SESSÃO DUPLA - AS BRINCADEIRAS - muito - PERIGOSAS de Michael Haneke. 5º round, com provável KO. 5ªf, 22h, Esplanada dos Artistas, Entrada livre.

Paul e Peter (Frisch e Giering) são dois jovens extremamente educados que visitam uma família em férias. Contrastando com o cenário paradisíaco, Anna (Lothar), Georg (Mühe) e o seu filho serão aprisionados e torturados, sem que se consiga discernir quaisquer motivações para esses actos.

(como sempre em Haneke, discutir o, para ele, mais premente problema da sociedade contemporânea - a violência, individual ou social. olhá-la de frente e pegá-la pelos cornos. não se pretende chocar gratuitamente, mas sim fazer reflectir perante ameaças que quantas vezes preferimos ignorar. Haneke obriga-nos a tirar para fora a eterna cabeça enfiada na areia: «O que procuro fazer é inverter, ou melhor, corrigir situações que são habitualmente tratadas de forma falsa - tento mostrá-las de forma verdadeira. Quero que o espectador veja a violência por aquilo que ela realmente é, ou seja, através do sofrimento das vítimas. Quase sempre o espectador é desviado desse sofrimento e o que eu pretendo é que o espectador perceba que está ali o que ele, regra geral não quer ver. Há um elemento de choque, uma ironia que me serve para que o espectador reconheça o seu papel na produção e no consumo da violência.»)


Já não me lembro em que filme foi, mas sei que o realizador era alguém que pertencia à comunidade das nações do norte da Europa. A cena era de desavença conjugal, (de violência conjugal, para sermos mais precisos): um homem brutalizava a mulher, espancava-a e um belo dia, num dos seus acessos de ódio, empurrava-a, nua, para a porta da rua, lançando-a no meio de uma noite gelada. Já não me lembro de mais nada do filme, mas esse requinte de crueza, esse misto de humilhação extrema e de sevícia corporal pelo frio ficou-me na memória, como limite de uma violência que, em princípio, nos é estranha. Aqui, pelas paragens solarengas do sul, a violência é um espalhafato de sangue a ferver e destempero. Lá para cima, a violência pode ser uma coisa cerebral, uma malvadez serena.

Lembrei-me disto quando me entrou pelos olhos dentro este Brincadeiras Perigosas, de Michel Haneke, alemão naturalizado austríaco, germano numa acepção que excede os limites dos países. E lembrei-me disto, porque este filme tem a ver com essa malvadez serena, com retoques de perversa premeditação e caminhos de repetição em série: algures numa zona aprazível de férias lacustres, bem instalados burgueses são vitimados por dois demónios seus iguais que fazem da violência um jogo metódico e sem regresso.

Violência sem outro motivo que não o prazer do torturador face às vítimas, violência sem alibis, sem fundamentos sociais, sem motivações de nenhuma ordem, salvo a do Mal em acção. Talvez por isso ele é, convém que o diga, o mais violento dos filmes que algum dia vi - qualidade que a completa ausência do espectáculo da violência acentua.

Explico-me: Brincadeiras Perigosas cumpre todo o percurso da brutalidade, todos os seus cambiantes, escaninhos, particularidades. Começa com uma simples coacção psicológica, evolui para a agressão física com objectos contundentes, deriva para os rituais de humilhação, chantagem, perseguição e aprisionamento, golpes de faca, armas de fogo e aniquilação. Nada que não tenhamos visto já, em doses parcelares e, muitas vezes, em filmes de «mainstream» e sucesso. E em quantos deles não se empolgou o sangue com tiroteios, não compassou o coração ao ritmo das perseguições, não se acendeu a libido com gestos de humilhação, não se jogou o prazer do intelecto nos mecanismos verbais dos confrontos de dominação?

Quantas vezes a violência não nos foi servida como espectáculo para que, com ela, exorcizemos os mais fundos dos nossos fantasmas? Ora, Michael Haneke recusa-nos isso, por inteiro. Sem remissão. Completamente. No seu filme a violência é servida fria, sem ornamentos, com uma câmara que oculta mais do que mostra - e o que fica é uma espécie de território absurdo (e, todavia, familiar, verosímil, provável mesmo numa sociedade que se hedoniza sem carta de valores no horizonte). O que fica é um medo irracional que vai crescendo e é tanto mais avassalador quanto sabemos que a lógica da narrativa que estamos a ver é absolutamente inelutável.

