempo.


Filme Socialismo é o mais godardiano dos filmes de Godard

(...) Jean-Luc conta 80 anos e não está para brincadeiras. “Filme Socialismo” é arte na sua acepção mais “dura”. Embora, como estilo, remeta mais à filmografia dele dos anos 2000, como “Elogio do Amor” (2001) ou “Nossa Música” (2004), o longa reafirma um imperativo presente desde seu primeiro longa – “Acossado”, de 1960. Desde o princípio, Godard se propôs a firmar o cinema como arte moderna, tão rigorosa e polivalente quanto a pintura ou a literatura. E a identificar no diretor a figura autoral, ou seja, o artista propriamente dito, que imprime uma estética, assina a obra e por ela responde diante dos públicos.

Como se sabe, o ímpeto por autonomia artística/autoral inaugurou o modernismo da nouvelle vague, associada aos críticos-cineastas da geração clássica da revista Cahiers du Cinéma (Truffaut, Rivette, Rohmer, Chabrol et al), responsáveis por uma seqüência de obras plenas de estilo, ao longo dos anos 60. (...) O caso é que o diretor parisiense sempre se guiou pelo desejo de inovar, de reinventar formas, de reconstruir-se na sua trajetória cinematográfica, ultrapassando a si mesmo. Por um lado, desde cedo, sua excentricidade por assim dizer deliberada produziu uma mitologia ao redor de sua figura. Por outro, nem por isso, por essa vaidade, fica descaracterizada a robustez e originalidade de sua obra, repleta de guinadas e reavaliações.

“Filme Socialismo” ressalta um cinema de reinvenção, que efetivamente pensa o meio que o possibilita e produz – como suporte, dispositivo, metiê, linguagem, construção de sentidos etc. Modernismo oblige. Com “Filme Socialismo”, atinge-se um patamar que, na literatura, foi alcançado pela obra de James Joyce. Por mais anacrônica e leviana a comparação, o filme causa uma sensação próxima a ler “Ulysses” ou “Finnegans Wake”. Ou seja, provoca um misto de desafio, espanto e intriga. Entre Joyce e Godard traçam-se várias paralelas. Como nos romances joyceanos, em “Filme Socialismo” vislumbram-se o fluxo de consciência, a subjetividade transbordante, as múltiplas camadas narrativas de sentido – tudo isso numa colagem intrincada de signos e elementos do imaginário, da mitologia, da história, da política, do próprio cinema. Como em “Finnegans Wake”, o conjunto não admite síntese ou sinopse, numa lógica fragmentária, em que cada fragmento desestabiliza a narrativa como um todo e estilhaça o tempo-espaço. Sobram cacos de imagens e ruídos.



(...) Sobretudo, “Filme Socialismo” retoma a “História do Cinema” (1988-98), cujos 240 minutos são agora condensados para exprimir o sentimento do século, na sua irracionalidade, barbárie, incompreensão e tragicidade. Como na “História do Cinema”, a imagem não cessa de expor e expor-se, toma posição no fluxo da história e constitui uma memória. Realidade e ficção, história e cinema entretecem-se num mosaico incongruente. No conjunto, a descontinuidade domina nas várias instâncias: a montagem conflitiva, o áudio dissonante, o enredo em tríptico, a dramaturgia anti-diegética e a encenação des-dramatizante. Há uma enxurrada de citações dos mais diversos pensadores do contemporâneo, na boca dos personagens e do narrador em off.

(...) Com o tour de force de montagem, Godard tenta tirar lascas de questões graníticas e ultimamente insolúveis: representar o irrepresentável, exprimir o inexprimível, aceitar o inaceitável. Desvela-se assim a afinidade entre “Filme Socialismo” e a filosofia da história de Walter Benjamin. O filósofo sondava fragmentos da revolução no continuum da história. E admitia, como faz o filme, a natureza contraditória e problemática da cultura. Daí a melancolia que permeia o longa, consciente de seu caráter inescapável como parte do sistema, como integrante da tradição dos vencedores. Godard sabe que seu manifesto ultramoderno deve ser diluído e neutralizado, na lógica de consumo cultural de hoje. Mas não se mostra pessimista. É romântico.

Como uma filmografia tão prenhe de realismo, inspirada por André Bazin nos anos 1950, pode convergir a tão confesso socialismo utópico? Ora, o realismo autêntico tem a utopia em seu núcleo. “Filme Socialismo” é uma quimera. Não pode existir um filme assim e é precisamente por causa disso que tanto precisamos dele. Godard ainda pulsa.


