(cemitério antigo. entradas - sócios 1€, não-sócios 2€)
AGOSTO é o oposto das chamadas fitas de Verão, como as paixões que lá se contam estão nos antípodas dos amores de praia.
No ramo subtil e luminoso de Rohmer, nasceu um fruto pesado e escuro de Antonioni - contudo, é manifesto que este trabalho não vive da receita mas da intuição do autor que nas imagens se traduz pela procura do vibrátil como substituto do latente.
A excelente fotografia de Acácio de Almeida dá textura a esta aposta. Ela é quase mimética da ofuscação de Carlos, voyeur hipersensível que se deixa encadear pelas projecções da sua própria solidão. Na base do triângulo passional, a relação de Dario e Alda, tão vulgar que o torpor pode parecer um poço de mistério.
Se há pecado a censurar a Jorge Silva Melo, será talvez o excesso de requinte com que sacrifica a caótica expressão da vitalidade das suas personagens - todas elas «jovens» - em favor da cruel ambiguidade dos afectos - embora as margens do enredo se tinjam com as cores fortes do sangue, do sexo e da loucura e, para além dessas, se erga o cerco fantasmático de um fascismo e de uma guerra.
A tensão e a tristeza na maneira de abordar a amizade masculina - trata-se de um abeiramento porque a mulher funciona como amortecedor da tal queda em si que Camus descreveu - faz deste filme um caso raro de contenção e despudor. E, como quem não quer a coisa, Silva MeIo coloca-nos nos braços a questão de uma força anímica e inconsciente poder reger melhor a vida do que o diabo a pinta. Na balança, que é aqui o signo solar, pesa-se o estéril e o fértil.
É injusto escrever um artigo sobre uma cópia vídeo, visionada em Tróia num gabinete envidraçado quase no pino do Verão (!!!), mas mais injusto é o público estar privado da estreia deste filme feito com talento e ternura.
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Regina Guimarães, Grande Ilusão n.º 10
O cinema português tem tardado em encontrar um regime de funcionamento estável, no circuito que vai desde a produção de uma obra à sua apresentação ao público, cumprindo-se assim não só a sua função de expressão artística pessoal como também a de objecto de fruição lúdica e cultural.
"Agosto", de Jorge Silva Melo, era um desses muitos filmes que escandalosamente se têm arredado do contacto com o seu público após a sua conclusão. Em estreia há já algumas semanas, bem se pode dizer que estes três anos de espera, por sua vez, não fizeram nada mal a um filme que reafirma a posição no nosso cinema de um homem mais ligado ao teatro, de sólida formação cultural e com um universo criativo bastante lato. "Agosto" é um dos raros filmes da produção nacional recente que aposta na reconstituição histórica de uma época precisa, e não se pense que por se tratar dos recentes anos 60 esse trabalho é mais fácil do que se estivéssemos em presença de um filme situado num período mais ancestral. O trabalho de Jorge Silva Melo centra-se no entanto mais na descrição de ambientes, de sensações e de estados de espírito. A guerra colonial como pano de fundo, as referências musicais, um certo torpor de uma geração em crise na futilidade do seu dia-a-dia são elementos suficientes para que nos sintamos na pele das personagens, percebendo de imediato as suas angústias e frustrações. A história de "Agosto" é no entanto intemporal. Um discreto triângulo amoroso, a distância intransponível dos corpos, o desejo sucumbido, tudo fundido numa elaborada teia de olhares e seduções, tornam a visão do filme absorvente e enriquecedora. Mas o que confere uma definitiva solidez à evolução narrativa de "Agosto" é o trabalho dos actores, como poucas vezes no nosso cinema capazes de encerrar na sua estrutura física e psicológica a dimensão humana das figuras em jogo. Que os três principais protagonistas não sejam portugueses é de todo irrelevante, já que estamos em presença de uma obra em co-produção, regime comum a muito do cinema europeu que, nos seus melhores momentos, não nos escusamos de aplaudir. Mesmo que se tome esse facto como limitação, "Agosto" contrapõe aquela que será a maior descoberta do cinema português dos últimos 30 anos - Luís Miguel Cintra já era um grande homem de teatro antes do bom cinema que tem feito. Pedro Hestnes, que depois confirmaria o seu talento em "O Sangue", de Pedro Costa, é o contraponto perturbado e irreverente da serenidade de Christian Patey, prenunciando as mudanças que se verificariam mais tarde na sociedade portuguesa. E terá mesmo de se recuar a Rui Gomes e a "Verdes Anos" para encontrar uma presença tão forte de actor no cinema português. Se juntarmos a esta solidez e verosimilhança das personagens a justeza elíptica dos diálogos, a beleza dos movimentos de câmara, o tratamento cromático da imagem e a excelente produção de uma equipa jovem mas profissional, temos que "Agosto" será sem dúvida um dos objectos mais valiosos da nossa cinematografia mais recente. Quantos outros tesouros estarão ainda escondidos?
