Porque preferiu o prazer à vocação maternal, porque consentiu que o filho se perdesse, ela introduz a desordem no mundo e carregará a culpa. Tentará castigar a própria carne, porque terá percebido que está nela a raiz do mal- a natureza não é coisa civilizada, os instintos não são fonte de pacificação, mas de violência. Conduzida para essa natureza (onde, em tempos, se descobriu pérfida ao ponto de inculcar dor no próprio filho) por um homem que acredita mais na razão que nas forças obscuras da Terra, ela vai mostrar-lhe que não é acaso ter sido uma mulher a ceder às seduções da serpente e a trazer o, pecado ao Éden. Tentará, em raiva e atrocidade, dominá-lo pela dor e pelo sexo, como se pertencessem às mulheres esses segredos abomináveis pela prática dos quais, séculos fora, um genocídio foi perpetrado. Mas há que devolver a ordem ao mundo, varrer a culpa, a dor e o desespero. Por isso, um ímpeto de justiça se ergue - e ele sacrifica-a, pela sufocação e pela fogueira - não para castigar mas para libertar todas as mulheres que levavam as grilhetas do opróbio, pois preciso é que uma delas morra por todo o povo. É assim que, no fim do filme, como um cantochão de hossanas, ele pode ver a paz devolvida a todas as que ressuscitaram. O Anticristo, a Besta, a Grande Prostituta - é ela (Charlotte Gainsbourg), a mulher. em estado de impudícia.
É isto o que Lars von Trier queria dizer com "Antichrist - Anticristo"? Proponho que sim, mas, no fundo, não faço a menor ideia. Construído como uma narrativa simbólica - apocalíptica, dir-se-ia -, este filme vê-se como uma cerimónia solene, com o seu quê de mágico, como se houvesse uma vara que remexesse as coisas atrozes que nunca encaramos, jamais verbalizamos - e elas se pusessem a acontecer no ecrã. Podemos procurar decifrações, mas, como em todos os rituais, a ideia é mais a de nos deixarmos penetrar pela ambiência que a de encontrar uma explicação lógica para os eventos.
Uma precaução, todavia: "Antichrist¬-Anticristo" é um filme extremo, pavoroso, descer aos infernos não se faz sem dor. Handel cola-se a um sexo masculino em ecrã panorâmico a penetrar uma mulher - mais tarde, esse mesmo sexo jorrará sangue numa das várias cenas que o olhar dificilmente sustenta. É experiência única de um cineasta perturbado e convulso religiosamente. Um documentário sobre dois actores a figurar o inominável.
"Antichrist - Anticristo" é um filme onde o odioso e o sublime se fundem. Acho-o admirável, fulgurante, corajoso, coerente com o resto da obra do cineasta e devastadoramente belo... mas, cem anos que eu viva, não quero voltar a encontrá-lo diante de mim.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
... E chegou Lars von Trier! O menos que se pode dizer é que as expectativas foram cumpridas. Que é como quem diz: «Antichrist» tem tudo aquilo que promete, desde a reencenação assombrada do universo do par conjugal até à explosão de uma violência visceral que não pode deixar de desafiar a sensibilidade de qualquer espectador.
Dito isto, importa também acrescentar que seria gratuito alinhar pelas vozes do "escândalo" que, nestas ocasiões, se erguem dos sítios mais inesperados (por vezes, sem sequer conhecerem o filme). Digamos antes que «Antichrist» é o filme sério e perturbante de alguém que não recua perante as dificuldades - físicas, morais e simbólicas - de representar um Inferno onde confluem o poder masculino e a nunca aquietada revolta feminina.