A fita ganha mesmo um carácter de parábola, de coisa abstracta que, de repente se auto-apresenta como matéria de ficção, filme, artefacto, quer quando um dos actores se dirige à câmara e connosco fala, quer quando se materializa a possibilidade de rebobinar e repor nos Garris uma história que parece querer fugir a um programado destino. A vida de que o filme fala é, deste modo, dupla (é a vida-vida, quotidiana, no ocidente burguês, germânico e seus valores e é a vida-filmica, numa civilização que fez dos jogos e das fiçções de violência um dos seus pólos de entretenimento).

De repente, é lícito ler esta fita como um depoimento - para bons entendedores - no interior do cinema destes dias, uma espécie de testemunho sem explícita declaração de princípios que terá que ser o espectador a redigir, se lhe aprouver. É também por isto que não gosto do título português, pelo que de aviso ele contém. Melhor é o original, o lúdico Funny Games, inocente e sem moral.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 4/4/1998

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SOBRE O REMAKE 10 ANOS DEPOIS

Para muita gente, a Áustria era o país doce dos concertos de Ano Novo ou da Música no Coração, das valsas vienenses e do «apfelstrudel» polvilhado de açúcar - até que os filmes de Michael Haneke (Brincadeiras Perigosas, em 1997, muito em especial) estragaram o quadro de tampa de caixa de bombons. A violência desse filme foi uma das coisas mais terríveis que o cinema alguma vez deu à luz, até porque tudo se passava entre gente civilizadíssima e da forma mais civilizada que é possível. Numa estância de veraneio, dois jovens de boa extracção social e esmerada educação, assombram uma família, dominam-na e começam a praticar jogos cruéis, em que a tortura não tem outra razão de ser senão o comprazimento em praticar o mal. Em última instância, vão liquidando os membros da família, um atrás de outro, à medida que a noite avança. Desde 1997 que a Áustria perdeu o estatuto bonacheirão que, evidentemente, nunca mereceu, como não merece que a associem à insanidade atroz. Há imagens que são, de todo em todo, infiéis às coisas e aos lugares, estereótipos que, uma vez assentes, se podem tomar até motivo de ideias ou atitudes discriminatórias, racistas ou xenófobas. É bem certo. Mas vai demorar muito até que isto passe... E já foi há mais de dez anos.

Entretanto, Michael Haneke fez outros filmes - sempre sobre a violência e os seus efeitos - e resolveu refazer Brincadeiras Perigosas, na América. É essa versão que agora nos chega. Não consigo perceber a razão deste «remake» - a não ser que seja para afastar a Áustria do quadro e sugerir que a violência é globalizada... Até porque não é. Aquela violência metódica, fria, de uma impiedade perversa, dentro da mais hipócrita das composturas, é algo de intrinsecamente europeu, luterano-calvinista, a nata da sociedade de consumo culturalmente evoluída, o tédio a supurar o inominável. Pessoalmente, até acho que casa mal com a América e Haneke, fora os actores, nem se deu ao trabalho de adaptar, fez um «remake» tão fiel ao outro filme quanto lhe foi possível, o que agrava a perplexidade: porquê?

É claro que a interrogação não apouca o que o filme traz no ventre (exactamente o que a versão de 1997 também trazia): uma reflexão sobre a existência do Mal (com maiúscula, sim, sem álibis, sem justificações, sem culpados, sem Freud, sem Marx e, a não ser que Deus exista, sem uma entidade metafísica a fundamentá-lo). E uma reflexão que não se limita a ser sobre a existência, mas sobre o prazer que o Mal, em acção, pode proporcionar.

Brincadeiras Perigosas é o espectáculo do horror, nunca se esquece disso e nunca deixa que nos esqueçamos disso. Desse modo, rasga a nossa sensibilidade ao tornar-nos explícito que, sim, estamos a ver um filme, que, sim, estamos a ver um filme com actos horríveis, que, sim, estamos a ver um filme com actos horríveis e estamos a gostar de ver (o que não é a mesma coisa que gostar de ver actos horríveis, mas não deixa de ser muito perturbador). E desejamos que venha aí uma violência boa (mas há uma violência boa?) que reponha a ordem (e ela vem, mas, porque fora da lógica do filme, é eliminada num dos muitos efeitos de distanciação que Haneke semeia). Dele não se foge, ninguém foge, nem nós que estamos ali quase em estado hipnótico (que bem que Haneke pratica a arte do cinema!), nem os personagens que estão ali a servir um desígnio sem aleatoriedades. É que se Deus não joga aos dados, menos ainda joga Michael Haneke, senhor do seu filme de fio a pavio.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 5/7/2007


Dez anos depois da estreia do original, o austríaco Michael Haneke foi aos EUA rodar o "remake" do filme que mais fez pela sua fama, e que ainda hoje é o melhor título da sua obra - "Funny Games" / "Brincadeiras Perigosas". O "remake" americano, mais do que apenas homónimo, é uma transposição fiel do original austríaco, quase "plano a plano".

