A Fantasia Lusitana não é de João Canijo. Foi de António de Oliveira Salazar. E ainda hoje pagamos os seus custos. 2ªf, IPJ, 22h.


NOTA DE INTENÇÕES

Portugal viveu a Segunda Guerra Mundial dentro de um mundo de fantasia, a propaganda criou aos portugueses um nível de irrealidade fantasista em que a realidade violenta e terrível da guerra, o nível real da realidade, era uma coisa muito longínqua e de outro mundo.

Mas a fantasia da propaganda era grosseira, porque como diz José Gil: «A grosseria resulta do esforço e da impossibilidade de dar forma a um fundo visceral sem forma. O pior na grosseria, não é a ruína da forma, mas a arrogância em julgar-se forma.»; e essa grosseria tornava-se uma evidência com a chegada a Lisboa das vagas de refugiados que tentavam escapar ao nazismo e embarcar para as Américas.

O filme funda-se no contraste entre as imagens fantasistas da propaganda e as imagens reais do sofrimentos dos refugiados. Vive do contraste entre dois níveis de realidade: a irrealidade de uma fantasia lusitana e a dura realidade das consequências de uma guerra mundial.

As imagens da fantasia fascista pretendem fazer acreditar que graças a Salazar se vivia em Portugal no melhor dos mundos; as imagens do sofrimento dos refugiados de passagem por Lisboa, à espera do barco que os livre do nazismo, apresentam a realidade. Estas imagens são amparadas pelos testemunhos escritos de Erika Mann, Alfred Döblin e Antoine de Saint-Exupéry, em textos que reflectem exactamente o pasmo dos autores diante da bizarra noção de realidade dos portugueses.
João Canijo

Ano da graça de 1940. A Europa encontra-se em Guerra e a Alemanha está a ganhar. Depois da Invasão da Polónia, em 1939, o Exército Nazi invade a Noruega, a Dinamarca, a Bélgica, a Holanda e a França. Os judeus passam a ser identificados com um símbolo e constroem-se os primeiros campos de concentração. Prepara-se o genocídio. Quanto a Portugal... Portugal, pacatamente, recebe delegações germânicas e britânicas, mantendo-se orgulhosamente neutro. É ano de megalomanias e exibição da História. Faz-se a Exposição do Mundo Português, grandiosa e eloquente, com pavilhões exuberantes, paradas com elefantes e leões, barcos tão adornados que se afundam à saída. Em Lisboa, o único porto neutro da Europa, exibe-se uma falsa opulência em plena ascensão de Salazar (o povo é pobre e analfabeto).

A Lisboa chegam milhares de refugiados, fugidos de uma guerra tenebrosa, sem sítio para onde ir, na esperança de encontrarem um barco para um porto distante, na incerteza do rumo da Guerra. 1940 é um dos annus horribilis da Europa, e a Lisboa do fado encontra-se estranhamente em festa.


João Canijo parte de 1940 para fazer um fabuloso documentário. Um filme para o qual não pegou uma única vez na câmara nem escreveu qualquer texto. É todo feito através da colagem de imagens de arquivo e da sobreposição de narrações da época e depoimentos de refugiados ilustres que conheceram a Lisboa de então. É o caso de Erika Mann, a filha de Thomas Mann, Alfred Döblin ou Antoine Saint-Exupéry. Este último fala do exército de pedra que Salazar construiu para afugentar os potenciais inimigos.

João Canijo, autor de Noite Escura, filme que foi considerado o melhor das últimas décadas segundo um painel de críticos convidado pelo JL, faz uma espécie de exercício de pureza. Não se trata de um jogo pelo jogo, mas sim uma tentativa de deixar a História falar por si, abstendo-se o realizador, na medida do possível, de intervir com perspectivas contemporâneas e anacrónicas. Ao mesmo tempo evidencia a montagem como ferramenta primordial na linguagem cinematográfica (realce-se o trabalho de João Braz), como forma de encaminhar uma história. O filme não precisa de mais nada. Estas imagens e palavras falam por si, contam-nos a história durante a História, colocam-nos no tempo sem risco de anacronia ou juízo fora de época.