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João Antunes, Diário de Notícias, 25 de Maio de 1991
Música de Verão
Há uma coisa de que eu gosto muito neste filme e que, infelizmente, Jorge Silva Melo não sustenta durante todo Agosto: um jeito de a banda de som (banda de música, em especial) cavalgar os planos, criando uma cadência melódica e, sobretudo, uma noção de tempo presente e uno (o tempo da narração, como quem conta rememorando e treslendo a memória, fazendo de tudo um agora). Uma música pode começar num plano como mero efeito de linguagem para tomar, sem interrupção sonora, uma presença naturalista no plano seguinte (alguém toca - ou alguém canta - realmente na acção) ou, pelo contrário, pode começar na acção e depois espalhar-se - abstractizar-se, espessar-se quanto a potencial de significação - no plano seguinte. Ou pode mesmo- veja-se a sequência no Minho - saltitar de uma fonte a outra, impregnar tudo, num «efeito-Verde-Gaio» invertido (ou então é apenas para que o silêncio da noite, que acontece depois, seja melhor escutado...). Agosto é, em primeiríssimo lugar, um caldo bem temperado de sonoridades. Antes de ser imagem - mesmo se o trabalho de Acácio de Almeida é notável.
Na maior parte do cinema que vemos, a música é efeito de complemento posto lá como som de fundo (um pouco para que não se ouça o silêncio, quantas vezes para fazer pleonasmo) e, quando originada por um mecanismo naturalista, queda-se, quando a sequência muda. E bonito ver alguém sentir a função da música como algo capaz de entrar e sair das codificações normalizadas, utilizando-a como suporte respiratório de um filme cujas virtudes maiores não estão, como é bom de ver, na cinematização de uma história mas na materialização fílmica de pulsações.
Vejamos se me consigo fazer entender. Agosto terá, escancaradamente terá, muito pouco interesse em falar de pessoas, em traçar conflitos dramáticos entre elas, em possuir uma estrutura romanesca ou teatral, em seguir quem quer que seja. O seu objectivo é de outra índole. Se simplificássemos quase se poderia dizer que o que ele quer é falar nostalgicamente de um tempo em que a beleza circulava por tudo, porque tudo era jovem e desejável e havia mistérios breves para decifrar, uma mulher patética e o seu muito tenro - e instável - amante estivaI, uma outra que circulava na rotina de uma transbordante serenidade (e havia rosas a aflorar a praia no passado), os homens eram bonitos e o rosto dela fremia de uma vitalidade toda em derramamento, o céu, o mar, a bruma, a chuva, a luz forte da manhã ou aquela outra, dourada, da tardinha, o bruxulear do sol, no Minho, coado pelas árvores, o vento ou a noite eram fortes e nítidos. Nenhum dos personagens é tão definido como essas coisas, essas pulsações, essas respirações que sentimos sem nenhum contributo da razão, quase por abandono hedonista a uma embriaguez mansa.
A razão vem depois. A razão é o que vem mostrar que há qualquer coisa de essencialmente irrisório nos movimentos que os personagens fazem, a razão é o que vem polvilhar de tristeza esse vitalismo, a razão é o que comanda o matiz irónico, a dessacralização. Jorge Silva Melo vagueia, sem angústia, nesse vai-vem e quem conseguir sintonizar a epiderme com as vibrações de Agosto sairá desta fita com um sabor doce-amargo na alma mas acariciado. Não há alforrecas mas bálsamo nestas águas...