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João Lopes, cinema2000
Lars Von Trier é, possivelmente, o mais perverso realizador da História do Cinema. Não tem ética nem escrúpulos, é moralmente repugnante. Absolutamente odioso. Contudo, genial. É esse génio maléfico que faz com que o odiemos tanto sem que consigamos deixar de gostar dele. Se tudo isto se aplica a Ondas de Paixão, Os Idiotas e Manderlay, o que dizer de Anticristo, o primeiro filme catalogado no género de terror? Pois, poupem as vossas mentes sãs e não vão ver este filme. Contudo, não deixem de o fazer, pois é uma experiência totalmente nova de cinema (ainda que plausivelmente traumática) sem recurso à tridimensionalidade. Por mais que nos irrite, o que Lars Von Trier não tem de ético, tem de estético. E, nos últimos anos, nenhum outro realizador assumiu um papel tão preponderante e consistente de reinvenção do cinema (Trier mistura o ecletismo de Kubrick com os ambientes de Lynch ou Cronenberg e uma mão cheia de contextos que o próprio inventou), sem nunca perder a sua voz, ou as suas vozes. O exemplo máximo do contraste criminoso entre o vislumbre estético e a negligência ética é o prelúdio do filme, numa estilização absoluta, em que filma a morte de uma criança, com uma banda sonora de conto de fadas, numa aberrante crueldade para as personagens e para os espectadores. Isto na tentativa convicta de incidir a culpa, conceito dominante no seu imaginário, assim como o de castigo.
A partir da morte do filho, Trier desenvolve uma obra de terror psicológico, em que o marido/pai/psicólogo assume o tratamento da sua mulher. Há uma perscrutação dos medos, que faz pouco sentido atendendo à evidência da situação traumática, que leva o casal à Floresta de Éden, o jardim proibido, onde se escondem os três pedintes: dor, desespero e luto. A natureza é a Igreja de Satanás, e a trama precipita-se para a loucura. Não é um filme de sustos, mas tem algumas das imagens mais horrendas que já vi em sala.
Entre as ousadias formais está o elenco minimal. Anticristo é uma peça para dois actores e três animais selvagens. Os actores são extraordinários no talento, mas estranhos de feições, mesmo ao gosto do realizador dinamarquês. O trabalho de Willem Defoe e Charlote Gainsbourgh é verdadeiramente notável, aguentam quase duas horas de filme, em que pouco mais existe senão eles próprios, em interpretações visceralmente contidas.
A determinada o filme encaminha-se para uma irónica e cruel paródia à psicologia, e essa leitura subsiste, quando ela diz: "Tive um sonho estranho, mas os sonhos já não interessam nada à psicologia moderna, pois não?" É caso para dizer: Freud morreu, o Lars Von Trier é louco e eu já não me estou a sentir muito bem.
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Manuel Halpern, aeiou.visao.pt/
No princípio é o asco: um spot publicitário da Acqua di Gio (ou de outra marca que o valha) coreografado a.preto e branco e au ralenti com uma câmara digital HD e o 'Lascia ch'io Pianga' do "Rinaldo" de Handel a introduzir, na banda sonora, um prenúncio de tragédia na ficção. Mas o que tem para vender o prólogo hipermaneirista do filme de Lars von Trier? Não um perfume (antes fosse), mas a morte de uma criança que se precipita de uma janela enquanto os pais 'se devoram' no chuveiro (e há aqui uma tentativa de contraponto entre os 'trágicos' flocos de neve que a criança atravessa na sua queda e as 'luxuriosas' gotas de água que caem sobre os rostos dos pais que define por completo a insensibilidade de um cineasta).
E, se bastaria o prólogo do filme para lhe assegurar lugar no top ten do formalismo mentecapto (Lars von Trier bem pode comparar-se com Bergman e Tarkovski: ambos teriam recusado liminarmente estes insuportáveis floreados), também é verdade que os quatro capítulos e o epílogo se limitam a confirmar as nossas impressões.
O que vemos aí? Um jogo de massacre protagonizado por duas personagens sem nome (as do casal, corajosamente interpretado por Dafoe e Gainsbourg) que operam menos como duas pessoas concretas do que como dois conceitos em conflito: o homem, corno figura da razão, e a mulher, como figura da natureza.
De facto, depois do tenebroso prólogo, o filme encurralará as suas personagens numa casa de montanha ladeada por um bosque (o Éden) que funciona como uma espécie de reverso negativo da 'zona' do "Stalker" de Tarkovski, isto é, como um espaço de revelação onde todos os pesadelos se realizam.
