11 semanas de exibição em Lisboa, finalmente em Faro!! A ILHA DA COVA DE MOURA de Rui Simões. 4ªf, 21h30, Teatro Lethes.

Entradas - 1€ sócios, 3,5€ não-sócios, passe para os 4 dias 12€

Bilhetes à venda no Teatro das Figuras e no Teatro Lethes no dia da sessão a partir das 20h.


Cova da Moura é sinónimo de problema, de violência, de degradação social. No ano de 2005, dois acontecimentos tornaram este bairro dos arredores de Lisboa num caso de interesse mediático: o homicídio de um polícia que patrulhava as ruas locais, em Março, e o célebre arrastão que nunca existiu, no dia 10 de Junho, cuja autoria foi desde logo imputada a jovens daquele lugar. O bairro da Cova da Moura tornou-se tema de debate público, passando de bairro problemático a lugar de interesse sociológico. Descobriu-se então a verdadeira Cova da Moura, habitada por uma maioria cabo-verdiana, que ali repete os modos e costumes das ilhas de que são oriundos como forma de combater o desenraizamento e estigma social. Vislumbrou-se um bairro em luta contra a violência e o tráfico de droga nele implantados e contra o preconceito sociocultural que os rodeia. Uma ilha de Cabo Verde naufragada em terras portuguesas, a braços com o pesado conceito de exclusão. ILHA DA COVA DA MOURA segue o quotidiano deste bairro, descobrindo nele reflexos de Cabo Verde e procurando os modos como a exclusão social se combate ou perpetua nas vidas dos seus moradores.


PRÉMIOS
Prémio Amnistia Internacional - Menção Honrosa no Festival IndieLisboa'10


África aqui tão perto, e tão pouco mar para atravessar. "A Cova tem coisas que só nos enriquecem como país e dá uma lição de vida comunitária a muitos outros bairros lisboetas", diz o realizador. Mais uma vez, depois de As Ruas da Amargura, Rui Simões pega num tema que parece estafado, para mostrar que é sempre possível romper a superficialidade da cartola e tirar de lá mais alguns coelhos. No famoso guetto da amadora encontrou um bairro que dá uma "lição de vida comunitária" a todo o país. O realizador não se interessa por política, não pertence a nenhum partido, "mas sou um militante de causas". E percebeu que ter ali "África a um minuto de Lisboa" é um património que não pode ser destruído, "e que só nos enriquece". Não se interessou pelo tráfico, nem tanto pelos aspectos mais exóticos da senhora a moer o milho no meio da rua. Interessou-lhe esta ideia de "ver um Cabo Verde reconstruído à imagem do seu próprio país", onde se vive na rua, se convive, se fazem festa onde cabe sempre mais um, onde uma série de serviços comunitários são humanos e funcionais. "Características e atitudes e gestos, que são mais riqueza do que pobreza". Sem ajuda de voz off e sem recorrer a música de apoio, para além daquela que se escuta no bairro, Rui Simões passou três anos a pesquisar e a conhecer as pessoas, mas classifica-o como um dos filmes mais difíceis de fazer da sua carreira. É complicado retratar toda uma população, transmitir o ambiente, toda aquela energia das festas que chegavam a durar dez horas, e depois condensar tudo numa hora e meia de filme. Na Ilha... (estreia-se em sala a 13 de Maio) a câmara de Rui Simões entra literalmente no panelão da cachupa. "Gostava que as pessoas no cinema conseguissem cheirar aquele prato".
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Ana Margarida de Carvalho, Visão


A independência de Cabo Verde aconteceu em 1975, o que não agradou até a alguns dos portugueses progressistas de então. Quando foi descoberto em 1460 por Diogo Gomes, o arquipélago não apresentava sinais de ter sido habitado por humanos. Foi ocupado sem conquistas. Enquanto ponto de intersecção entre as rotas marítimas da Europa, de África e mesmo da América do Sul, desenvolveu uma identidade própria ao longo dos séculos – que, enfim, fez nascer a vontade de um Estado soberano. Mas os cabo-verdianos pregaram uma partida a Portugal e erigiram, à revelia das autoridades, um colonato nos arredores de Lisboa. Chama-se Cova da Moura.

O lugar, no concelho da Amadora, era um terreno agrícola, para trigo, com uma vacaria na extremidade. O morro começou a transformar-se num bairro pouco depois da Revolução de Abril, quando cabo-verdianos e retornados levantaram as primeiras casas, clandestinas. Delimitado por quatro estradas, a Cova da Moura, no centro, é vista como uma ilha. Todavia, não é apenas o traçado do edificado que faz com que assim seja. O bairro é um pedaço de terra isolado porque cultiva e preserva um quotidiano que já não é dos tempos que correm na Grande Lisboa: os vizinhos conhecem-se, tratam uns dos outros, encontram-se, cozinham e dançam na rua, apesar de todas as contrariedades e abundantes estigmas. Rui Simões quis mostrar isso mesmo com este documentário.

Ilha da Cova da Moura partilha um olhar muito afeiçoado do realizador sobre este lugar com seis mil pessoas dentro, raízes profundíssimas – o próprio o nota. O gueto, como é considerado pejorativamente por muitos, de forma ligeira e à base das piores notícias, fica na borda do filme. Mal se aborda a criminalidade, o medo crescente. Mas quando deles se fala é para os recusar: a certa altura, um sénior da Cova da Moura, que não poupa nos adjectivos de ataque e desprezo pelos autores dessa instabilidade, assegura que a fama de bairro problemático é causada por gente de passagem, que nenhum deles ali tem casa. É da entreajuda, de um espírito comunitário muito próprio e – será certo escrevê-lo – de um pedaço de África na Europa que trata o filme, apostando no que de bom ali se passa, no que não deve ser destruído, no que aquelas pessoas ganham por ali viveram, numa certa qualidade de vida que se quer preservar.