O que me desilude neste filme é que ele se contente em flutuar. Que ele procure o ponto de passagem para a poesia cinematográfica e fique a meio-caminho. Ou que - matreiro e lesto - finja que tem histórias para contar (o soldado que dá um tiro na mulher, o desassossego do casal protagonista, o adolescente que anda por ali, numa inquietação desaustinada), espargindo isco para o espectador ir, à babugem, no seu rasto. O que me desilude é que a coragem de procurar um cinema diverso (poético, sensorial, de uma inteligibilidade que faça apelo a circunvoluções cerebrais diferentes das que utilizamos para ler) fique incompleta.
Este é o terceiro filme de cinema de Silva Melo. No primeiro (Passagem ou a Meio Caminho), fazia apelo a Buchner para falar de uma revolução perdida; no segundo (Ninguém Duas Vezes) sentia-se o tempo a passar sobre gente desagasalhada e com frio lá por dentro; neste Agosto, solar e lânguido, há um retorno ao passado (anos 60) e ao Verão da vitalidade de ontem com um laivo de ironia. Formas diferentes de cansaço por todos eles. Uma sensação de espera de qualquer coisa que se sabe não vir. Uma tensão inorgástica...
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 11/5/91
ENTREVISTAS
Não será arriscado supor que Jorge Silva Melo sabe que o seu filme Agosto pode ser acusado de falta de enraizamento. Ou, para sermos mais precisos e, inevitavelmente, mais portugueses: de falta de identidade. Em boa verdade, ele expõe-se em todas as frentes: filma Portugal nos anos 60, inspirando-se uma novela sobre os anos 40 escrita por um autor italiano; utiliza actores franceses para três das principais personagens; enfim, aceita os riscos inerentes à dobragem e à co-produção.
Mais do que isso, o seu trabalho privilegia o acidental - «o aleatório da natureza», como ele diz - para optar pelo sentimento brutal de uma montagem que recusa submeter-se a qualquer obrigação «verista». Dito de outro modo: tudo, em Agosto, parece (e é) reconhecível, desde a vulnerabilidade tocante dos rostos à luz do sol deste lado do oceano; ao mesmo tempo, tudo é (mesmo quando não parece) testemunho de uma história que resiste a ser apropriada em nome de qualquer verdade, seja ela interior à própria história ou específica do cinema.
O fascínio do filme é também o fascínio dessa sua confessada dualidade: impõe a controlada certeza da sua geometria narrativa, ao mesmo tempo que finge conservar a espontaneidade de um quase documentário, ligeiro e livre. E nesse fingimento que Jorge Silva Melo descobre a razão primeira do trabalho formal - e de apropriação histórica - conduzido pelo cineasta. É um trabalho de amor, com algum humor.
A seguir, tópicos para um retrato, se possível imaginado sob a luz difusa de uma janela lisboeta.
A utilização da dobragem para os actores estrangeiros:
A dobragem não me incomoda, o que pode incomodar são alguns dos seus aspectos técnicos. Apesar de ter trabalhado em regime de co-produção, não tive qualquer obrigação de «casting»: procurei dois actores franceses para o casal do filme porque não conhecia actores portugueses com aquela idade e aquele tipo físico. Gosto de criar seres que não existiam antes: a Marie Carré não tem a voz da Alexandra Lencascre, a não ser neste filme; o Olivier Cruveiller não tem a voz do Norberto Barroca, a não ser neste filme. E o Norberto Barroca é a voz do Rui Gomes nos Verdes Anos.
O som directo pode ser extraordinário, mas acabou por se transformar num dogma importado de França, da Nova Vaga. Em Portugal, com as dificuldades gigantescas de rodagem e localizações, com o pouco trabalho preparatório que costuma haver para os filmes, muitas vezes o som (directo) é mau porque os locais não foram escolhidos e estudados com um engenheiro de som.
O som e a herança rosselliniana: «As coisas estão lá, para quê manipulá-las?»:
No grande período cinematográfico de Rossellini, antes dos filmes para televisão, a banda sonora é de uma brutalidade simples. Ao contrário do dogma rosselliniano que ficou, ele não respeita o que lá está, ou só respeita por preguiça. Todos os seus filmes são extremamente manipulados, só que a manipulação não é tanto a da rodagem, como a da montagem.