A imagem deste Portugal não é de todo favorável. Quando na inquisição Portugal expulsou os judeus os países do Centro da Europa acolheram-nos sabiamente, aproveitando mesmo a sua inteligência para o desenvolvimento. Quando, nos anos 40, foi a vez de Portugal se tornar em porto de abrigo, demitiu-se desse estatuto, e quis apenas ser posto de passagem, tratando os refugiados como farrapos, ao ponto de Alfred Dölbin questionar: "Será que eles não se sentiriam melhor na sua terra, apesar dos bombardeamentos". A propaganda da época passa a mensagem: "Portugal não teve o dia D, teve o dia S, de Carmona e Salazar". Salazar, covardemente, salvou Portugal da guerra. Mas quem é que poderia salvar Portugal de si próprio?
.
Manuel Halpern

"FANTASIA LUSITANA" é um documentário histórico ou uma ficção de terror puro? Não conseguimos deixar de pensar nisto desde que vimos o novo traba¬lho de João Canijo (produzido pela Perife¬ria Filmes). As suas imagens têm cerca de 60 anos. São imagens perdidas no tempo e foram recolhidas de arquivos, meses a fio, maioritariamente das séries dos filmes noticiosos do "Jornal Português", orientados por António Lopes Ribeiro - os tais que acabavam com uma frase lapidar: "E assim vai o mundo..." Ideia inicial? Documentar a passagem de alguns refugiados famosos por Lisboa, no início dos anos 40. Digamos que, à partida o terror só estava lá em potência. "No entanto, quando comecei a ver o material", disse-nos João Canijo, "percebi que o mais interessante era criar a 'fantasia lusitana', ou seja, explorar um nível de realidade que não tinha nada que ver com a realidade, pois fora criado artificiosamente em Portugal. Como ainda hoje acontece, aliás..." A Lisboa de 1940 (grande parte do filme centra-se em imagens desse ano) é uma cidade cosmopolita como poucas. Para muitos re-fugiados europeus, esta é a última oportunidade e a derradeira porta para conseguir abandonar a Europa. O mundo está em guerra mas, em Lisboa, há festa na rua. As luzes estão acesas e iluminam desfiles de moda, exposições universais, casamentos de príncipes e princesas, desfiles de vedetas do cinema. Respira-se a paz da neutralidade - mas uma paz podre, medíocre e triste. A banda-som do filme decide então incorporar três textos siderantes, de outros tantos escritores que por cá passam naquele ano: Alfred Döblin, autor de "Berlin Alexanderplatz", Erika Mann (a filha mais velha de Thomas) e Antoine de Saint-Exupéry. Canijo decide manter a língua original desses textos, lidos no filme por Hanna Schygulla, Rüdiger Vogler e Christian Patey. E o que se ouve é de gelar as veias. "E aqueles que aqui estavam comigo, todos os refugiados à minha volta – até mesmo os refugiados portugueses que, aliás, se encontravam em número muito re¬duzido neste café - será que se sentiam felizes? Será que se sentiam melhor do que as pessoas nas cidades bombardeadas da Inglaterra? Não eram felizes, nem se sentiam melhor. Pois pior do que a catástrofe em si é a ameaça da catástrofe à qual se está inexoravelmente exposto", escreve Erika Mann.


Não há mil maneiras de o dizer: os testemunhos de "Fantasia Lusitana" são os da nossa vergonha. Apontam menos o dedo a um determinado período histórico do que a um espírito português, indiferente e resignado, que explode com violência no presente. "O que eu acho mais impressionante", acrescenta Canijo, "é a alegria que depois se vê nas caras das pessoas, nas fotos da celebração da vitória dos Aliados. Uma semana depois, há a manifestação de apoio a Salazar. E pronto: mais trinta anos..."
.
Francisco Ferreira, Expresso


"Fantasia Lusitana" é a história da castração de um país a que, soterrado debaixo de tralha beata e saudosista, não foi concedida a possibilidade de se assumir.

