(um bom texto de introdução ao ciclo)
Tenham medo. Melhor ainda: não tenham medo da angústia que liberta um filme de Michael Haneke. Ainda não há muito, quando apresentava uma retrospectiva da sua obra em Londres, o cineasta austríaco com ar de entomologista, desejou aos espectadores uma "sessão inquietante". Não estava a fazer apenas "blague" - muito hitchcockiana, diga-se, embora no lugar da bonomia do obeso inglês se tenha de por a silhueta professoral do austríaco, mas Hitchcock é mesmo um cineasta em que se pode pensar quando se pensa no cinema de Haneke. Que, aos 63 anos, se considera um "optimista". Quer com isto dizer que o seu objectivo - isto é: com a prova de choque dos filmes - é abanar o torpor do espectador perante a forma inconsequente como violência domina os "media". "Optimista", portanto, no sentido em que acha sempre que vai conseguir - abanar, isto é. Uma coisa é certa: os filmes de Haneke - "O Sétimo Continente" (1989), "Benny"s Video (1992) , "71 Fragments of a Chronology of Chance" (1994), "Brincadeiras Perigosas" (1997 - primeiro público alargado -, "Código Desconhecido" (2000), "A Pianista" (2001) - Grande Prémio do Júri de Cannes -, "Le Temps du Loup" (2003) e "Nada a Esconder"/"Caché" (2005) não são para todos. Haneke não tem ilusões de que o seu cinema seja "mainstream". E no entanto "Nada a Esconder", saiu de Cannes com o prémio de Realização e em França esteve nas listas dos melhores do ano. O filme debruça-se - há sempre um tom de investigação e experiência ... - sobre a razão pela qual Georges (Daniel Auteuil), um apresentador de televisão de um programa sobre literatura (uma espécie de Bernard Pivot), não se sinta refém, nem sinta culpa, em relação ao seu passado quando recebe vídeos com imagens da sua própria casa (quem os filmou?) e quando recebe desenhos perturbantes onde uma criança deita sangue pela boca, ou quando recebe chamadas telefónicas suspeitas. Tudo isto, supostamente, é obra de um argelino, Majid, que em tempos, na infância, Georges tramou. Foi uma espécie de história de "irmãos" que correu mal e que o tempo veio cobrar; uma história que tem a ver com outro tempo, de facto, com o passado colonial francês, com a "questão argelina". Por isso nos espantamos quando Haneke diz ao Y que a política não lhe interessa. Mas este filme é abertamente político. Explicita a profunda separação entre o primeiro e o terceiro mundos e a estratégia dos "media" e do público nessa alienação. Os recentes motins em Paris, aliás, tornam o filme ainda mais pertinente. Mas Haneke insiste: "Em qualquer país encontramos uma situação semelhante, podemos entrar em comparações em relação à Áustria ou à Jugoslávia ou outros países. O filme tem uma versão alargada de temas e eu ficaria infeliz se fôssemos restringi-lo à questão colonial argelina." Para Haneke, o comportamento da personagem de Georges não é invulgar - quando ele se esconde debaixo dos cobertores e toma comprimidos para esquecer acontecimentos recentes. "Fazemos o mesmo com o terceiro mundo. Tomamos um comprimido, damos alguns milhões de dólares e depois esqueçemos. É a mesma maneira de esquivarmo-nos ao tema." Também não é coincidência que Georges seja apresentador de TV e um intelectual, diz o realizador. "Desta maneira não há desculpas possíveis, do género que tinha problemas de ordem material ou era demasiado estúpido para se comportar de outra maneira. Ele tem que ser confrontado com o que fez." "Acho que os intelectuais são seres humanos como qualquer outra pessoa e com os mesmos problemas. O facto de termos conhecimentos não nos ajuda do ponto de vista emocional - caso contrário o mundo seria um lugar diferente. Podemos saber tudo, mas isso não quer dizer que saibamos lidar emocionalmente com essas coisas. Não estou a ser pessimista ao dizê-lo; é apenas uma observação. Sou um intelectual, mas o facto de ser um intelectual não é de grande ajuda na minha vida privada." a ilusão da tv. Michael Haneke, nascido em Munique, filho de uma actriz e de um realizador, que passou a infância num subúrbio de Viena, Wierner Neustadt, tentando ser actor e pianista, começou a fazer filmes para a televisão austríaca e alemã, meio sobre o qual tem sido crítico. "Não acredito que a televisão nos faculte assim tanta informação sobre o que está a acontecer no mundo", diz, convicto. "Vemos imagens que são manipuladas - porque não existe essa coisa da imagem objectiva -, mas isso dá-nos a ilusão de possuirmos conhecimento. E isso é perigoso, porque acabamos por ser manipulados por essa ilusão." O primeiro filme realizado fora do pequeno ecrã, "O Sétimo Continente", era o relato, verdadeiro, do suicídio colectivo de uma família, onde todos os membros morriam num sofá, a fazer "zapping". "Benny"s Vídeo" centrava-se na história de um rapaz que passava o dia trancado no quarto rodeado de computadores e monitores a ver filmes de matanças ao vivo que fez com animais de quintas. Foi alvo de atenção internacional com "Brincadeiras Perigosas", o primeiro filme austríaco em 35 anos que foi à competição de Cannes - a imagem de uma televisão salpicada de sangue era óbvia, mas a história de dois jovens bem-educados que tomam como reféns uma família na sua casa de férias, forçando-os a jogos sádicos, era aterradora. Há alguns pontos de contacto com "Nada a Esconder". No facto de o "thriller" psicológico ir tomando forma, no facto de serem as gerações mais novas que sacodem as fundações do edifício social. A este nível está o intrigante plano final, em que os filhos de Georges e de Majid conversam, sem que o espectador oiça o diálogo: eram eles que urdiam o "complot" que se abateu sobre a família francesa? É uma nova aliança feita no rescaldo dos pecados e das culpas dos pais? "No fim, as pessoas têm diferentes interpretações dessa cena em que os filhos dos dois homens se encontram em frente à escola", reconhece Haneke. "É propositado. Não vou dar dicas sobre o que acontece. Filmei inicialmente a cena de forma a que pudéssemos ouvir o diálogo mas preferi que o público adivinhasse o que está a acontecer. Quem sabe? Talvez sejam amigos que tenham combinado juntos [o plano dos vídeos e dos desenhos anónimos]. Talvez o filho do argelino esteja a preparar um rapto e vá levar o outro rapaz como refém. Ou talvez vejamos os dois rapazes como herdeiros dos problemas com os quais estamos a lidar no filme. Cabe-nos decidir. Construí o filme desta forma para assegurar que as pessoas iriam levantar questões. Se fizer como os outros fazem, que nos dão as respostas antes de levantarmos as questões, então iremos esquecer o filme, iremos esquecer o problema e a questão rapidamente. Quando vou ao cinema os filmes que permanecem na minha mente são aqueles que me desestabilizam e me inquietam. Esqueço todos os outros muito rapidamente." duche frio. Agora uma das actrizes predilectas de Haneke, Juliette Binoche faz equipa com o realizador pela segunda vez em "Nada a Esconder". Entrara anteriormente no primeiro filme francês do realizador, "Código Desconhecido". Ficou apanhada pela experiência. Em "Nada a Esconder" interpreta a mulher de Georges e trabalha na indústria editorial. A família goza uma vida calma e tem um filho com 12 anos, Pierrot. No entanto, à medida que Binoche vagueia pelo seu imaculado apartamento podemos sentir as gretas que começam a abrir nesta existência burguesa. A parte de Anne na história é a de uma testemunha dos emergentes segredos do marido e de uma violência latente. "Há coisas na vida que são insuportáveis, a traição é insuportável, a culpa é insuportável", diz Binoche. "De repente temos de encarar os nossos demónios e acho que o Michael Haneke está a lidar com temas que são difíceis e isso é necessário. Os seus filmes sublinham os pormenores da nossa vida diária e o que é muito forte, o que é especial sobre eles é que não estamos só envolvidos nos nossos próprios problemas, temos de abrir-nos para o resto do mundo. Todos os pormenores tornam-se universais. Foi um acessor de imprensa que me apresentou aos filmes do Michael. Vi "Benny"s Vídeo", mas não quis ver "Funny Games" porque fiquei assustada. Os seus filmes, mesmo quando são como um duche frio, levam-nos a pensar sobre o materialismo das nossas próprias vidas e nos nossos hábitos do dia-a-dia. Normalmente não queremos ser confrontados com o passado. Por isso acho que os seus filmes são necessários. De tempos a tempos é preciso vermos uma coisa assim. Embora não todos os dias", diz, soltando uma gargalhada. Michael Haneke escreveu o filme a pensar exactamente nos actores que queria. Neste caso, Binoche e Auteil. Fazer um filme, por isso, não é nada de excessivamente difícil. O realizador sabe o que quer. E termina a conversa com o Y com um largo sorriso: "Digo sempre que é mais agradável interpretar um filme de Haneke do que ver um filme de Haneke".
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Helen Barlow e Vasco Câmara, Público
Dia 3 de Junho
O Sétimo Continente
«O Sétimo Continente" está incluído numa trilogia de Haneke acerca da incomunicabilidade que mata (literalmente). Esta é a primeira longa metragem do realizador e um desafio para a luta desesperada contra a resignação e a indiferença visceral que assola a impessoal existência quotidiana, num mundo alienado onde já não há diálogo e as pessoas perderam a sua alma.
Sobre o inexplicável
Uma família comum é apresentada em sua rotina: pai e mãe acordam, em seguida despertam a filha. Tomam banho, tomam café e vão à escola e ao trabalho. Durante quase vinte minutos de ações diárias, eles são mostrados em seus gestos, pelos seus corpos. Não vemos, neste início, rosto algum.
Logo, compreendemos a generalização do artifício: retira-se qualquer particularidade para a obtenção de um efeito universalizante; aquela família poderia ser qualquer família.
Num dia seguinte, as ações se repetem, na mesma ordem, mas dessa vez começamos a ver um pouco dos rostos, e a conhecer algumas informações sobre os personagens: nomes, profissões, um ou outro traço de personalidade. De qualquer modo, eles são definidos primeiramente por seus papéis sociais, depois por suas particularidades: eles são um grupo mais do que uma soma de indivíduos.
O Sétimo Continente apresenta uma estranha estrutura ternária: três anos da vida de pai, mãe e filha são expostos e claramente divididos por intertítulos na tela. A separação, no entanto, só serve a ressaltar as similaridades: nos dois primeiros anos, as atividades são as mesmas, as posições de câmera são as mesmas; a rotina é mostrada em seu lado repetitivo e fatigante.
Ao começo idêntico do terceiro segmento, o espectador pode começar a se perguntar qual o objetivo de tal separação, e até onde o diretor pretende ir com essa exposição sem conflitos. Pois é justamente no terceiro segmento que Michael Haneke, diretor das angústias e dos suspenses familiares, muda o filme e apresenta o fato de que essa mesma família, unida como sempre, começa a destruir sua casa.
Na tranquilidade dos hábitos matinais, eles cortam fotos, destróem móveis, matam os peixes, quebram os vidros, jogam o dinheiro na descarga e anunciam em uma carta aos sogros que farão uma viagem. Após a destruição total do lugar, eles se matam, um por um, e anotam as datas de seus suicídios na parede.
A surpresa é intencional: não se apresentam razões concretas para um suicídio, não se faz o retrato de pessoas angustiadas. Eles têm problemas no trabalho como quaisquer outros, eles presenciam um acidente na rodovia como muita gente já presenciou. A mente de público começa a perseguir esses pequenos traços, buscar pequenas justificativas possivelmente distribuídas ao longo da narrativa.
Mas Michael Haneke faz um filme sem nenhuma explicação, sem piedade ou sem apontar culpados. Ele se aproxima do documental: de fato, aproveitou-se de uma notícia de jornal para escrever o roteiro, e vários fatos foram mantidos intactos. Na cena final, um pôster de uma praia australiana, sonho de nosso protagonistas e “sexto continente” a que faz alusão o título, reaparece poderoso, sombrio, e dessas vez as ondas se mexem em direção à tela.
Bruno Carmelo
Título Original: Der Siebente Kontinent
Realização: Michael Haneke
Argumento: Michael Haneke, Johanna Teicht
Interpretação: Udo Samel, Leni Tanzer, Dieter Berner, Birgit Doll, Silvia Fenz, Robert Dietl
Direcção de Fotografia: Anton Peschke
Música: Alban Berg
Montagem: Marie Homolkova
Origem: Áustria
Ano de Estreia: 1989
Duração: 104’
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