Se bem se recordam, "Funny Games" era um surpreendente exercício de crueldade bastante sádica. Uma familia "exemplar" de uma classe média refinada que era aprisionada na sua casa de campo por dois torturadores que encarnavam um Mal sem razão nem motivação (um Mal, digamos, bacteriológico"). Ao mesmo tempo, o filme funcionava num mecanismo que pretendia aprisionar o espectador, frustrando-lhe as expectativas e os códigos de identificação, obrigando-o a habitar o outro lado da cultura da exposição (anos 90: começávamos a despertar para os "reality shows") e da violência desafectadas (a que entra ela televisão, a que vem dos jogos vídeo) que nessa época eram objecto de não pouca reflexão.

Sendo basicamente - quase "plano a plano" - o mesmo filme, por que razão este "Funny Games" já não funciona da mesma maneira? Eliminemos uma das explicações que já vimos avançada: o facto de agora as personagens serem interpretadas por actores conhecidos (sobretudo Naomi Watts, que também produziu o filme, Tim Roth, Michael Pitt), pois como já conhecemos a história e qualquer efeito de surpresa foi removido esse pormenor é pouco relevante. Eliminemos também essa ausência de surpresa, pois se tudo, dependesse da surpresa nunca seria possível rever filmes.

A questão crucial tem a ver com a implicação do espectador. Mais do que implicá-lo - numa perspectiva eventualmente "moral" , eventualmente "hitchockiana" ¬Haneke aposta num efeito de identificação imediata. Toda a primeira cena (a família no automóvel, a caminho do destino de férias) está lá com o pressuposto de que todos os espectadores vão lá estar também, dentro daquele automóvel, o que não é necessariamente verdade. Mais tarde, e já principiado o cerimonial sádico, o filme permite-se "supor" o seu espectador, através da interpelação directa de um dos torturadores - mas o espectador que ele "supõe" é um espectador ingénuo, um espectador que está ainda à espera de que o filme siga os trâmites convencionais das narrativas cinematográficas convencionais. Apetece-nos responder à personagem: "não, não é essa a minha expectativa" . Podemos, pela nossa parte, supor que o espectador suposto por Haneke já não existe - talvez existisse há dez anos. Esse é o momento em que o filme falha o que não podia falhar (o compromisso com o espectador) e a partir daí transforma-se naquilo que queria criticar: o espectáculo de um "voyeurismo" desimplicado.
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Luís Miguel Oliveira, Público, 4/7/2008

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ENTREVISTA AO REALIZADOR (1998)

Há filmes - e cineastas - que se identificam por um «programa», com tudo tudo o que isso pode ter de estimulante ou limitativo. Em 1997, no Festival de Cannes, Funny Games (agora lançado entre nós como Brincadeiras Perigosas) foi um desses filmes: tratava-se, para o seu realizador Michael Haneke, de discutir a questão da violência no próprio cinema, com todo o caudal de temas adjacentes que a nossa modemidade lhe colou: identificação, mimetismo, alienação e, «Last but not least», banalização.

Esta conversa com Haneke decorreu há quase um ano, em pleno festival [de Cannes], e reflecte aquela conjuntura temática. Não creio que «resolva» nenhum dos problemas focados, mas atrevo-me a dizer que aí poderá residir a sua mais simples utilidade. Mesmo que não nos sintamos mobilizados pela pedagogia de Haneke (é o meu caso), há que reconhecer que o seu filme e o seu discurso se cruzam numa curiosa encruzilhada de reflexão. A saber: a avaliação dos poderes efectivos das imagens sobre os espectadores. Nesse sentido, se há dúvida que vale a pena deixar formulada a pretexto de Brincadeiras Perigosas, ela é também de natureza pedagógica: por que é que, hoje em dia, a noção de violência tende a recobrir apenas as manifestações visíveis de agressividade? A imagem de um cadáver ensanguentado é violenta, o mergulho televisivo na história íntima de um qualquer participante ruim «reality show» não é - porquê?

Brincadeiras Perigosas é um filme todo construído para nos fazer sentir que, enquanto espectadores, somos «voyeurs»...

Normalmente, no cinema corrente, o espectador toma-se cúmplice dos agressores, identifica-se com eles - acontece assim em 98 por cento dos filmes de sex e crime: o espectador transforma-se em «voyeur». E habitual a indústria cinematográfica ser acusada de criar essas imagens que seguem a lógica dominante dos meios de comunicação. Acontece, porém, que o espectador tem a sua própria responsabilidade: se não fosse ver esses filmes, eles não seriam feitos.