Sabemos desde os seus filmes dos anos 60 que Jean-Luc Godard tem uma sensibilidade de sismógrafo. Pressente agitações subterrâneas antes de elas se notarem à superfície: "Made in USA", "La Chinoise" ou "Weekend" são os filmes que melhor explicam o Maio de 68, e foram feitos antes de Maio de 68. De resto, isto não é nada de mais: é apenas o que ele tem como o "dever do cinema", e faz por cumpri-lo.

É curioso notar, a este propósito, a quantidade de coisas que aconteceram no espaço central de "Filme Socialisme" (o Mediterrâneo) depois de Godard o ter feito: a Grécia ("Hell As") foi transformada num pária da Europa; outros países (a Espanha, a Itália, e mesmo nós, mediterrânicos por afinidade) fazem o possível para evitar que a Sra. Merkel ("na Alemanha nunca se passa nada", dizia-se no mais godardiano dos Fassbinders, "Der Amerikanische Soldat") os conduza ao mesmo destino; do "outro" lado, a Tunísia revoltou-se, o Egipto revoltou-se, a Líbia entrou em combustão e na Europa teme-se o momento em que um "líbio oprimido" se transforme num reles "imigrante". Só em Israel e na Palestina, por onde o navio de Godard também passa, é que aparentemente não aconteceu nada, o que é o mesmo que dizer que continua a acontecer tudo.

"Alheado do mundo", Godard? Só se para reconhecer o mundo já não dispensarmos a empática condução de Javier Bardem (aludimos ao tão celebrado "Biutiful", cuja Barcelona também é visitada por "Filme Socialismo", e não somos originais na alusão). Não veremos este ano filme mais ligado, mais "em linha", com o mundo do que "Filme Socialismo".



Uma descrição de "Filme Socialismo" diria que ele se divide em três segmentos identificáveis. Primeiro, a bordo de um navio em cruzeiro pelo mediterrâneo, onde há belíssimos planos do mar (um mar a que ninguém dentro do navio parece prestar atenção), escalas em várias portos, alguns passageiros notórios (nomeadamente um criminoso de guerra, maneira de mostrar como a sociedade encontrou maneira de albergar, sem fricção de maior, os "salauds" - que hoje, ao contrário dos de outras épocas, são "sinceros", ouve-se dizer no filme) e uma grande multidão que habita o navio deliciada com os seus "gadgets", os seus écrans (de telemóvel, de computador), o seu casino, sem ligar um chavelho ao mar e às cidades, perfeita metonímia da "civilização do consumo" vista como a "Metropolis" de Lang, mas uma "Metropolis" de Lang onde o "capitalismo" tivesse criado a ilusão "socialista" de uma "sociedade sem classes".

Depois, segundo segmento, a história de um pequeno comércio algures na província francesa, um pequeno comércio de gasolina (uma estação de serviço), quer dizer, petróleo, para ligar o particular ao geral, ligação que é (todo o mundo reflectido numa pequena porção espacial) o tema do segmento. Há televisões regionais, crianças que "jouent à la Russie", e o fabuloso encontro de um lama e de um burro - quer dizer, Bresson, quer dizer, "Au Hasard Balthasar" para a era da "globalização". Finalmente, terceiro segmento, "histoires du cinéma", Godard a montar excertos de filmes antigos, de cinema-sismógrafo, de cinema "em linha". Subjacente a todos os segmentos, uma prodigiosa textura (som + imagem), legendas, música, frases soltas, citações. O último plano é um écran negro com a inscrição "no comment".

E antes dele, justaposta a um "logo" do FBI com avisos a autores de "downloads" ilegais, esta frase: "quando a lei é injusta, a justiça passa antes da lei". Quem se lembrar de proposição mais subversiva para os nossos dias ponha o dedo no ar.

Luís Miguel Oliveira, Público



Título Original: Film Socialisme
Realização: Jean-Luc Godard
Argumento: Jean-Luc Godard
Direcção de Fotografia: Fabrice Aragno e Paul Grivas
Montagem: Jean-Luc Godard
Interpretação: Catherine Tanvier, Christian Sinniger, Jen Marc Stehlé, Patti Smith,
Robert Maloubier, Alain Badiou, Nadège Beausson-Diagne, Élisabeth Vitali
Origem: Suíça/França
Ano de Estreia: 2010
Duração: 101’

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