Rui Simões é um homem de causas, já o sabíamos (ver, por exemplo, o recente Ruas da Amargura). O móbil deste documentário é responder à vontade política que aponta para a destruição do bairro, à luz do argumento da sua construção ilegal. Os moradores estão contra, ergueram aquelas casas com as próprias mãos, demorou-lhes anos: no final do dia, na volta do emprego, punham mãos à obra – homens, mulheres e crianças –, cada um ao comando da construção da sua própria casa com a ajuda preciosa dos vizinhos. A comunidade cresceu e cimentou-se assim. O resultado vai mesmo ser analisado na Trienal de Arquitectura. O contributo de Ilha da Cova da Moura é, nesse sentido, relevante. É, ele próprio, uma parte significativa do estudo que deve preceder qualquer decisão fatal sobre aquele espaço. E consegue, de facto, estabelecer laços e criar empatia com o público, chamando-o para o seu lado da discussão.

O documentário (produzido pela Real Ficção) não é manipulador, como poderia definir um julgamento precipitado. O que faz é criar algum equilíbrio numa balança onde, de um dos lados, o peso dos preconceitos é considerável. É certo que Rui Simões não é o primeiro a mostrar esta humanidade do bairro – que, de resto, não é um dos mais problemáticos nos arredores da capital –, mas fá-lo com uma perspectiva enternecida que lhe dá frescura. A condescendência ficou fora. O cineasta não pinta um quadro de flores e estrelinhas e cores vivazes. Os anos de miséria estão lá, como pano de fundo. A agressividade latente e os confrontos inevitáveis com grupos de bairros vizinhos, ou outros, também se reconhecem. Mas o resultado final confere à Cova da Moura uma aura de festa que a retira da condição de gueto e a abre ao resto da urbe, com uma consciência notável de tudo o que os separa.
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in rascunho.iol


A COVA DA MOURA, no concelho da Amadora, é um bairro clandestino, criado nos anos sequentes a 1974 e, sobretudo, erguido por pessoas que vieram dos territórios coloniais (emigrantes e retornados), sendo hoje a maioria da sua população de origem cabo-verdiana. O nome tomou-se notório, nos últimos anos, como zona minada pelo tráfico de droga e pela violência, com intervenções policiais de grande aparato e mediatização.

Rui Simões resolveu remar contra a corrente. "Ilha da Cova da Moura” é o resultado de uma atitude - a de mostrar uma realidade mais funda, mais próxima. Onde a televisão olha e vê delinquentes, marginais de pele escura - e destila o medo e o afastamento -, este documentário vê pessoas, histórias de vida, tradições, práticas comunitárias de interajuda - e acerca-nos. E é surpreendente a facilidade com que a câmara penetra no bairro e com que as pessoas falam, a destreza com que ela se plasma no interior da vida, como se o olhar de Rui Simões fizesse parte da realidade e não fosse algo quê, de fora, para ali fosse vasculhar.

Claro que uma atenção mais crítica poderá inquirir se os sinais da delinquência não estavam lá ou se a câmara desviou o olhar. Tomemos o gesto por uma postura de ser solidário para com uma população de gueto.

Quanto à violência, está lá, sim - na pobreza, na exclusão e, sobretudo, numa frase pavorosa que uma jovem ali nascida diz, com um sorriso: "Português preto não existe." Um descomunal muro de betão - pudera que "Ilha da Cova da Moura" o ajudasse a demolir.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso


ENTREVISTA
Por ocasião da exibição no Indie e da estreia nas salas a 13 de Maio da “Ilha da Cova da Moura”, um documentário sobre este bairro da periferia lisboeta, falámos com Rui Simões, o realizador. Nascido em 1944, em Lisboa, é uma pessoa politicamente activa, tendo participado no Maio de 68 e sendo um dos fundadores da secção portuguesa da Amnistia Portuguesa. Nas artes, tem experiência em teatro, instalações vídeo e realizou em directo os espectáculos efectuados na Praça Sony durante a Expo 98. Com vários filmes já realizados, essencialmente documentários, o "Ilha da Cova da Moura" centra-se no dia-a-dia deste bairro e nas suas raízes cabo verdianas.

O filme ficou em segundo lugar da escolha do público, que foram 5 documentários, 4 portugueses.
Acho que havia excelentes trabalhos, excelentes documentários e acho que cada vez há mais bons documentários em Portugal. O documentário nunca deixou de existir no mundo com grande qualidade, em Portugal há falta de investimento no documentário.

Fazer um documentário em Portugal, é muito difícil?
São verbas muito pequenas e portanto nós não podemos elevar o patamar de um documentário ao nível de documentários que a gente vê no estrangeiro, que são produções como deve de ser.

Eu acho que a qualidade é boa…
Sim, porque há quem lute por ela.

A nível de fotografia, imagem e mesmo som, que é considerado o ponto fraco do cinema português, nos documentários, está muito boa.
Sim, não me posso queixar porque sempre tive som bom nos meus filmes. Há 35 anos tenho som bom. Nunca tive problemas, nem nos meus primeiros filmes: o “Bom Povo Português” tem um som excelente. O filme passou no mundo inteiro e nunca tive problemas nenhuns de áudio. E continuo a não ter. Agora, no geral, é verdade que há uma evolução grande. Porque a tecnologia evoluiu muito, também há mais técnicos, mais formação, as coisas sentem-se. Não se pode estar sempre a queixar que vieram para cá os fundos europeus e a gente não fez nada. Fez. Houve uma evolução, apesar de tudo. Há muitas escolas de técnicos novos. Acho que há uma evolução grande. Mas no documentário é onde isso é mais visível, na verdade.
Esse problema, eu sei que se põe. Sei porque também sou espectador, portanto sei que se põe. Agora, no documentário acho que há um salto muito grande em termos de linguagem, em termos de abordagem, em termos de capacidade de apresentar um trabalho coeso. Acho que há uma grande evolução no cinema português. Porque há jovens a entrar e com poucos meios podem mostrar o que valem e isso também ajuda a que a concorrência seja maior, porque a ficção está muito na mão das mesmas pessoas, portanto, o cinema português… O que é o cinema português? Eu tenho as minhas dúvidas, sou um bocadinho radical nisso mas, a verdade é que está fechado num grupo de cineastas que são sempre os mesmos. Não quer dizer que não haja outros. A prova é que, quando se abre uma oportunidadezinha a um jovem, ele galga logo e sobe. Mas acho que no documentário, como são orçamentos pequeninos e baixos, há mais diversidade, há mais gente a fazer. Até se consegue fazer com muito pouco dinheiro porque basta pegar numa câmara e uma pessoa vai para a frente e isso parecendo que não inova.