A verdade do actor (e da banda sonora) depois da dobragem:
O que resta do actor dobrado é o mesmo que resta de Claudia Cardinale até Luchino Visconti a ter filmado com a sua própria voz em O Leopardo (1963). Por exemplo, em A Rapariga da Mala (1961), de Valerio Zurlini, o som é genial e é totalmente dobrado: o que lá está nunca é o som acidental, mas apenas o som voluntário, o som que faz sentido. Gosto dessa contradição: filmar o aleatório da natureza, do sol e da matéria, respondendo a isso com um som inteiramente voluntário.
O trabalho de adaptação literária:
O filme parte da novela La Spiaggia, de Cesare Pavese, cuja acção se passa nos 40, na Itália do pós-guerra, e aborda a ascensão da burguesia intelectual depois de alguns anos de recuperação económica. O meu filme fala do momento em que li a novela: é mais uma adaptação da leitura que fiz em 1965. Agosto é, se calhar, o filme que gostava de ter feito quando ainda não podia fazer cinema. E um filme que me faltou; é, talvez, o filme que gostava que a geração de João Bénard da Costa tivesse feito quando se encontravam na Arrábida.
A reconstituição da história:
Não quis que nada nas roupas, nos cabelos ou nos cenários obrigasse o espectador a uma distância histórica. Detesto séries britânicas, detesto James Ivory, ou seja, aquela imposição dos adereços e de todo o «bric-à-brac» para dizer a «verdade histórica». Acho isso uma mascarada e o cinema português tem sofrido com isso, com muitos veludos que me parecem totalmente acessórios.
Embora tudo o que está no Agosto seja historicamente certo, estão também lá coisas claramente copiadas de outros filmes: o vestido com o decote em barco que Marie Carré usa na cena do baile vem do vestido da Lea Massari, em A Aventura, de Antonioni; as calças brancas e a blusa vermelha que ela usa vêm da EIsa Martinelli, no Hatari!, de Hawks - são coisas de filmes que adoro e são também roupas que podiam ser do presente.
A abordagem da história no cinema português:
A desmarxização da ideologia trouxe à história um novo peso mítico e também, afinal, ideológico. A utilização da história na arte portuguesa contemporânea é uma questão de «standing», mais que trabalho. Somos finos, temos museus, grandes monumentos, uma sociedade com um grande passado – e há uma necessidade de nos encontrarmos com isso, mais do que pensar isso. Muitos filmes portugueses recentes dependem daquilo que já chamei «turismo de habitação»: o património está mais presente do que o pensamento sobre a história. No Agosto, gostava que os espectadores reconhecessem os anos 60, mas gostava também que seguissem a história e amassem aquelas personagens sem a diferença do tempo e sem o olhar retroactivo - que fossem por ali fora...
A montagem de um projecto em regime de co-produção:
Agosto é uma co-produção entre Portugal (Paulo Branco) e França (a cadeia de televisão La Sept). O filme enfrentou os problemas então nascentes (para nós, portugueses) das co-produções, problemas que começavam na ignorância dos próprios contratos. Lembro-me, por exemplo, que fiquei cerca de mês e meio em Paris, à minha custa, porque não se sabia quem pagava a banda magnética para o som (que orçava em cerca de 50 contos). Isso teve repercussões de loucura, mas acabou por ter também as suas vantagens: eu e a Claire Simon, a montadora do filme, trabalhámos muito sobre a concepção da banda sonora e da montagem nos tempos de desemprego obrigatório.
A promoção e venda de uma co-produção:
Aprende-se com a experiência. Quando a co-produção foi negociada com La Sept, os contactos processaram-se numa altura do ano em que já não havia quotas para filmes de cinema. Por isso, o filme foi vendido para França como um telefilme, sem que eu soubesse disso: não pode ser exibido nas salas, tendo já passado oito vezes na televisão. Ora, como as vendas internacionais pertencem, por contrato, à parte francesa, esta não está nada empenhada em vender um telefilme. Daí que o filme esteja morto internacionalmente porque, no contrato, não se soube salvaguardar este aspecto da montagem financeira.
O tempo de espera para estrear um filme:
Um filme na gaveta é das coisas mais horríveis que já me aconteceram: uma é representar perante uma sala com cinco pessoas; outra é ficar com um filme debaixo da língua durante seis anos.