O pior, quanto a nós, vem a seguir, quando o verdadeiro jogo de massacre começa e Lars von Trier embarca na construção de uma série de paralelismos metafísicos primários (mulher = natureza; natureza = mal; mulher = anticristo) e de mediações simbólicas forçadas (a correspondência entre os 'três pedintes' e os três animais) que se interpõem a todo o instante entre o espectador e as personagens.
O resto (e o resto são, sobretudo, grandes planos de pernas perfuradas e de genitais mutilados que traçam tangentes com o gore) explica-se pela necessidade quase infantil de chamar a atenção que o cinema de Lars von Trier parece ter sentido desde o primeiro momento. Mas, prestar-lhe muita atenção, isso seria ir na conversa de um cineasta que, na ausência de coisas substantivas para nos dizer e mostrar, precisa do fogo-de-artifício para se fazer notar.
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Vasco Baptista Marques, Expresso
Como é que se fala de um filme monstruoso? A crítica de cinema também tem o dever de pensar nisto em relação ao novo trabalho de Lars Von Trier . Porque "Antichrist " não é um filme qualquer. Contou Trier que, há dois anos, teve uma depressão e tudo lhe parecia fútil. Não conseguia trabalhar. Quando finalmente escreveu o argumento que haveria de dar origem a este filme, "e o argumento foi uma terapia", afirmou, lembrou-se da "crise inferno" de Strindberg. E Trier, que é dado a amores e ódios, a paranóias e a exorcismos, a confrontações violentas que começam com os actores na rodagem e acabam nos espectadores das salas, concluiu mesmo que o filme que hoje à noite subirá a passadeira vermelha de Cannes é o mais importante de toda a sua carreira.
Não é um filme qualquer, repetimos. O que está em causa é um casal, Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg, que começa a destruir-se. A destruição começa a preto e branco e ralenti, numa sequência pavorosa, não há outra palavra: enquanto o casal está na cama a ter relações sexuais, o filho de ambos, ainda bébe, trepa para uma mesa e a curiosidade leva-o a mergulhar pela janela do prédio. Ela é escritora, ele psicanalista. Nunca mais irão recompôr-se dessa perda.
O homem começa a fazer terapia à própria mulher. Ela está num estado incontrolável de desespero e tenta contorná-lo com uma pulsão sexual insaciável. Talvez se chegue a essa situação por ter havido demasiado amor e a perda lhe ser proporcional mas, em todo o caso, é um amor pelo 'Eu', desmesurado e sem partilha. Se o homem (as personagens não têm nomes) a domina psicologicamente, a resposta dela vem por um domínio físico. Retiram-se para uma cabana isolada, no meio de uma floresta que é um espaço muito mais mental do que outra coisa. De resto, eles já não tem a Terra nos pés quando o filme começa.
Será nessa cabana, e nessa floresta, que ambos acabam por virar-se violentamente um contra o outro, envoltos pelo desgosto e pelo caos, por simbologias demoníacas e animais que falam, até ao horror de um instinto assassino que se manifesta em crescendo e que passará pela mutilação genital. Não nos atrevemos a falar de mau gosto (e ele é evidente) porque o mal é mais profundo. Aconteça o que acontecer, por mais escandaloso que seja o que ainda vier até dia 24 em Cannes, ninguém conseguirá ir mais longe no terreno da polémica do que Trier.
Mas acreditamos que, para Trier, nada disto importa: nem os anti-cristos, nem Strindberg e "O Grito" de Munch que o realizador citou, nem o cinema, tão-pouco o Festival de Cannes. Há mais de dez anos, numa altura em que o dinamarquês e o seu "manifesto Dogma" eram incensados pela crítica que transformava "Os Idiotas" numa coqueluche europeia, escrevemos que Trier, mais do que um cineasta, era um caso clínico de psiquiatria. Que fazer detestar-se o mais possível era o que mais lhe dava prazer. Um prazer mórbido que só esta criatura sinistra, mestre do cinismo e do sarcasmo cada vez que dá uma entrevista, poderia explicar. Digamos que o seu talvez seja um caso de egocentrismo exacerbado que se manifesta pelo masoquismo mas não vamos - nem temos conhecimento para - fazer psicanálise aos seus filmes e ao seu autor.