O filme que ganhou o Doclisboa era um documentário chinês essencialmente gravado com uma câmara de mão.
No Doc há filmes mais ousados. Aqui no indie também ganhou um filme feito de câmara à mão, portanto, daqueles irmãos americanos. Ganhou o grande prémio do festival. Câmara rápida, à mão, os actores são perseguidos pela câmara quase, portanto, essa linguagem, no indie e nos festivais passa bem, não é? Nos cinemas já é mais difícil. O público tem dificuldade em aceitar uma câmara muito rápida, imagens desfocados e tal.

A nível da produção da “Ilha da Cova da Moura”, como iniciou o projecto? Pelo que vi o filme, percebi que houve contactos iniciais com o “Moinho” (Moinho da Juventude, Associação presente no bairro)
Não. Durante três anos visitei a Cova da Moura regularmente. Aproximei-me quando decidi que queria fazer o filme.

Mas a nível informal?
Não. Já a pensar faço um filme, não faço um filme? Quando decidi que ia fazer um filme, comecei a visitar e a frequentar e a estudar para fazer o meu projecto. Porque tinha que arranjar dinheiro. Quando decido que faço um filme, não tenho dinheiro, não tenho nada. Tenho uma ideia. Portanto, a partir do momento em que fui à Cova, a primeira vez, que nem sequer fui por intermédio do Moinho, fui por intermédio de uma amiga minha, cabo-verdiana, que me levou lá, porque eu estava curioso, interessado. No primeiro encontro nem conheci o Moinho. Foi mais tarde, no segundo encontro, que conheci o Moinho. Gostei muito. Já conhecia a Liv, não me lembrava que a conhecia, mas tinha-a conhecido há 30 anos atrás. Ela tinha estado em minha casa, e isso proporcionou também uma relação de proximidade… e o Eduardo, que é o marido da Liv, uma pessoa muito interessante e também um velho militante dos tempos de 25 de Abril. Portanto, de certa maneira há um ideal ali que é transportado para aquele bairro e há uma interligação com a comunidade daquela associação que eu nunca tinha visto, é um pouco aquilo que todos nós sonhamos, de certa maneira, naquele período revolucionário, que é, de facto, trazer alguma organização aos bairros, às pessoas, às comissões de moradores…

Ela aparece no filme?
Aparece no filme, a explicar um pouco o Moinho. Na génese, está ela. Ela é uma líder daquele projecto, embora ela não queira aparecer assim. É uma pessoa muito discreta e muito humilde, mas a verdade é que ela já foi condecorada pelo Jorge Sampaio, portanto é considerada, de facto, uma grande figura, não só naquele bairro, como mundialmente. O trabalho que faz é reconhecido internacionalmente. Quando a conheci melhor e comecei a falar com ela, gostei muito da atitude, porque acho que é isso que se deve faze não é impor, é justamente ir às raízes, trabalhar com as pessoas e procurar trazer para cima a cultura, em vez de estar sistematicamente a tentar reivindicar isto ou aquilo. Não, é criar raízes sólidas com as pessoas e isso é o que está feito na Cova da Moura.

E não há o risco de, ao reforçar a cultura, criar um certo desfasamento entre a vivência que eles têm no bairro e a vivência que eles têm depois fora do bairro?
Não, porque a cultura nunca é forçada, a cultura é genuína. Tudo o que é cultura popular, não é forçado, é o que está, é o que é. Nós temos a nossa cultura popular.

Mas acaba por ser contextual a nível geográfico.
Sim, mas eles têm a cultura deles, que podem-na viver a 100%, portanto, é genuína, não é imposta, nem é forçada. E essa é que é a grande inteligência do projecto do moinho: é não levar uma cultura para cima de uma comunidade, é deixar que a cultura que já está lá venha ela para cima. É ao contrário o processo: em vez de levar para lá ideias revolucionárias ou uma cultura “sei-lá-o-quê” daqui, dacolá, não, é deixar aquela cultura, que já é própria das pessoas que estão ali, puxar para que ela venha para cima. Por isso as festas populares, o dançar na rua, a música, a cachupa. Aquele ambiente todo exterior que se vive, é a cultura popular do cabo-verdiano que se manifesta em Cabo Verde e, quando se perdem as raízes, é que é doloroso a viver. Ao trabalhá-lo, trazê-lo e voltar a vivê-lo, cria-se um bem-estar àquela comunidade. Se me exilasse, imagino que faziam faltas coisas de Portugal, faziam-me falta. A cultura faz-me falta quando estou longe.

Como em Londres, por exemplo, onde há uma comunidade portuguesa grande, pode encontrar-se um bairro onde se pode comprar bacalhau…
Exactamente. Essas coisas são pequeninas coisas, mas fazem parte da nossa identidade. Se a gente perde isso, perde muito, porque começa a sentir falta. Começa a sentir que não nos estamos a conseguir exprimir. Uma das coisas que eu sentia era isso: faltavam-me elementos para eu me exprimir noutra cultura. Não quer dizer que eu não me exprimisse noutra cultura, mas há sempre, dentro de mim, as minhas origens e é isso que eu acho que ali foi muito forte. Aquela população nunca perdeu as suas origens e mantém-nas vivas. Porque eles são muito fortes nisso: os cabo-verdianos. Todo o emigrante transporta a sua cultura, transporta a sua identidade.