Agosto está pronto há três anos (e devia ter ficado pronto há quatro). Podia ter ficado na gaveta se não fosse o meu esforço e facto de ter continuado a negociar com Paulo Branco para conseguir a estreia. Felizmente, ele conseguiu montar um pequeno sistema de distribuição que renovou alguns aspectos do sector. De qualquer modo, agora que já não são os realizadores, mas apenas os produtores, que têm acesso aos subsídios do Instituto Português de Cinema, acho que os respectivos regulamentos deviam impor a obrigatoriedade de uma data de estreia. Se é uma indústria que se quer, que seja uma indústria a sério.
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João Lopes, Expresso, 11/5/1991
Fabricado entre 1986 e 1988, estreado apenas em 1991, Agosto é um filme fascinante, na hipótese de a televisão ainda permitir que alguém suspenda a voracidade de ziguezaguear pelo mundo das imagens e dos sons e sobre o caos procure disponibilizar-se para o olhar e a escuta: uma tarde de Verão, a Arrábida, os sons estivais no campo, uma certa luz, um rosto inexplicado. Adaptado de uma novela de Pavese, objecto a pedir uma lavagem de alma, contraponto radical ao audiovisual dominante. Esperando que a RTP cuide de nos dar uma cópia que faça jus à luz, aos cromatismos e às sonoridades as mais preciosas matérias da fita - e não uma daquela transcrições videográficas empasteladas, com que é uso servir o cinema português, fomos pôr-nos à conversa com Jorge Silva Melo.
Em textos recentes vens defendendo a ideia de que o cinema não serve para contar histórias, mas para outra coisa. Creio que Agosto é, provavelmente, um bom exemplo disso. Mas, se não serve para contar histórias, para que serve?
Eu acho que cada filme pressupõe uma sociedade, ou seja, o gesto de se fazer um filme pressupõe sempre a existência de outras pessoas que estejam interessadas nele. Agosto é um filme que parte do pressuposto de que ainda há pessoas que estejam interessadas em ver e em estar - e não em interpretar.
A narrativa, na maior parte dos casos, acaba por ser uma narrativa explicativa, de causa-efeito, de que o modelo mais perfeito e acabado será o do romance policial em que, no final, tudo se explica, e as causas e os efeitos que pareciam confusos acabam por ser esclarecidos. No pós-guerra, tudo o que foi feito com a narrativa, na literatura e nalgum cinema, não foi isso, não foi tentar a explicação, mas sim abrir a narrativa para outras formas - que não são as da causalidade. Nisso a novelística do Pavese foi extremamente importante, quer na influência que teve no cinema italiano (por exemplo, no Antonioni), quer na ideia de que as coisas estão lá e nós podemos olhar para elas sem ser interpretando-as. Na novela de que eu parti para este filme, A Praia, o Pavese fala muito do mal-estar do corpo intelectual no mundo: é difícil a um intelectual estar na praia, nas rochas, na areia, sem estar a interpretar a pura existência das coisas. Foi sobre isso que eu quis fazer este filme.
Quando falei com o Christian Patey, que o fez o protagonista, eu disse-lhe: «Não quero fazer aqui um voz 'off', embora a novela do Pavese seja toda contada pelo narrador, quero fazer um olhar 'id', quero filmar o teu olhar sobre as coisas.Ou seja, o lugar daquele personagem é o olhar do narrador, daquele que vai tentando encontrar uma causalidade para as coisas. Ele olha para o casal e acha que o casal está em desagregação, olha para o jovem e acha que o jovem está apaixonado pela rapariga, e por aí fora, ele está sempre a construir uma história sobre a pura existência das coisas. Na altura em que escrevi a adaptação, eu estava em França a repre¬sentar no teatro um papel que me marcou muito, o Spinoza, e, no fundo, tratava-se de jogar no filme com a materialidade das coisas, contra a interpretação.
E claro que isto pressupõe pessoas interessadas em olhar e em estar e não em querer saber porque é que as coisas são assim. Este filme foi um gesto nesse sentido.
O que eu acho graça no Agosto é que ele é filmado como se de uma narrativa tradicional se tratasse, com uma «découpage» clássica, o campo-contracampo, com ritmos de narrativa, o que é desconjuntado pela ausência de narrativa ou pelo lugar do narrador dentro do próprio filme. O filme vive dessa contradição, que me parece interessante. E claro que isto foi um momento da minha vida. Não te digo que seja isto apenas o que me interessa no cinema.