De resto, isso seria outra forma de dar atenção a um cineasta que já provou que, para tê-la, de tanto querê-la, está disposto a tudo, inclusivé a tratar a espécie humana como os nazis a trataram em Auschwitz. Hoje, curiosamente, a esmagadora maioria da crítica detesta Trier. Poucos filmes foram tão vaiados numa sessão de imprensa de Cannes como "Antichrist" o foi esta noite. Foram sucessivas as gargalhadas. E o filme em si não tem nenhuma para dar.
Lamentamos, sim - e profundamente - que "Antichrist" termine com uma dedicatória ao cineasta russo Andrei Tarkovski. É uma afronta injusta e ignóbil. Na sessão de imprensa, foi a última gargalhada da noite.
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Francisco Ferreira, Expresso
Parece que hoje em dia a dimensão cultural e artística de um filme e o seu respectivo sucesso nas salas de cinema é directamente comparável ao fluxo de polémica criado nos media à volta do mesmo. Como se um filme existisse apenas para provocar o estômago e a língua afiada dos espectadores e, assim, engrossar uns milhões nos bolsos das produtoras e distribuidoras que assim vêm o seu trabalho concluído. Não que estejamos numa fase decadente ou que não haja criatividade, mas porque a experiência cinematográfica é quase sinónimo de fluxo de informação - quanto mais polémica, mais espectadores. Tudo isto pode ser alcançado simplesmente por uma boa campanha publicitária. Mas há filmes que não precisam de estratégias elaboradas nem de souvenirs.
“Anticristo” foi vaiado, idolatrado, mal interpretado ou, pior, interpretado até à exaustão desde que estreou na Primavera passada. Quase um ano depois chega às nossas salas de cinema. Não se consegue perceber porque não vimos o filme na altura, mas também não parece importar. Lars von Trier parece também não se importar muito. Sinteticamente, “Anticristo” conta a estória de um casal que perde o filho e relata a cura psicológica da mãe através da perda e do luto, da dor. Ele, o pai, é também um terapeuta especializado e é o próprio que encena uma série de episódios psicológicos para ajudar a sua mulher no processo. Willem Dafoe e Charlotte Gainsbourg são os únicos actores no filme inteiro, e atiram-nos valentes interpretações, especialmente Gainsbourg, à beira de um colapso nervoso, expondo-se sem precedentes às ideias de von Trier.
“Anticristo” é também um pseudo-horror barra thriller (carregado de suspense, acrescentaria o locutor da RTP), mas feito à maneira de von Trier, que nunca nos decepciona na sua concepção do mal, do real, e dos limites da consciência humana (ou falta dela). As metáforas contadas pelas imagens belas e obscenas, a floresta e a cabana onde metade do filme se desenrola (chamada de Eden), os animais e todo o sangue que pinta de vermelho este filme politicamente incorrecto. A sequência inicial, o prólogo de “Anticristo”, é a melhor do ano, um slow-motion soberbo que marca desde logo o ritmo e ambiente do filme. A mestria do realizador, ajudado por alguns efeitos digitais, e, no conjunto, as performances de Gainsbourg e Dafoe, tornam este exercício de von Trier numa atmosférica e propositadamente senil experiência que por mais palavras que corram na internet, nas revistas e nos jornais não há quem faça verdadeira justiça. Mas não são os belos pormenores estéticos ou o propositado descontruir das regras de campo-contracampo e raccord, numa das primeiras cenas, no hospital, onde von Trier nos ilude com a sua brincadeira de colocar os actores no mesmo eixo - se von Trier disse que fez este filme como recuperação de uma depressão parece estar mais consciente que nós.