Entre a Civilização e o Mal, entre a Democracia e a Tirania, Portugal escolheu... a neutralidade. Sabemos, claro, que a história não foi assim tão simples, que nos bastidores o funambulismo (eventualmente brilhante) foi mais do que muito, que as necessidades de sobrevivência do regime não deixavam muitas opções, que a partir de certa altura a "neutralidade" foi mais uma "não-beligerância", o que não quer dizer exactamente o mesmo. Mas persistiu, durante e depois da II Guerra, o culto da neutralidade portuguesa ("escrupulosa e honrada", como se ouve no filme de João Canijo) enquanto virtude suprema, parte, ainda, de uma história de predestinação e privilégio.



Décadas depois, os mais novos ainda ouviam esta cantiga da boca dos mais velhos. E, comodamente nascidos décadas depois do conflito, embrenhados na leitura de histórias da II Guerra, desconhecedores das subtilezas da posição portuguesa na geo-estratégia da altura, impunha-se-lhes a questão moral que cobria a neutralidade com uma tonalidade ligeiramente abjecta: é que mesmo a escolha do Mal e da Tirania teria sido mais fácil de entender, ao menos tratar-se-ia de um compromisso claro. Não são outras as questões desta "Fantasia Lusitana" de João Canijo. A partir de imagens de arquivo, um retrato de Portugal durante a guerra, durante a neutralidade. Grandes e pequenas celebrações, um quotidiano mais ou menos extraordinário que se tentava manter tão... ordinário quanto fosse possível. Portugal como ilha, pedaço feito de ordem e calma, parêntesis num mundo a ferro e fogo. O trabalho de Canijo com o material que pesquisou nos arquivos é sobretudo uma bela operação de compilação, com o mérito de agir sobre os documentos - em grande maioria, documentos "oficiais", produzidos para filmes de actualidades, naturalmente com o alto patrocínio da propaganda de Estado - de maneira subtil, sem os forçar e sem os caricaturar. Porque, na verdade, já lá estava tudo: se o filme de Canijo tem um discurso sobre a neutralidade, suas razões e virtudes, esse discurso constrói-se a partir dos discursos da época, das justificações oficiais e providenciais, das loas a Carmona e a Salazar, da construção da ideia de uma neutralidade "merecida" (expressão que a locução de época refere insistentemente) que faz da II Guerra um castigo que outros povos, menos "merecedores", não souberam evitar. Tudo isso está lá, na origem, mais aquilo que sempre espanta nos noticiários e actualidades portuguesas do tempo da guerra: a indiferença descomprometida, a alegria esforçada, a entropia isolacionista, a fantasia (lusitana) da predestinação.



Como boa compilação, "Fantasia Lusitana" condensa os traços essenciais do ideário da neutralidade com que Portugal cruzou a II Guerra. Onde o filme ganha outra densidade e, digamos, se sedimenta, é na inclusão de uma espécie de contracampo para estas imagens - o olhar dos estrangeiros, dos estrangeiros que por Lisboa deambularam à espera de um barco para os EUA. Alfred Döblin, Erika Mann (a filha de Thomas) e Antoine de Saint-Exupéry: o que escreveram sobre a sua permanência em Portugal, dito em "off" na língua original (o único comentário falado que o filme acrescenta à locução de época) vem agir sobre as imagens, criar-lhes um negativo, desmontar a alegria postiça. São relatos de um país estranho, povoado por gente estranha. Todos falam de uma espécie de tristeza pouco condicente com a gratidão pela neutralidade. Erika Mann (cujo texto é dito por Hanna Schygulla) nota que em Londres as pessoas lhe pareceram mais alegres do que em Lisboa, e no entanto as pessoas de Londres viviam debaixo do "blitz". Mas as pessoas de Londres, conclui ela sem verdadeiramente precisar de o fazer, extraíam a sua alegria de se saberem envolvidas num combate pela justiça. A neutralidade poupa sofrimento, mas castra. "Fantasia Lusitana" também é a história desta castração, e de um país a que, soterrado debaixo de tralha beata e saudosista (a Exposição do Mundo Português, Fátima, o folclore), não foi concedida a possibilidade de se assumir. Dir-se-ia que o regime tinha perfeita noção disto: entre as últimas imagens mostra-se uma qualquer cerimónia de agradecimento, já depois de terminada a guerra, e a locução, levemente invejosa dos "V-days" de outros países, salienta: "não tivemos um dia V, mas tivemos um dia S". S de Salazar, claro. Valha-nos isso. Travámos a guerra sozinhos, sem verdadeiramente entrar em guerra alguma. Mais extraordinário, ganhámo-la. Derradeira fantasia.
..
Luís Miguel Oliveira, Público