Acho que não, até porque tu vens defendendo a falta de cineastas portugueses que captem «o ar do tempo», que façam, hoje, por exemplo, aquilo que o Paulo Rocha fez nos Verdes Anos, agarrar, de alguma forma, uma certa Lisboa do início dos anos 60. Agosto está nos antípodas dessa preocupação...
Os meus dois primeiros filmes eram filmes muito pessoais, em que eu quis agarrar esse «ar do tempo» de que falas. Mas, depois desses dois filmes, eu achei que devia fazer uma adaptação, apeteceu-me disciplinar-me num certo sentido. E decidi fazer um filme que poderia ter sido feito em 1964 e que não foi feito por determinados motivos, políticos e sociais, e, dessa maneira, o Agosto é um filme adiado, um filme tardio. Li a novela do Pavese, não sei se em 64, mas certamente em 67 ou 68 e quis logo fazer o filme, naqueles sítios. Mas era impossível - e só o consegui fazer em 1986, como se se tratasse de uma promessa não cumprida.
No filme que fiz a seguir - e que ainda não estreou -, Coitado do Jorge, parto de coisas que são muito próximas do Agosto, mas tentei captar muito precisamente o dia em que se passa a acção, creio que é um documento sobre Portugal em 1992 - e isso interessa-me cada vez mais. No espectáculo que estou a preparar para estrear na Gulbenkian, haverá mesmo uma parte de aleatório, em que as notícias do próprio dia, os telejornais, passarão no próprio espectáculo. Como o espectáculo vai estarem cena a 18, 19 e 20 de Setembro, durante a campanha eleitoral, teremos com certeza manifestantes vindos dos comícios no próprio palco. Interessa-me muito captar o momento. O Agosto está um bocadinho à margem nisso mas tem esse tema, que a personagem Alda diz e que é um frase do Cézanne: «Há um minuto na vida que passa, temos que pintá-lo tal como ele é.» A ideia não é interpretar o minuto que passa - dizer que estamos melhor ou pior, ou que vamos a caminho de - mas pintá-lo tal qual, nas suas contradições. E isso eu acho que está lá.
Agora o que me interessa mais é filmar a actualidade, porque a actualidade é cada vez mais um interdito na sociedade portuguesa. O romance histórico, o património e todas essas coisas absolutamente terríveis estão a impedir-nos de filmar a realidade que tem, não digo ficções, mas tensões ficcionais muito fortes que tenho pena de não estarem a ser filmadas. Porque o cinema serve para isso: não tanto para as explicar, mas para as tomar presentes, para as revelar, como diria o Rossellini.
Agosto vai passar na televisão. Como é que o vês a passar integrado no actual panorama audiovisual português?
Como uma coisa esquisita - mas eu acho que só sou capaz de fazer coisas esquisitas. Com 46 anos já percebi que não vou ter nenhum lugar central, vou ser completamente marginal e, de vez em quando, vou conseguir fazer umas coisas. Que serão, de alguma maneira, provocatórias, nem sempre conseguidas, mas que terão um peso. Há uma coisa de que gosto muito no Agosto. Na equipa do filme estavam Pedro Costa, Ana Luísa Guimarães, Claire Simon (que entretanto se tomou cineasta), Manuel Mozos, Joaquim Pinto, João Guerra. Ou seja, é um filme que cristalizou uma quantidade de gente que a seguir viria a fazer filmes, alguns dos quais me parecem muito interessantes. Isso é uma coisa que me deixa muito contente. Mesmo que o filme não venha a ter um lugar muito central no cinema português, teve um lugar cristalizador para uma série de pessoas que por ali andavam. E esse é um lugar de que gosto.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso, 1/7/1995
Realização: Jorge Silva Melo
Argumento: Jorge Silva Meio e Philippe Arnaud
Música: José Mário Branco
Fotografia: Acácio de Almeida
Montagem : Claire Simon
Interpretação: Christian Patey, Olivier Cruveiller, Marie Carré, Manuela de Freitas.
Origem: Portugal/França
Rodagem: 1986-1988.
Primeira apresentação pública em Portugal: 1 de Outubro de 1988 (Cinemateca Portuguesa, Lisboa)
Duração: 97 minutos
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