Até acabam, às vezes, por vivê-la mais que as pessoas no próprio país.
É difícil. Agora estou a fazer um novo filme sobre isso, justamente, e acho que no próprio país é que se vive com toda a força e as pessoas emigrantes regressam a esse país para beberem mais, para depois partirem outra vez. É como os nossos emigrantes: vêm a Portugal beber, têm necessidade de vir aqui nas férias de Verão, àquelas festas populares e tal, porque há uma necessidade vital de vir ao encontro das suas raízes. Aquelas grandes cidades perderam isso, não têm espaço para viver esse lado. Este é um filme realmente de uma comunidade de imigrantes. Temos que ver isso também por esse lado e nós, portugueses, temos essa experiência bem grande e devíamos até ser mais compreensivos. Muitas vezes eu acho que o português não percebe o que é que se está a passar.

Desconhecia por completo as raízes da Cova da Moura. O que conhecia da Cova da Moura era o que ouvia nas notícias e o que ouvia falar a alguns amigos.
Todos nós, acho. Eu também não sabia grande coisa se não isso mesmo, das notícias: que era um bairro terrível, um bairro onde se passavam coisas assustadoras, onde andava tudo aos tiros, tudo a vender droga… Quer dizer, eu acho sempre estas notícias um bocado exageradas. Por exemplo: estava em Cuba, agora há pouco tempo, e houve um terramoto. E eu senti esse terramoto, estava no restaurante e saí para a rua a correr. Mas o alarido aqui foi mil vezes pior. Esse é o problema da informação. Temos que relativizar sempre e temos de dar sempre um desconto.
Como o Casal Ventoso há uns anos, que se dizia que era horrível e depois apareciam nas entrevistas aquelas velhotas que moravam lá e diziam “não, eu ando por aqui sem problemas”.
Moraram ali e sempre moraram. Aquilo é Campolide! As pessoas esquecem-se que aquilo é Campolide. Aquilo é um bairro popular de Lisboa. Houve uma concentração ali porque a degradação daqueles terrenos era de tal maneira grande que os toxicodependentes procuraram ali refúgio. Um abrigo para pôr as suas tendas. Porque ninguém fez nada por eles. Ninguém arranjou um espaço para eles. As sociedades têm de ter mais cuidado: não se podem queixar sistematicamente daquilo que não fazem.

Sempre com um movimento de integração, em vez de exclusão.
Exactamente. E essa é a grande luta a ter neste momento, penso eu. E estou preocupado com esse tipo de coisas, porque não vale de nada queixarmo-nos das coisas, temos é que resolver as coisas e contribuir para resolver e ajudar e procurar as razões. Agora, dá trabalho. É preciso sair do seu cantinho e ir à procura e ver o que às vezes não é confortável. São realidades que não são confortáveis.
Estava a falar do processo. Portanto: comecei por aparecer na Cova da Moura, para conhecer a Cova da Moura. Comecei aos poucos a integrar-me naquele ambiente. Comecei a ir às festas e filmá-las. Durante três anos, eu filmo tudo o que é festejo. É a forma mais visível, mais fácil e até mais tolerante de me aceitarem, visto que está tudo em festa posso filmar. Aquelas festas de rua, festas públicas, onde o acesso a uma câmara de filmar é natural, porque as televisões também lá vão, há turistas, há pessoas a filmar com câmarazinhas caseiras, portanto, o facto de eu aparecer equipado profissionalmente não é estranho. Mas, as primeiras vezes, nem foi equipado profissionalmente, foi com uma câmara pequenina que eu comecei a captar imagens para levar para casa, para ver, para olhar, para perceber o que é que estava a fazer, o que é que estava ali. A pouco e pouco fui-me integrando naquele grupo. Comecei a ser convidado a ir a certas reuniões do Moinho.
Comecei a participar cada vez mais e um dia há um convite do Carlos Saura para que o grupo Cola San Jon vá a umas filmagens a Madrid para o seu filme “Fados”. Então, acompanhei-os nessa viagem a Madrid, com uma câmarazinha pequenina, portanto faço eu a câmara, e fiz um pequeno documentário sobre esta viagem que nós fizemos a Madrid e que, aliás, faz parte do DVD do “Fados” do Carlos Saura. Há um extra que é um filme que se chama “Viagem a Madrid”. E aí, claro, passámos juntos dois dias. A minha relação com o cinema, o facto de estar no estúdio com o Carlos Saura, havia alguns técnicos portugueses, o produtor é português, portanto, esse ambiente também nos permitiu confraternizar, estar mais próximos daquela comunidade do Cola, do tal grupo de dança e de música que me convidaram para eu ser padrinho. Aí começa a nascer uma nova relação, uma relação mais íntima.
Passo a apadrinhar um grupo, passo a interessar-me, passo a querer estar mais com eles, a preocupar-me com as suas realidades e depois com as suas famílias. Quando se conhece um núcleo, vai-se conhecendo rapidamente toda a gente. Isso, a pouco e pouco, ajudou muito no projecto. Escrevi o projecto. Primeiro apresentei-o à escrita e à preparação. Ganhei. Depois, à produção. Já um documento mais sério, com muito trabalho de pesquisa, muitas entrevistas (ainda offline, ainda não para o filme) e consegui o financiamento. Quando consegui o financiamento, então, é que comecei a preparar a sério uma rodagem em profundidade, com uma equipa profissional. Com a preparação aqueles meses anteriores, conseguimos isolar casos e dize “bom, é por aqui que vamos, por aqui, por aqui, por aqui”, começar a desenhar o filme. A minha relação já era muito fácil no bairro. As pessoas já me conheciam, portanto, eu já não era um estranho. E no dia em que eu programei e decidi “agora é que vamos embora”, a equipa instalou-se na Cova da Moura. Chegou, uma manhã, e começou a trabalhar. Durante um mês, todos os dias, todos os dias, todos os dias, fomos filmando à medida que íamos sentido o bairro, mas com uma preparação. Tínhamos as pessoas marcadas. Isso estava tudo bastante bem organizado, mas com muita espontaneidade também. Havia sempre uma dose de espontaneidade para o que acontecesse naquele momento, apesar de a nossa estrutura ser rigorosa.