Raramente um título terá sido tão ajustado a um filme. E "Fantasia Lusitana" passa a ser ponto de paragem obrigatório para olhar para Portugal.

Não era necessariamente aqui que esperávamos encontrar João Canijo, depois das explorações impiedosas do Portugal contemporâneo que foram "Noite Escura" ou "Mal Nascida" - aqui, entenda-se, num filme que está do lado do documentário, mais até do ensaio, do que da ficção.
Mas ainda bem que o encontramos aqui, porque "Fantasia Lusitana", abertura oficial inteiramente merecida do IndieLisboa, faz corpo com o olhar sobre Portugal dos seus filmes anteriores, mostrando como o Portugal de hoje decorre do Portugal de ontem - ou como o Portugal de ontem continua no Portugal de hoje.

"Tudo pela nação" são as primeiras palavras que se ouvem. São palavras que ilustram imagens de moços lusitanos que erguem bandeiras de sinais, que vêm de um jornal de actualidades cinematográficas de 1940, revelando desde logo o alucinante trabalho de pesquisa de imagens que lhe serve de base.

Canijo e o seu montador João Braz organizam com um virtuosismo avassalador, ao longo de 67 minutos, as imagens pesquisadas (que terminam, já a cores, com a inauguração do Cristo-Rei em 1959). Usam a Exposição do Mundo Português de 1940 como ponto central, e justapõem-lhe textos de três viajantes célebres que passaram por Lisboa durante a II Guerra Mundial - Alfred Döblin (o autor de "Berlin Alexanderplatz", na voz de Rüdiger Vogler; Erika Mann, filha de Thomas Mann, na voz de Hanna Schygulla; e Antoine de Saint-Exupéry, o autor do "Principezinho", na voz de Christian Patey).



O cruzamento das imagens triunfalistas do Portugal paradisíaco que as imagens de época sugerem e o olhar simultaneamente poético e lúcido dos textos lidos em "off"s funciona, então, como uma desmontagem metódica e meticulosa desse inicial "tudo pela nação" salazarista. E, de um modo perturbante, ilustra ao mesmo tempo o Portugal dos anos 1940, o Portugal do século XIX tal como Eça de Queiroz o imortalizou e o Portugal contemporâneo, traçando uma linhagem constante e coerente, desenhando um país cujos "brandos costumes" parecem, afinal, continuar a existir.

Ou seja, um país de fantasistas e fingidores, um país a duas velocidades das quais uma é uma simples fachada para "inglês ver" mas na qual, paradoxalmente, são os estrangeiros que menos acreditam, um país onde todos se preocupam com o supérfluo e o essencial fica para segundas núpcias.

Raramente um título terá sido tão ajustado a um filme. E "Fantasia Lusitana" passa a ser ponto de paragem obrigatório para olhar para Portugal.
.
Jorge Mourinha, Público



ENTREVISTA AO REALIZADOR
E subitamente, do meio da sua investigação do Portugal contemporâneo - as ficções "Ganhar a Vida" (2001), "Noite Escura" (2004), "Mal Nascida" (2007) e, a próxima, em produção, "Sangue do meu Sangue" -, irrompe um documentário. Sobre o Portugal que a propaganda do Estado Novo ficcionou nos anos 40.
"Foi uma encomenda", diz João Canijo.
Mas quando se vê "Fantasia Lusitana" logo se percebe que Canijo fez sua uma proposta exterior: um olhar sobre uma "noite escura" portuguesa. Imagens de arquivo como um espelho: cai a redoma protectora do passado, as imagens estão próximas, o suficiente para interpelarem o presente. Começa por ser anedótico, mas a meio da viagem somos capazes de nos vergar perante o peso. Canijo, esse, diverte-se. Sem a ficção e sem pacto com personagens, atira-nos: "tomem lá". Podemos falar em cinismo, mas quase sempre o cinismo é cinematograficamente produtivo.