Qual é, então, a sua estratégia?

O que procuro fazer é inverter, ou melhor, corrigir situações que são habitualmente tratadas de forma falsa - tento mostrá-las de forma verdadeira. Quero que o espectador veja a violência por aquilo que ela realmente é, ou seja, através do sofrimento das vítimas. Quase sempre o espectador é desviado desse sofrimento e o que eu pretendo é que o espectador perceba que está ali o que ele, regra geral não quer ver. Há um elemento de choque, uma ironia que me serve para que o espectador reconheça o seu papel na produção e no consumo da violência.

E se os espectadores não aparecerem?

Acho que se Brincadeiras Perigosas não chegar aos espectadores, isso se vai ficar a dever em parte aos críticos que o classificam como um «filme de arte». Ora, eu fiz este filme para o público em geral- penso mesmo que o choque de reconhecimento que o filme provoca será, muito maior para o chamado espectador normal do que para as pessoas mais informadas os meios de comunicação.

Você é um realizador, mas também um espectador. Como espectador, que relação estabelece com a violência nos filmes?

Não vejo muitos filmes. Vejo mesmo muito poucos. Quanto aos filmes de «sexo e violência», quase nunca os vou ver. Por vezes, vou apenas por interesse profissional, para me manter informado sobre o que se vai fazendo. Mas se quero passar uma noite de forma inteligente, não é esse tipo de filmes que vou ver. Salò, de Pasolini, é o único filme que trata a violência pelo que ela é.

Como reage quando as pessoas, face ao seu filme, formulam juízos de valor morais sobre a sua própria pessoa?

E preciso não esquecer que os autores de tragédias não são necessariamente pessoas desagradáveis. Quando se está verdadeiramente interessado no género humano, é preciso fazer algo contra as coisas más que nós acontecem. Para mim, para o meu desenvolvimento como pessoa, os filmes mais importantes foram os que me surpreenderam e pertur¬baram, não necessariamente os que me divertiram.

Haveria, certamente, outras maneiras de encenar a intriga de Brincadeiras Perigosas...

Se os americanos, por exemplo, fizessem uma «remake» de Brincadeiras Perigosas facilmente se transformaria num objecto cínico e sádico. De qualquer modo, julgo que era fundamental escolher um caso tão extremo como aquele que mostro para apanhar o espectador, para lhe acertar em cheio. Caso contrário, mesmo que lhe parecesse interessante, rapidamente esqueceria. Assim, o filme fica-lhe na memória e obriga-o a um processo de reflexão.

Porque é que usa aquela solução televisiva que consiste em colocar uma personagem a olhar para a câmara, falando «directamente» para o espectador?

Esse é apenas um dos elementos que uso para fazer o espectador sair do seu papel tradicional e para o tornar consciente de aspectos que, geralmente, lhe passam despercebidos. Trata-se de quebrar as regras do próprio género como, por exemplo, o não mostrar a violência contra as crianças ou a obrigação de um final feliz, sejam quais forem as ocorrências narradas. Quando os actores se dirigem à câmara e perguntam ao espectador se era aquilo que ele queria, pretendo que o espectador abandone o seu papel normal de mero consumidor de violência - o espectador não está inocente e tem um papel naquilo tudo.

Acha que a sua visão destes problemas é específica de uma geração?

Pertenço a uma geração que se desenvolveu antes da televisão. Nesse sentido, tenho uma visão crítica dos «media»; caso contrário, se a televisão tivesse sido o meu segundo seio materno, como é para os jovens de hoje, teria muita dificuldade em distinguir a verdadeira violência da violência ficcionada.
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João Lopes, Expresso, 4/4/1998


VERSÃO ORIGINAL

Título Original: Funny Games
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke
Direcção de Fotografia: Jürgen Jürges
Montagem: Andreas Prochaska
Interpretação: Susanne Lothar, Ulrich Mühe, Arno Frisch, Frank Giering, Stefan Clapczynski
Origem: Áustria
Ano de Estreia: 1997
Duração: 108’
Legendas em português

REMAKE

Título Original: Funny Games US
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke, baseado na novella de Fank Kafka “Das Schloß”
Direcção de Fotografia: Darius Khondji
Montagem: Monika Willi
Interpretação: Naomi Watts, Tim Roth, Michael Pitt, Brady Corbet e Devon Gearhart
Origem: EUA/França/UK/Áustria/Alemanha/Itália
Ano de Estreia: 2007
Duração: 111’
Legendas em português


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