Como a pessoa a quem a polícia na noite anterior tinha arrombado a casa.
Exactamente. Isso aconteceu naquela altura, não estava a prever nada daquilo. Isso e a pessoa que está a beber, que vai beber um grogue. Isso é espontâneo. O filme tem esse lado muito forte. Embora tenha coisas que estejam organizadas, para ir falar com aquela pessoa, falar com a outra, com encontros marcados. Se não, por vezes, é difícil encontrá-las e eu tenho de ter uma diversidade de temas que possa construir o filme. Foi assim. Tenho um bom relacionamento normalmente com as pessoas, dou-me bem com as pessoas e a partir do momento que gosto delas, ainda me dou melhor. E as pessoas também, a partir do momento em que gostam de mim, aceitam-me bem. Foi tudo fácil.

E a selecção, a escolha, das entrevistas e de tudo o que havia filmado?
Isso é uma construção, isso é o segredo dos filmes. É a dificuldade dos filmes.

Mas tinham muita coisa?
Eu tenho 100 horas de material. 100 horas é muita coisa. Para reduzir para uma hora e vinte. Portanto, agora ali é muito tempo na montagem, é conhecer muito bem o material, é ir reduzindo.

Houve alguma coisa que tivesse ficado fora e que de facto quisesse no filme?
Muita coisa.

E não dava para ter um filme maior?
Não. Nem interessava, porque um filme é um objecto com uma duração que nós consideramos mais ou menos certa, em função do que queremos transmitir. O filme é uma síntese de uma série de coisas e nós temos que ter a medida certa. Temos de pensar no espectador, temos de pensar no que é que estamos a falar, temos de pensar no ritmo… o filme é o resultado disso tudo e a um dado momento a gente sabe que está feito, que não há mais nada para dizer, porque para dizer mais vai perturbar uma série de outras coisas. É como um quadro: o pintor pinta aquilo e fechou e passou, enquanto ele não achar que está pronto, ele não entrega a ninguém, nem o vende, nem o dá. Há pintores que estão anos a pintar em cima da mesma coisa, até estarem certos. Um filme é igual, são camadas e camadas e camadas, passa de 100 horas para 40, de 40 para 20, de 20 para 10, de 10 para 6, de 6 para 4 e quando chega às 4 começa o drama. O grande, grande drama…

Aí já está mesmo o essencial.
Exactamente, já está o essencial. E como é que a gente ainda reduz? Porque eu não quero que o espectador seja massacrado com quatro horas porque acho que não vale a pena, realmente. Não foi essa a intenção. A intenção foi fazer um filme para as salas, para o cinema. Nem sequer é para as televisões, é para as salas. É um filme de hora e meia, mais ou menos. A minha ideia sempre foi um filme de hora e meia. Tem uma e vinte e tal. Está certo, é esse o tempo, é uma longa-metragem. Porque eu quero levar este bairro ao nível de uma sala de cinema em alta definição com grande qualidade, era isso que me interessava. E festivais também, claro. E um objecto para eles poderem ter um património na mão e dize “Tenho aqui um filme sobre mim e orgulho-me deste filme. Quero este filme para lutar contra futuras eventualidades de ataques da comunidade. Tenho aqui um filme a dizer que nós não somos assim, não somos isso tudo que dizem. Somos isso tudo que dizem, também, mas não somos só, também somos estes” e isso era a razão de ser deste filme. Era a única razão. Eu queria fazer este filme para isso. Para contribuir para que eles possam defender-se melhor contra as investidas que são muito fortes no âmbito da imobiliária, do poder político, do poder económico. São forças muito fortes e muito poderosas que facilmente esmagam aquilo tudo com dois dedos de conversa. Basta uns estudos de uma empresa qualquer, nem que seja ela mesmo corrupta, que diz que aquilo é mau para a saúde, é mau para isto, é mau para as criancinhas, e arrasa, deita abaixo e põe lá uma coisa que é “boa”.

E há estudos desses feitos?
Não, não há. Digo eu que os estudos são para isso que servem. Muitas vezes é para provar que aquilo ali é negativo, para se pôr uma coisa que é positiva como um bairrozito qualquer que se punha ali em cima armado em moderninho e com chauffage central. Os argumentos que os poderes económicos têm para substituir, como mandar abaixo um prédio antigo porque o novo é mais rentável e aquele velho ia cair. Vemos cidades, não só na Europa, nos Estados Unidos, onde se guarda tudo o que é património, o que é antigo. Guarda-se com amor e com carinho. Não se deixa que caia uma pedra. Pelo contrário, tenta-se colar as que estão a cair, para as deixar estar. São uma memória do passado. São uma riqueza insubstituível. Aqui manda-se abaixo e estraga-se.
A Avenida da República é um desastre total, lembra-me da Avenida da República ser uma avenida fabulosa. A Fontes Pereira de Melo. A Avenida da Liberdade pode ir pelo mesmo caminho. Quer dizer, se não nos pomos a pau, o Bairro Alto vai todo ao ar também, com os grandes investimentos…

Nem sei como é que nunca avançaram…
Avançam devagarinho! Sempre que arranjam lá um buraco, lá vai de meterem lá uma obra moderninha, não é? Em vez de aproveitarem, já que não está lá nada, fazerem um jardim ou um parque ou um equipamento social, porque é isso que faz falta. Social no sentido de ser cultural também. Não há um cinema no Bairro Alto. Devia haver. Chiado, Bairro Alto, Cais do Sodré, é uma zona da cidade completamente pobre em termos de cinema. Depois é muito rica noutros elementos. Mas isto são exemplos, é muito fácil deitar abaixo uma coisa, porque os poderes têm uma capacidade enorme de provar que eles é que têm razão, porque eles têm o poder, portanto, se têm o poder, têm sempre razão.

Apresentam uma leitura parcial que os favorece.
Claro, sempre. Por isso, se eu poder contribuir com alguma coisa que contrarie esse poder absoluto, já fico feliz. Eu não quero dizer que o poder faça isto por maldade. Acredito que no poder há gente que defende inclusivamente a Cova da Moura, que se interessa e que não vê a coisa dessa maneira. Eu sou um bocadinho anti-poder, mas não sou assim também um doente. Há pessoas boas em todo o lado e pessoas más em todo o lado. O que eu digo é que a ganância do poder económico é esmagadora é uma coisa absolutamente devastadora.