Este documentário é uma encomenda. Como surge?
Foi uma encomenda do produtor João Trabulo. Telefonou-me um dia a dizer que tinha um projecto em andamen¬to e que gostava que fosse eu a realizá-lo. A ideia, romântica, era fazer um documentário, suponho eu que mais convencional, sobre a passagem de refugiados famosos por Lisboa durante a Segunda Guerra. Foi com esse tema, e com os nomes dos refugiados famosos, que aliás se tinham conseguido já apoios apalavrados.

Pensei, e disse que sim, desde que não fosse bem isso. Desde que fosse mais a possível marca, ou ausência de marca, que esses refugiados deixaram em Lisboa. Lembrava-me das histórias que os meus pais e os meus avós me contavam, das mulheres de perna traçada a fumar na [pastelaria] Suíça [Rossio, Lisboa] e coisas assim. Interessava-me relacionar o salazarismo, o Portugal profundo, com os estrangeiros. Evidentemente que não havia material que documentasse essa relação.

De qualquer forma, o filme passou a ser meu, e ninguém me impôs o que quer que fosse. E logo na primeira sinopse já "Fantasia Lusitana" nada tinha a ver com a passagem de refugiados. Já tinha mais a ver com uma ideia minha, algo que eu intuía que era verdade: os dois níveis de realidade em Portugal, o mundo em guerra e a fantasia do país neutral, o mito criado por Salazar.
Descobri há anos uma identificação entre aquilo que penso e as coisas que o [filósofo] José Gil escreve sobre Portugal. Por isso nada melhor do que falar com o senhor. Fizemos um alinhamento de imagens: quase duas horas, daquilo que se conseguiu encontrar [nos arquivos], e fomos mostrar-lhe. Ele ficou entusiasmado e disse algo que resumia tudo o que eu pensava, os dois níveis de realidade. O filme é sobre isso.

Há uma parte desse projecto dos refugiados que ainda passa pelo filme, com os testemunhos de A1fred Döblin, Erika Mann e Saint-Exupéry...
... sim, isso foi resultado de pesquisa de alguém que se formou em História em França e que estava a trabalhar para o João Trabulo, o Hugo dos Santos. Durante meses pesquisou tudo sobre a época e o tema. Fazia a pesquisa, mostrava o que tinha encontrado, em imagens ou textos. Passou semanas, por exemplo, no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), fazia resumos do que lá estava, e a partir daí fazíamos a pre-selecção, que tinha um custo, para encomendar.

Sobre a dupla realidade de "Fantasia Lusitana"... o espectador começa por ser embalado por uma certa ligeireza, o lado anedótico desse Portugal. Depois a coisa torna-se densa...
... era essa a ideia: isto é tudo muito bonito, mas há a realidade. Que não era nada bonita...

Nos testemunhos, os estrangeiros que passaram por cá dizem que lá fora há as bombas, é verdade, mas prefeririam estar lá e não aqui, no Portugal de uma alegria triste e falsa. É nessa altura que começamos a suspeitar, também, que quer dizer-nos algo sobre hoje. É isso que faz a ligação com a sua obra de ficção por exemplo...
Lógico. Tirando a retórica do Salazar, e aquela maneira de falar de propósito para que não se percebesse nada daquilo que dizia, os mitos a que ele se refere continuam a ser os mesmos. O dr. Cavaco di-los...

Por exemplo...
Há aquele discurso sobre o verdadeiro espírito português, a humildade, a disciplina... O dr. Cavaco continua a dizer a mesma coisa. O professor do liceu do meu filho tinha 30 anos mas ainda lhe dizia que Salazar foi muito bom porque impediu que Portugal entrasse na guerra. Isso foi uma das razões determinantes para eu aceitar fazer este filme, aliás. Claro que o meu filho, que tinha 14 anos, já sabia que não tinha sido assim, mas o professor de 30 acreditava que sim. E que havia mais segurança [naquela altura]. O Paulo Portas continua a dizer que há pouca segurança...