Mas é claro que estes pormenores não fazem sentido para a maioria. Por mais que ataquem o machismo e a misoginia do filme, a mutilação sexual e o sexo obsceno e carnal, a maldade e a aparente falta de sentido, são os pormenores que estão à superfície que transformam “Anticristo” num filme que vale a pena ser visto. A estória, especialmente na primeira metade do argumento, é contada à faca e sentimos o sangue a correr-nos nas veias à espera do desenlace. Os actores, os animais, o animalesco, o nú, a floresta e a natureza que se revolta contra nós (estando dentro de cada um, ou a natureza humana versus a natureza lá fora), e von Trier. O problema é que tentamos descodificar o filme e os símbolos e eles não fazem sentido.
Mas isso também não é uma boa desculpa, porque a propositada demência do filme é demasiado presente e estraga alguma inteligência que possa salvar a película do absolutamente ridículo. Mas o que é realmente obsceno é a facilidade que von Trier tem de nos iludir e apontar o dedo do meio, é ele quem manda, claro, é ele que nos tem nas mãos. São tudo razões para não deixar escapar este brilhante e esdrúxulo Anticristo nesta fase senil de von Trier. Sem vomitar.
'rua de baixo'
CRITICA E DECLARAÇOES REALIZADOR
Encontrar uma actriz preparada para chegar onde nenhuma outra chegou antes foi a tarefa a que se propôs o realizador de "Anticristo. E aí apareceu Charlotte Gainsbourg. "Sou tímida por natureza e precisava de saber que o tinha dentro de mim", diz ao Ípsilon.
Há dois anos, Lars von Trier sofreu uma depressão profunda. Entrara na casa dos 50, precisava de algo que o sacudisse. "Anticristo" parecia ser a resposta. Foi longe de mais?
O homem que arranjou um "von" como os de Stroheim e Sternberg, que tem em casa pendurado no armário um "smoking" que pertenceu a Carl T. Dreyer, e que descobriu, quando a mãe estava à beira da morte, que o pai não era quem ele pensava, tem mostrado a sua carreira, e falado das suas psicoses, em público - isto é, no Festival de Cannes, que o adoptou desde o início, quando ele ainda tinha pose de "punk", e que a ele se mantém fiel quando, como agora, tem mais pose de mestre-escola. Essa postura de filho emocionalmente em dificuldades, com aquela franqueza brutal muito nórdica de falar sobre as coisas, fica bem a um "enfant terrible". Mas já há poucos, nesse "lar" adoptivo onde o dinamarquês chega sempre de caravana (Cannes), capazes de se lhe entregarem sem reservas. E foi assim que mal o genérico, "Lars von Trier... Anticristo", apareceu, a gargalhada foi geral. Até a dedicatória a Tarkovsky foi vista como oportunista. E assim que o filme acabou, houve uma correria aos portáteis: que diabo estava Lars, 53 anos, a pensar quando se atirou a esta história de um casal em luto pela morte do filho (Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe) que se refugia numa floresta (quase encantada) onde se dedica à tarefa de se destruir, como se "Cenas da Vida Conjugal" de Bergman se tivesse transformado num filme de terror pornográfico?
Fomos perguntar ao próprio, dirigindo-nos ao Hotel du Cap, em Antibes, um dos mais luxuosos da Côte D'Azur, onde o realizador estaciona a sua modesta caravana e se aloja durante o festival. (O seu medo de voar significa que viaja desde a Dinamarca por estrada.)
Vestido com uma habitual "t-shirt" branca, parecia mais nervoso do que em entrevistas anteriores. "Sou de um tempo em que a pornografia não era tanto um tabu", começa, em defesa do filme. "Todos concordamos que este tipo de violência em relação ao corpo de uma mulher é horrível, mas venho da Dinamarca, que foi o primeiro país a apresentar livremente pornografia". Lars, recorde-se, comprometeu algumas das mulheres mais bonitas do mundo: deu a Catherine Deneuve e a Björk o papel de operárias no musical "Dancer in the Dark", sacrificou Emily Watson em "Ondas de Paixão", pôs Nicole Kidman acorrentada em "Dogville" e, agora, em "Anticristo", faz Charlotte Gainsbourg masturbar-se e cortar o clítoris em grande plano. "O meu crime aqui é misturar a pornografia com horror, ou chapá-la num filme que parece ser um drama sério de uma relação. Até certo ponto, percebo que isso é um problema."