Em relação ao filme, o que eu senti é que a Cova da Moura tem problemas, mas os problemas, no filme, são referidos de passagem: ouve-se, no início, aquela parte do rádio ou televisão a falar do polícia que foi esfaqueado, existe o tal que a casa foi arrombada, vê-se aquela imagem do polícia e do Moinho, a falarem, mas aquilo parecia um bocado pró-forma, há outra história de que ela de facto conta que morreu um irmão e que o outro está preso por ter morto…
Há imensas histórias de violência no filme, é constante. Desde o primeiro discurso, que é uma notícia de televisão, em que o ecrã está escuro, não mostro a imagem da televisão, só se ouve, justamente para ser o ponto de partida do filme. Já sabemos que aquilo é assim. Não vale a pena bater mais no ceguinho. A outra realidade? Vou mostrá-la. Porque essa é óbvia. Eu não estou a fazer uma tese sobre a violência ou a polícia na Cova da Moura, nem me interessa.

Se eu fosse um estrangeiro e estivesse a ver o filme, será que eu compreendia a magnitude do problema?
Isto é igual no mundo inteiro. Neste momento, em Londres há um bairro deste género que está a virar um bairro cultural. É como Brooklin, Brooklin voltou agora a ser um bairro cultural, no entanto era um bairro de negros e completamente marginalizado e, neste momento, os artistas, como é mais barato, estão a ir viver para lá. As transformações dão-se. As pessoas que vêem este filme, percebem tudo. Eu tive uma americana, imediatamente a seguir ao filme, que me convidou para ir a Harvard apresentar o filme. Esta realidade é igual no mundo inteiro. Este bairro é igual a todos os bairros no mundo inteiro. Eles percebem todos a mesma coisa que nós percebemos. Já não há distinção de nada, é tudo igual. A globalização é igual a todos os níveis, até a este nível. Este bairro, um bairro americano ou um londrino, são a mesma coisa. Só que se encontra num sítio, numa periferia diferente, com uma linguagem diferente, com uma população diferente. Não é uma população de Trinidad ou da Jamaica, como é em Londres, é de Cabo Verde. Mas as coisas são iguais. Quem fez uma pressão enorme para que eu mostrasse o filme também, é o Brasil. Os brasileiros que estavam ali perceberam tudo, porque eles têm o mesmo problema mas 100 vezes pior. 100 vezes? 1000 vezes pior!

Mas eles não têm as raízes da comunidade.
Têm as raízes do próprio africano, eles são africanos e estão em conflito com a parte branca que domina completamente no Brasil. O racismo no Brasil é gigantesco. É latente. É ali, vivo. Vivem naquelas favelas monstruosas gigantescas e os brancos vivem bem, não é? Em baixo. E quanto mais branco, mais acima vive para ver as praias de Ipanema. O Brasil é escandaloso, nesse aspecto. É um racismo escandaloso. E eles sentem muito estes filmes. Imediatamente houve 3 brasileiras que vieram ter comigo… “se eu não passo o filme no Brasil?”. Claro que passo. Vou mandar o filme para o Festival de São Paulo agora.

Para o público em geral isso será igual?
É. Passei “As Ruas da Amargura” em São Paulo, é igualzinho.

Eles percebem?
Tudo. As realidades são muito próximas. Até as drogas são iguais. Tudo é igual: o consumo é igual, os emigrantes, depende da sua cultura, mas o processo é igual: os emigrantes encontram-se com outros emigrantes. Estes cabo-verdianos trabalham ao lado de senegaleses, de gente que vem do Burundi… as realidades são as mesmas. E nós já temos essa mistura muito forte em Portugal, nós é que não queremos ver. É muito forte.

Na Cova da Moura consegue ver-se outras influências para além da cabo-verdiana?
Não, a dominante é a cabo-verdiana. Mas, por exemplo, o fotógrafo é de São Tomé, aquela mercearia é de um senhor que é de Angola… Estão as comunidades todas lá. De leste, também.

E eles adaptam-se à cultura cabo-verdiana ou acabam por viver um bocado à margem?
Eu não sei, eu não perguntei propriamente isso. Mas os africanos, de facto, estão todos bem. Os ocidentais, os portugueses, os retornados, uns dão-se bem, outros não querem saber muito. Têm uma atitude como já tinham em África, de distância. Mas isso são casos individuais. A cultura dominante na Cova da Moura é a cabo-verdiana, porque a maioria da população é cabo-verdiana. Não é uma ilha angolana, é uma ilha cabo-verdiana. Por isso é que lhe chamo a 11ª ilha. É o espelho da terra deles. Tentam construir as casas à imagem de Cabo Verde. O tipo de construção é idêntico, a própria arquitectura, a forma do espaço, como é desenhado, como é construído…
Também não pintam as casas, lá também não. Se pegássemos naquele bairro e o puséssemos em Cabo Verde, não destoava nada.

Como no filme, a história do tio que gosta de estar lá na Cova da Moura porque parece que está em Cabo Verde.
Exactamente. É. Está à vontade. Pode fazer fogo na rua que ninguém se queixa que as paredes ficam sujas. Pode ter música até altas horas, ninguém se queixa. Há uma forma de estar e de viver muito próprias e que ali existe, ali funciona. Porque o que é interessante e bonito ali, é que aquilo tem uma história, aquilo nasceu das mãos das pessoas. As pessoas sofreram para construir aquilo. Ninguém lhes ligou nenhuma quando eles construíram aquilo. Ninguém os ajudou.

O terreno foi oferecido, segundo o que percebi.
Uma parte foi oferecida, mas foi oferecida à Santa Casa da Misericórdia, o resto não.

E a outra parte?
A outra parte pertence a vários proprietários que nunca fizeram nada ali.

Também nunca fizeram um esforço por…?
Agora querem fazer. Parece, não sei.

Por causa do valor imobiliário.
Claro. E agora o problema é esse. O problema está agora ali. Como é que se resolve aquele imbróglio, quando há 6000 pessoas ali já a viver? Há várias coisas. Se fizesse o filme agora, se calhar ia-me preocupar com a reabilitação. Ia preocupar-me com outro tipo de problema, porque há ali matéria para muitos filmes. Claro que eu não posso agora passar a fazer filmes só sobre a Cova da Moura. Já fiz este e tenho um segundo filme que tem a ver também. É uma viagem que eu faço com um grupo a Cabo Verde às festas de Cola San Jon, que vai abordar essa festa e vai tentar perceber melhor o que é essa festa. O mesmo grupo que anda a dançar ali na Cova da Moura e que foi ao filme do Carlos Saura, vai a Cabo Verde e eu vou com eles. E com uma equipa profissional e vamos filmando toda a viagem.

Isso, uma longa-metragem?
Ainda não sei. Depende da montagem. Ainda não sabemos o que é que vai dar.

Outra questão: a nível das origens dos problemas do bairro. Também não se percebe de onde eles vêm.
Ah, sim. Mas são óbvios, não é?

Como é pintada uma comunidade unida, não se percebe de onde poderão vir. Às tantas alguém diz: “Ah isso são as pessoas que vêm lá de fora”.
Ah, da droga, estamos a falar da droga? Há um senhor que fala que os traficantes vêm de fora. É evidente que os traficantes devem vir de fora. Nenhum traficante vai morar ali, porque senão corre o risco de ser apanhado. Portanto, o traficante normalmente vive fora e encontra ali um terreno fértil para poder vender.

Mas então os problemas da violência que existem não estão ligados a esse tráfico?
Estão. Porque há gangs que controlam os mercados. Ali é mais fácil haver muitos vendedores, mas estão em conflito uns com os outros porque estão ligados a um grupo, a um traficante, outros estão ligados a outro traficante. Portanto, o que são as guerras dos gangs? É isso mesmo. Estamos fartos de ver filmes. Vemos mais filmes na nossa cultura sobre gangs e tráfico do que vê sobre outra coisa qualquer. Nunca se vê as creches em casa das pessoas, ou a fazer sopa para as pessoas.

Também há filmes desses.
Também há, mas a maior parte é tráfico, é droga. De manhã, ligo a televisão e é só droga, mortes, tiros, gangs. Estamos a viver um momento que é isso que é dominante no mundo e por isso é normal que isso passe no cinema, passe nos telejornais, passe na imprensa. E ali também passa. Esses problemas, são problemas naturais de próprio tráfico. O tráfico cria esse tipo de concorrência, porque há traficantes de várias famílias. A gente sabe que há várias máfias, as máfias matam-se umas às outras. Dentro dos próprios grupos de mafiosos, matam-se uns aos outros. Dentro do grande Capital também se matam uns aos outros, compram-se uns aos outros. Se eles pudessem andar aos tiros, andavam, mas não, compram-se, fazem OPA’s, mas é a mesma coisa. É o dinheiro.

Não há um esforço da comunidade para lidar com o problema?
Há, grande. Para integrar as pessoas, inclusivamente. Muitas daquelas pessoas que trabalham no Moinho, são pessoas que tiveram problemas com a Justiça. O Moinho teve a capacidade de lhes dar trabalho. O Moinho faz um trabalho gigantesco a esse nível. Tem parcerias com entidades no mundo inteiro, com a polícia. Aquele encontro que aparece no filme, o polícia está a ser entrevistado por mim, naquela rua, naquele momento, e por coincidência, quando a câmara já está ligada, passa aquele rapaz que é o nosso guia no filme. Aquele sub-comissário é uma pessoa muito conhecida no bairro. É a pessoa que vai à televisão falar. É uma pessoa que tenta incutir um certo espírito de tolerância. Estava na estreia do filme, veio-me cumprimentar e dar-me os parabéns. Gostou imenso do filme.

É conhecido. Ele faz parte da comunidade?
Não, ele trabalha na esquadra de Alfragide, ali perto, não mora no bairro. Mas ele é o responsável pela polícia que está ali e quando há um problema ele tem de enfrentar aquelas pessoas. Tem de lá ir falar com elas e explicar o que é que aconteceu.

E elas? Aceitam-no?
Sim, aceitam-no.

Respeitam-no?
Sim, como viu. Ele está na Cova da Moura, no meio do bairro. Não está com ninguém à volta dele. Não está blindado. Se o quisessem abater ali, não custava nada. Não havia ali polícias ao lado. Ele está sozinho. Ele foi connosco. Ele foi connosco para ali.

Não estava a pensar numa coisa de violência, estava a pensar numa certa hostilidade para com ele.
Contra a polícia, há sempre hostilidade nestes bairros.

Contra esta pessoa também?
Não. A prova é que viu como os dois estão a fala eles trabalham juntos. Quando têm problemas, tentam resolvê-los juntos. Aquele rapaz, o Edir, é um mediador. O mediador é a pessoa que é reconhecido pela comunidade e respeitado, a comunidade confia nele, e a polícia também confia nele e respeita-o. Portanto, são duas pessoas que podem falar e resolver problemas, visto que as pessoas, o polícia, ou por ser muito jovem ou incapaz, e o rapaz do bairro, ou por ser muito jovem ou incapaz, têm tendência para andar aos tiros ou andar à porrada. O mediador, não. O mediador sabe lidar com essas situações e com autoridade, portanto, há um respeito. Cada vez há mais mediadores no mundo inteiro. As sociedades vivem de mediadores, neste momento, em todo o lado.

Nestas comunidades?
Todas. Há mediadores para tudo. Você chega ao banco, você não sabe resolver o seu problema, tem de ter um mediador. As sociedades são de tal maneira conflituosas … Já viu: para poder trazer o Papa a Portugal, a Lisboa, a quantidade de gente que vai ser mobilizada só para garantir a sua segurança? Os milhares de pessoas, as milhares de horas, o trabalho que dá, só para garantir a segurança de uma pessoa? É porque a sociedade está em conflito latente. Aquela pessoa pode ser abatida em qualquer altura. Porque é um líder espiritual, é uma pessoa que tem uma parte do mundo contra ele. Portanto, nós estamos a viver essa realidade ao nível global.

Os próprios media acabam por fazer parte desse fenómeno.
Claro, de empolar. Antigamente não era assim, claro.

O cinema também faz parte…?
Claro. O cinema também faz. Só que o cinema tem mais cuidado. Tem mais tempo de observação. O cinema não vive sobre o espectáculo imediato das coisas. O cinema tem tempo de pensar.

Os documentários?
E o cinema de ficção também. Tem mais tempo de pensar, só se não quiser. Pode não querer. Aí, é espectáculo pelo espectáculo. O documentário tem alguma preocupação, apesar de tudo. O documentário joga com a realidade, joga com uma proximidade das pessoas e tem de as respeitar, por isso tem de ter cuidado. Ao passo que a ficção, não tem de ter cuidado nenhum. Se quiser dar um tiro no outro gajo dá, não tem problema nenhum, ninguém fica chateado, é um figurante, caiu para o chão apenas. Agora, se a pessoa for autêntica, verdadeira, pode criar ali uma tensão. Por isso é preciso mais cuidado. Um documentário respeita mais as pessoas. É obrigado a respeitar. O documentário é obrigado a respeitar, porque senão pode correr mal.

Fiquei esclarecido. Na altura que vi o filme, fiquei com a ideia que faltava uma certa integração de perceber o que é o contexto actual e o que é que as pessoas fora de Portugal percebiam do filme.
Eu penso que o próprio filme, com o seu tom, ajuda a perceber um bocadinho. Não digo que seja uma solução, porque eu também não tenho soluções. Temos de pensar que o cinema não é propriamente Deus. Nós temos de ter um bocado cuidado com isso. Porque às vezes pede-se muito a nós, ao cinema. Mais ao cinema até que às outras artes. Como é uma arte muito abrangente, pede-se que consigamos mostrar tudo. É difícil. Não se consegue. Não se consegue, nem pode, porque depois pode falhar. Se nos limitarmos a um certo terreno e não falharmos nesse terreno, penso que é mais honesto. Porque, se se abre muito, depois não consegue resolver. Porque cada vez que se abre uma janela, tem que se a fechar. Ou deixá-la aberta, mas deixá-la bem aberta. E isso é que se torna complexo. Se eu desenvolvesse mais um tema, depois tinha de ter capacidade de o resolver. Depois o tempo, seria diferente. O objecto, para mim, já não era aquele, já era outro. Isto é um jogo. Por isso é que eu digo que foi dos filmes mais difíceis para resolver da minha vida. Todos os filmes são difíceis, mas este foi mais do que os outros, porque eu não conseguia resolver. Não conseguia chegar àquilo que eu sentia. Ou seja, tinha uma experiência com aquele bairro, com aquelas pessoas e eu não estava a conseguir passá-la.

No final, essa experiência passou?
Passou, porque eu vejo o que as pessoas e a crítica dizem e é isso que quero. Não quero mais nada, satisfaz-me. Acho que consigo transmitir aquilo que eu sinto quando vou à Cova da Moura. Aquela alegria, aqueles problemas todos que estão lá… porque está lá tudo. Pode não estar muito directo, mas está lá.

Parece que está um bocado ao lado.
E está, porque para eles também está ao lado. Está presente…

Eles sabem que está lá, mas não a vivem.
Não podem, porque senão, coitados, não fazem vida nenhuma. Já perdeu o irmão, depois perdeu o outro irmão, quer dizer, eles sabem. Essa pessoa fala lá que estava a estudar, que estava na escola. Escola de quê? Percebe-se? Não se percebe, mas é um elemento giro para se perceber, mas eu não me deu tempo e não quis escrever. Escola da Polícia, ela queria ser polícia. Ela queria ser polícia. Depois abandonou, mas tenho esse documento. Mas é um documento que, ao pô-lo no filme, ia-me estragar aquela sequência. Porque o filme também tem um ritmo e tem uma construção, que isso é muito importante, que o espectador se sinta bem, não é? E vá para casa, apesar de tudo, tranquilo. É um filme rápido, mas isso também é o que nós queremos, não é? Portanto, tenho que ter cuidado e não arrastar o filme. Há sempre muitos elementos que entram em jogo e que não são só conteúdo, é forma também e a gente tem de jogar as duas coisas. Agora, há coisas que falta, claro, mas já sei à partida que não posso ter tudo e portanto agora paciência. Este filme foi muito complicado para mim, eu sofri muito para o fazer. A montagem, não lá. Lá, não sofri nada.

Sim, o gravar é relativamente simples.
Exactamente. E eu tenho facilidade em gravar, porque tenho uma boa empatia com as pessoas, as pessoas normalmente dão-se bem comigo. Eu gosto das pessoas. Eu gosto normalmente das pessoas, não é daquelas, gosto das pessoas em geral. E depois quando começo a viver com elas divirto-me, dou-me bem, sou capaz de dançar com elas, estar com elas, de viver, comer… Tudo isso o filme transmite, porque eu vivi isso realmente. Agora, até eu conseguir mostrar isso ao espectador, é que foi difícil. Muito doloroso. Porque eu olhava para o filme e não gostava do filme. O filme não era nada daquilo que eu estava a pensar. E demorou muito tempo até eu conseguir dizer assim: “ok, agora já posso fechar e já posso mostrar”. Assim que eu achei que já gostava, pronto, fechei logo e deixa mostrar que eu quero fazer é outros. Não vou ficar mais tempo aqui.
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João Miranda, c7nema.net


Realização: Rui Simões
Argumento: Rui Simões
Direcção de Fotografia: Ricardo Filiage
Som: Paulo Abelho e João Eleutério
Montagem: Márcia Costa
Direcção de Produção: Jacinta Barros
Com: Anibal Capelas da Cunha, Anilda Rosario, Antonio Carvalho, Bela Medina
Produção: Real Ficção
Ano: 2010
Origem: Portugal
Género: Documentário
Duração: 81′



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