Quando estava a escrever a nota de intenções do "Mal Nascida", saiu "Portugal, medo de existir" do José Gil. Q que eu estava a tentar escrever nessa nota era aquilo, dito por alguém que passou mais anos a pensar sobre as coisas e que as sabe exprimir melhor do que eu. E antes de ler o livro já tinha como epígrafe da nota uma frase de um taxista de Lisboa que me levou a um restaurante. Disse-me que o restaurante era muito bom, que, pois claro, não há cozinha como a portuguesa, e depois, claro, que o cozido à portuguesa não há em mais nenhuma parte do mundo. Eu não lhe disse nada, mas podia dizer que o prato nacional madrileno é o cozi¬do, há em todo o mundo, depende é dos enchidos que lá se metem. Mas o mais genial foi quando disse: "Veja lá que eles lá fora nem sequer sabem o que é um caldo Knorr". Como diz o José Gil, pior do que a ausência de forma é a arrogância de se julgar forma.

É isto: uma falta de educação secular. Um problema que não está remediado, antes pelo contrário, está agravado. A massificação do ensino foi mal feita, a falta de educação é maior do que no meu tempo do liceu. Isto não é saudosismo. É que já nem as referências mitificadas os miúdos da idade do meu filho têm. E a ignorância dos professores é muito maior do que a do meu tempo. Tínhamos uma vantagem: havia muitos professores que eram da oposição e que por militância ensinavam o que não vinha nos livros. Isso já não acontece.

Nunca me vou esquecer que quando estava num daqueles bairros sociais na rodagem de "Ganhar a Vida", em França, me apareceu um daqueles meninos que uns anos depois andariam a queimar carros - um daqueles - a quem o [Nicolas] Sarkozy chama "a ralé". Esse miúdo perguntou-me sobre o que é que tratava o filme, eu disse-lhe que era vagamente inspirado na "Antígona". Ele respondeu: "Ah, Racine". Não haveria nenhum puto português do mesmo meio que fosse capaz de dizer isso. Ele era árabe, tinha feito o liceu em França. A ignorância e a iliteracia enraizadas [em Portugal] talvez só tenham equivalente no interior dos Estados Unidos da América.

É esse seu olhar que é traumatizante em "Fantasia Lusitana". Os filmes que utilizam imagens de arquivo colocam o espectador numa posição segura: o passado protege-nos. Nas imagens de "Fantasia Lusitana", pelo contrário, as pessoas parecem estar muito próximas de nós, ou nós muito próximo delas.
Senti isso.

Aqueles "travellings" no Chiado, por exemplo...
Essas imagens não são portuguesas...

Se calhar por isso...
Essas imagens são de um estrangeiro que passou por Lisboa e filmou às escondidas. São "travellings" dele dentro do eléctrico... Senti essa proximidade e senti outra coisa, que José Gil também sentiu; que essas pessoas estavam mais vivas do que as de agora. Provavelmente porque aquela multidão que se vê na Rua da Madalena... aquilo não são bem portugueses. A menina que sai do passeio e que vem até a meio da rua, vê-se que não é portuguesa.

Como é que se sente em Portugal?
Estou a ficar velho, se fosse mais novo continuava a pensar em emigrar. Deixei de ter televisão há dois anos, só vejo filmes à noite e há dez anos que só leio o "El Pais". Não saio, sou eremita. O que se passa connosco? Acho que está a resvalar a falta de capacidade e de classe dos políticos portugueses. Apesar de tudo, há uma grande diferença entre o Sócrates e o Guterres. Acho que isto não tem cura. Mas interessa-me muito pouco...

Deve interessar alguma coisa, de outra forma não teria feito o filme...
Eu tenho a teoria de que o Salazar é um produto da Igreja portuguesa. Há uma história que me contou um padre jesuíta que me ajudou na investigação do "Ganhar a Vida", em França. Quando o indigitaram para trabalhar com os imigrantes portugueses em França, ele veio a Portugal para aprender a falar português - com um sotaque à Porto, porque foi ali que aprendeu. A coisa que mais o chocou foi verificar que em Portugal não havia um curso de Teologia. O clero português não precisava, sabia tudo. Claro que isso continua a interessar-me.