Deus é uma ideia asquerosa
Desde a primeira cena, com o casal a fazer amor enquanto o filho se precipita da janela para a morte, sabemos que nos esperam alguns choques, pois Lars começa por introduzir logo um grande plano do sexo masculino. A morte do menino está ali, na verdade, apenas como catalisador para a dor da mãe. E quando o casal parte para a cabana na floresta, os demónios libertam-se.
"O filme pretende ser sério", insiste Von Trier, "mas também deriva do meu sentido de humor e da minha maneira de ver o mundo. Sei que parece pouco provável, mas..." O título, diz, vem d'"O Anticristo" de Nietzsche, publicado em 1895, que está na mesa de cabeceira desde os seus 12 anos. "Só cheguei a ler as três primeiras páginas. Foi, realmente, apenas um ponto de partida. Houve pouca lógica ao fazer este filme."
"Anticristo" inspira-se nas suas ansiedades e fobias, acrescenta: concluiu que todas as religiões são feitas pelo homem e que Deus não existe. "Tentei sinceramente tornar-me religioso, ser bom católico, mas a minha mãe e o meu pai eram absolutamente não religiosos e é impossível" - os pais eram hippies, comunistas, praticantes do naturismo. "Gosto muito da Natureza, pesco e caço. E quando se olha para o sistema na Natureza, quando se vê as coisas a nascerem e, a seguir, a serem mortas, e depois a recomeçar tudo outra vez, é difícil pensar que tudo isso poderia ter sido criado por um Deus. É uma ideia asquerosa, tal como vejo as coisas."
Nada, de facto, pode valer à mãe enlouquecida de Gainsbourg, e decerto não o marido (Willem Dafoe), psicoterapeuta que pensa que é boa ideia os dois regressarem à cabana onde ela passou bons momentos com o filho. "Ele é apenas um intelectual", troça Von Trier. "Sente que domina a situação e não a domina de modo nenhum."
O casal entra numa espiral de violência sexual e física, que não só evoca "A Semente do Diabo" - "Polanski teve grande influência", admite - mas também Strindberg.
O pénis e o clítoris
Dar o papel a Dafoe, actor destemido, não foi proeza. Porém, encontrar uma actriz preparada para chegar onde nenhuma outra chegara antes representava um sério pesadelo para o realizador.
"Tínhamos trabalhado com outras actrizes e falado com agentes, que exigiam que fizéssemos um desenho de cada cena e mostrássemos quantos milímetros do mamilo seriam mostrados e blá, blá, blá. Eu disse: 'Manda-os todos embora. Não posso trabalhar desse modo.' Então entrou a Charlotte e disse que estava morta por obter o papel. Penso que é algo pessoal que ela queria tentar, e tenho todo o respeito do mundo por isso. Não temos maus sentimentos agora e foi uma coisa fácil de fazer. Não era o clítoris da própria Charlotte, devo dizer", acrescenta, com uma risada. "Fizemos uma coisa artificial, seria verdadeiramente difícil arranjar duplos do corpo."
Gainsbourg falava com a mãe, Jane Birkin, regularmente pelo telefone durante as filmagens. "Ela deu-me um apoio incrível", revela Gainsbourg, que, tal como Björk, arrebatou o prémio de melhor actriz em Cannes (mas a islandesa já disse que nunca mais voltaria a trabalhar com Von Trier).
"Foi uma experiência dura no sentido em que foi tão extrema e as emoções eram tão extremas", admite Charlotte, "mas, ao mesmo tempo, foi libertadora, porque pude estar em crise durante dois meses e não ter barreiras, pude levar-me até aos limites. É maravilhoso experimentar isso. Depois, precisava realmente que aquilo terminasse e estava muito cansada, mas voltar à normalidade e não poder gritar durante o dia todo foi estranho", ri-se. "Sou uma pessoa tímida por natureza e precisava de saber que o tinha dentro de mim. Há certas alturas em que se está preparado para fazer aquilo, para ir tão longe."
Gainsbourg voltava do local das filmagens, na Floresta Negra, para a sua casa em Paris aos fins-de-semana. "Precisava de fazer isso para poder estar com os meus filhos, mas receava deixar aquele local estranho e, ao mesmo tempo, sentia medo quando tinha de regressar."
O seu companheiro de há muito, o actor e realizador Yvan Attal, deu-lhe pleno apoio, diz. "Ele compreendeu que era um sonho trabalhar com alguém como o Lars. Quando estava a filmar, por vezes, precisava de falar com ele pelo telefone, mas ele não escutava verdadeiramente e eu conseguia percebê-lo, estando na sua posição. Eu não teria querido saber exactamente o que estava a fazer. Ele estava apenas a dizer: 'Faz o teu trabalho e volta.' Quando o filme ficou pronto, Yvan viu-o em Paris e disse que queria vir comigo a Cannes. Tem muito orgulho em mim de uma maneira amorosa. Creio que gosta do filme, o que é reconfortante."
Dafoe é fã do filme, igualmente. Mas quando fala sobre ele Lars fala, sobretudo, de um pénis. "[O grande plano no filme] Era de uma estrela porno alemã chamada Horst", diz o cineasta, sorriso escarninho. "Ele foi realmente simpático. Descobri que há apenas uma regra no porno e é que não é permitido atingir o orgasmo sem uma ordem directa do realizador. Por isso, foi de facto ridículo, com a equipa toda a observar durante um quarto de hora. Era difícil não nos rirmos."
Dafoe, que incorreu na ira dos conservadores religiosos quando desempenhou o papel principal em "A Última Tentação de Cristo" de Martin Scorsese, não se esquiva a controvérsias. Afirma que "Anticristo" é um dos filmes mais fascinantes que fez.
Não é, também, a primeira vez que trabalha com von Trier. Depois de Nicole Kidman e James Caan terem decidido não filmar "Manderley", a sequela de "Dogville", Bryce Dallas Howard e Dafoe avançaram. Dafoe gostou tanto que escreveu a von Trier a perguntar-lhe se não tinha mais alguma coisa em mente.
"Gostava que as pessoas vissem a beleza em 'Anticristo', para se sentirem atraídas", diz o actor, "mas não é, claramente, para toda a gente." Dafoe conheceu o seu duplo, a estrela porno alemã Horst. "Conheci o Horst e ele disse: 'Espero que gostes do meu tamanho, espero que gostes do meu estilo'", recorda Dafoe, adoptando um sotaque alemão. Teria gostado de fazer a cena, mas, para von Trier, era importante que os genitais não pertencessem às estrelas, de modo a não "distrair a assistência". Mas Lars conclui: "Tivemos de tirar algumas das cenas do Willem ou as pessoas pensariam que era truque. O Willem é um homem de sorte."
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Helen Barlow, Público
ENTREVISTA
Uma experiência única enquanto espectador é o que nos aguarda em "Anticristo", o novo filme do realizador dinamarquês Lars von Trier. Após um acontecimento trágico ocorrido no seio familiar, um casal refugia-se numa cabana no meio da floresta. Mas o processo de expiação da culpa é vigiado pela natureza e algo de inesperado acontece… O filme dividiu a crítica no Festival de Cannes, em França, de onde Charlotte Gainsbourg saiu com o prémio de interpretação pelo trabalho ao lado de Willem Dafoe. O filme foi escrito na ressaca de uma depressão que vitimou o realizador, de 53 anos, que recebeu o JN ainda sob efeitos desse período traumático.
O mundo místico e alegórico que criou para este filme inspira-se em alguma teoria que descobriu ou saiu todo da sua imaginação?
Quando era mais novo, fiz algumas viagens xamãnicas. As civilizações primitivas tinham todas o seu xamã, que levavam as pessoas para mundos paralelos e imaginavam coisas. É daí que vêm todas as imagens de animais e de estrelas que se vêem no filme.
Há um lado de éden satânico no universo que se vê na tela.
Talvez por ser na Terra, não sei. Pode perguntar-me o que quiser sobre o filme, mas, desta vez, permiti-me não ter nenhuma resposta lógica ou matemática para qualquer pergunta que me fizessem.
De onde veio a ideia para o filme?
Começou pelo título. Depois, escrevi qualquer coisa. Mas, infelizmente, ou talvez não, nunca se sabe, entrei em depressão. Nunca me tinha acontecido. É doloroso, sobretudo para a família, porque não se consegue fazer nada, a não ser estar deitado a olhar para a parede, durante meses. Ter de voltar a trabalhar foi uma espécie de terapia.
Do ponto de vista criativo, sentiu diferença entre escrever sob uma depressão ou mentalmente são?
Depende do que se está a escrever. Mas talvez me sentisse mais livre para escrever o que quiser. Quando se está numa situação extrema, não importa se o que estamos a escrever é politicamente correcto ou não.
O filme vai até onde nunca se tinha ido, em termos gráficos…
Se o filme lida com o sexo, não sei porque não o deveria mostrar.
Há algum tempo, disse que gostava de fazer um filme pornográfico. Este filme tem alguma coisa a ver com essa ideia?
Este não é esse filme pornográfico. Um filme pornográfico teria outros propósitos. Ainda estou aberto a essa ideia. Até já sei que se tem de dizer a um actor pornográfico quando ele tem de ejacular. Já comecei a aprender a ser um realizador de filmes pornográficos.
A ligação entre o sexo e a morte é algo que o cinema já tem abordado, como, por exemplo, em "O império dos sentidos", do Oshima.
A morte da criança é que espoleta toda a história. E se pensarmos no sexo como uma forma de gerar uma criança, tudo cai por terra quando essa criança morre.
Há um perigo iminente de o filme ser acusado de misoginia.
Bom, tenho um problema com as mulheres. Mas todos os homens têm, não? Às vezes, são difíceis de compreender. Mas há muitas mulheres que adoro.
Os seus filmes são classificados por muita gente como "difíceis". Isso não o preocupa?
Quando estou a trabalhar num filme, não. Um filme é uma coisa muito egoísta de se fazer, é para a nossa satisfação pessoal. É assim que trabalho. Há colegas meus que se preocupam com o público, mas depois saem filmes muito comerciais. No meu caso, não me é possível trabalhar assim.
Escolheu a Charlotte Gainsbourg e o Willem Dafoe por causa da semelhança dos traços fisionómicos?
Tive imensa dificuldade em encontrar actores que quisessem fazer o filme. Tive imensas discussões com agentes, que queriam saber tudo sobre a violência e o sexo no filme. A certo ponto, pensei que assim ia ser impossível fazer o filme. Mas, depois, encontrámos os dois actores e é verdade que ficam muito bem os dois juntos.
Mudou alguma coisa quando percebeu que ia ter um actor em "Anticristo" que já tinha feito o papel de Cristo?
Não, e até teve piada. Por vezes, ao dirigi-lo, pedia-lhe para ser um bocadinho menos Cristo! Mas, no final, dei-lhe autorização para ser Cristo…
Desta vez, não fez a fotografia do filme. Porquê?
Por causa da depressão, eu tremia imenso. Como vê, ainda tremo muito… O que escrevi quando estava com a depressão, é completamente ilegível. Nem eu sei o que lá está escrito. É humilhante quando o corpo faz coisas que não queremos. É assustador.
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João Antunes, Jornal de Notícias
Título Original: Antichrist
Realização: Lars Von Trier
Argumento: Lars Von Trier
Interpretação: Willem Dafoe, Charlotte Gainsbourg, Storm Acheche Sahlstrøm
Direcção de Fotografia: Anthony Dod Mantle
Montagem: Åsa Mossberg e Anders Refn
Origem: Dinamarca/ Alemanha/ França/ Suécia/ Itália/ Polónia
Ano de Estreia: 2009
Duração: 109’
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