Salazar era muito esperto. Aqueles discursos são extraordinariamente bem escritos - para não se perceber o que ele está a dizer... tem plena consciência de que está a falar para ignorantes que gostam de ouvir o senhor falar bem. No fundo, são lugares comuns que parecem ideias metafísicas.

A propósito... aquele excerto com a voz do locutor Fernando Pessa a dizer que lá fora os ruídos das sirenes e das bombas são como as cerejas, umas coisas puxam pelas outras... Há um mito Pessa, uma figura dos tempos heróicos, a relatar a guerra de Londres...
... o meu pai contava-me que Portugal ligava a BBC para ouvir o Fernando Pessa fazer a crónica diária da guerra.

... mas aquela ligeireza é chocante...
... é uma idiotice total...

Contrasta com a solenidade com que se falava do mundo português: as imagens finais, por exemplo, no Cristo Rei.
Essa coisa do Fernando Pessa é como uma capa do "Século Ilustrado": uma menina agarrada à bóia que parece uma bomba mas é um golfinho, desce-se pelas perninhas da menina abaixo e cá em baixo diz: "Bombardeamento de Londres. Toda a reportagem no interior". Essa imagem é genial. A guerra era outro mundo. Não tinha nada a ver connosco, para quê preocuparmo-nos com a guerra?

Não há imagens em movimento, só fotografias, do final da guerra com Portugal feliz a comemorar. Lembro-me de o meu pai me contar a felicidade que foi. Mas uma semana depois [do fim da guerra], toma lá com a manifestação de apoio ao Salazar. Foram rapidíssimos a fazer...

E a voz "off" dessas imagens: o mundo tem o dia D, Portugal tem o Dia S...
É a voz desse grande talento natural para a comicidade que era António Lopes Ribeiro. Ele era avarento; para não pagar a um locutor, fazia ele as locuções.

O que pensa de António Lopes Ribeiro?
Acho que o filme mostra. As comédias dos chamados anos de ouro do cinema português são contemporâneas dos filmes de Sacha Guitry... a comparação diz tudo.

O mito da "idade de ouro" do cinema português permanece...
Os filmes eram muito maus, muito mal representados, muito mal feitos. Nem eram grandes sucessos de bilheteira, como se diz. Permanece esse mito, tal como permanece o mito de que Salazar nos salvou da guerra. O que não é verdade. O que é verdade é que nem os alemães nem os ingleses estavam interessados que entrássemos na guerra. Dava mais jeito ter esta coisa minúscula no Atlântico como porto franco onde toda a gente podia espiar, essa plataforma giratória para várias coisas...

Que transformou o país numa espécie de bordel...
Exactamente.

Quando se faz uma ficção há um pacto com as personagens: não são boas, mas não são totalmente más. Aqui não há personagens, pode dar livre curso a amores e ódios. Sente-se essa coisa de ir cercando o espectador, de lhe chapar com as coisas à frente. Há aquele momento em que a nau "Portugal" da Exposição do Mundo Português naufraga...
... não percebo como é que isso passou... Mas explico porquê: não podiam esconder que a nau tinha virado, de forma que houve uma reportagem seguinte, maior, sobre a capacidade genial da engenharia portuguesa de pôr de novo a flutuar a nau "Portugal". Não foi possível meter essas imagens no filme. Acredito que ao ver essas imagens do naufrágio, "e deu-se o acidente", fique toda a gente de boca aberta.

Ainda a propósito do cinema português: aparece alguém, um estrangeiro, a dizer que o cinema em Portugal tem todas as condições para ser fantástico, porque aqui há bom tempo...
Por causa do clima, das paisagens virgens, dos monumentos extraordinários, do folclore riquíssimo, e principalmente da paz e da calma. Coisas que ainda há pouco tempo repetiram quando quiseram montar uma cidade do cinema ali no Algarve. Tirando o folclore, as palavras foram as mesmas...

Disse que já não se importava com o país... Vamos acreditar que este filme acontece agora não por acaso.
Se fosse há dez anos, seria mais virulento, e teria menos humor. Agora, apesar de tudo, é mais distanciado.

Mas fala muito nele com o silêncio. Mais até do que nas suas ficções...
Já perdi a raiva contra o país. Agora as coisas são como são.

Em que momento sentiu raiva?
Na altura do "Ganhar a Vida" sentia bastante. Depois lá perdi um bocadinho, quando percebi que os emigrantes não eram aquilo que eu pensava. Eu achava que eles se tinham mantido tipicamente portugueses, essa ignorância arrogante de se acharem melhores do que os outros e ao mesmo tempo inferiores. Percebi que tinham mudado. O que não os impede de, depois de 30 anos em França, onde se transformam em pessoas diferentes, voltarem a Portugal e passados uns anos serem iguais ao que eram antes de irem para França.

Mas deixei de sentir revolta. Deixei de sentir que era injustiçado, que o país era uma treta. O país é o que é. Agora [para o novo filme, "Sangue do meu Sangue"] estou a descobrir uma parte do pais que toda agente sabe que existe mas ninguém conhece: a periferia de Lisboa, uma coisa assustadora. É a miséria humana total. As urbanizações construídas na periferia... ninguém acredita. Quando um amigo meu viu as imagens que fiz, disse que lhe fazia recordar o Cairo no seu pior. Os bairros de lata são melhores do que as urbanizações clandestinas. E as urbanizações clandestinas não são só urbanizações de pequenas vivendas: são ruas de prédios inteiros em escadinhas, onde vivem milhões de pessoas. É mais deprimente do que a cintura de favelas à volta da Cidade do México, porque aí ao menos há um espaço individual para as pessoas. Aqui não. É impressionante, a fealdade. A corrupção autárquica em grande. Co¬mo é que se consegue viver ali?

Como é que, estando mergulhado nessa fealdade, como diz, não se exponencia, ao contrário do que diz, a sua crise em relação ao país?
Porque quanto mais vou vendo, mais vou tratando isso como uma coisa igual às outras. O meu próximo filme é uma história sobre o amor incondicional, como "Mal Nascida" era uma história sobre a falta de amor. E como é que o amor pode sobreviver nas zonas onde vive neste momento 80 por cento da população mundial, este ti¬po de subúrbios.

Este subúrbio português é pior do que o de Paris porque é clandestino e foi feito à custa da corrupção camarária, sem planificação. Não há vida comunitária, ao contrário das Fontainhas dos filmes do Pedro Costa. Não há comparação, em termos de qualidade de vida e construção, entre o bairro social em França e o subúrbio de compra e aluguer em Lisboa. Mas interessa-me, como disse, mais a universalidade do que a idiossincrasia.

Este documentário, então, é a hipótese de dar um pontapé...
Sim, teve essa função: tomem lá, entendam como quiserem. E de propósito não tem explicação. O meu filho tem 16 anos, gostou muito, mas disse que era preciso voz "off". Mas desde o princípio houve essa recusa. O silêncio é mais eloquente.

Há uma coisa que percebi ao fazer o filme: o mito da gloriosa História de Portugal está enraizado na cultura portuguesa. Estamos convencidos de que temos uma História gloriosa. Isso percebe-se ao ver a Exposição do Mundo Português: continuam a ser esses os mitos dos miúdos do liceu. E não foi nada disso, não houve implantação em lado nenhum. Gosto muito da frase do Fernando Pessoa que aprendi quando tinha 15 anos: o mal em Portugal é o excesso de civilização dos incivilizados. No fundo, é igual a frase do José Gil: pior do que a ausência de forma é a arrogância de se tornar forma.
.
Vasco Câmara, Público


Título Original: Fantasia Lusitana
Realização: João Canijo
Textos: Alfred Döblin, Erika Mann, Antoine de Saint-Exupéry
Vozes: Hanna Schygulla, Rüdiger Vogler, Christian Patey
Montagem: João Braz
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2010
Duração: 64’


.

Sem comentários: