Intenso e envolvente drama humano sobre uma trágica história de sobrevivência.
Numa madrugada fria e chuvosa quatro homens numa pequena embarcação de pesca naufragam no meio do Tejo com um rombo no casco. Unem esforços para tentar evitar que a água inunde o barco e acabam encalhados numa coroa de areia. Sem rádio nem sistemas de alerta esperam pela maré baixa para tentar alcançar a margem, que parece mais perto do que na realidade está, como em breve irão amargamente descobrir.
Nascimento constrói um surpreendente drama intimista no meio de uma situação de alta tensão e perturbadora angústia, quase como um thriller psicológico, em que quatro seres humanos enfrentam a morte na noite e no meio de um rio que os pode engolir para sempre. Com Vítor Norte, Carlos Santos, Nuno Melo e Adriano Luz nos principais papeis de um filme duro, sensível e amargo como são todas as tragédias pessoais.
Tarde Demais esconde uma formidável lição que estes dias tomaram de uma completa e infeliz actualidade. A constatação simples de que somos todos náufragos - uns mais do que outros, é verdade - num sistema onde os salva-vidas não saem, os helicópteros não voam e os milagres são servidos a domicílio pelos conta-gotas de soro televisivo. Brilhante e justo, Tarde Demais acabou por ser, se calhar involuntariamente (ou talvez não), um filme urgente e pedagógico: uma verdadeira lição de selvagem sobrevivência, no eterno Mar da Palha, onde vivemos e onde não parece existir qualquer hipótese de socorro ou remissão. É por isso que a canoa Era Assim - nome providencial - é o nosso (mais) verdadeiro Titanic.
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João Mário Grilo, Visão, 30/03/00
Este filme constitui uma pequena surpresa dentro do nosso meio cinematográfico. Surpresa «adivinhada», na medida em que o desenvolvimento da nossa incipiente «indústria» de cinema dava a entender que ela surgiria mais tarde ou mais cedo e que - talvez não por acaso - aparece quando a produção audiovisual busca outros percursos, interesses e histórias, tanto no espaço «nobre» do cinema (os filmes de Joaquim Leitão) como no outro, mais «popular», da televisão (a série de telefilmes da SIC). De certo modo, este filme de José Nascimento pode considerar-se como o «elo» que faltava para acabar de vez com distinções espúrias e impor o cinema «tout court» contra tendências, modas e manifestos de «mandarins», para terminar com o princípio de exclusão que cada uma das facções que imperam no nosso meio cinematográfico parece querer impor à outra.
«Tarde Demais», um filme pioneiro? Em boa verdade, devo afirmar que sim. Não porque seja uma revolução formal ou temática, mas porque lança bases e expõe mais claramente (quase em forma de programa) o que outros têm tentado e que o relativo fracasso comercial de «Inferno», de Joaquim Leitão, parecia ter posto em causa.
Em primeiro lugar, o ponto de partida. Trata-se de um «fait-divers» ainda recente (1995): o drama de quatro pescadores que encalharam no Tejo e vêem a vida em perigo com Lisboa à vista. O filme de Nascimento reconstitui o caso de uma forma dramática, onde o factor humano se impõe ao desejo de fazer uma obra de denúncia. Isto, pelo menos, durante a primeira parte. Se «Tarde Demais» fraqueja na última meia hora é exactamente por deixar transparecer aquela intenção com a actividade frustrante de quem tenta salvar os homens perdidos, esbarrando na incompreensão e na burocracia.
Em segundo lugar, a forma como José Nascimento encena a odisseia daqueles homens - e que se revela a assimilação de uma linguagem clássica do cinema talvez mais francês que americano (ao longo dessa primeira parte, o espectador reconhece, em bastantes momentos, «O Salário do Medo», de Henri-Georges Clouzot) - consegue habilmente evitar a tendência descritiva com que alguns filmes semelhantes começam. Nascimento conduz-nos de imediato para o cerne do drama. O filme principia com o barco encalhado e os quatro tripulantes interrogando-se sobre a melhor forma de saírem dali.
Esta primeira parte concentra-se inteiramente sobre estes quatro homens e as suas tentativas de fuga. No cinema português, nunca se viu desta forma o uso do grande plano ou do plano próximo para alimentar a expectativa, o «suspense», o drama. Como nos filmes «de fora», que tanto se tem tentado imitar, há uma incrível recriação do real, com a sujidade colando-se aos personagens, o perigo perceptível e verosímil para o espectador participar dele, sentindo-se também o sofrimento e o medo, o frio e o perigo.
E se mais força não tem será talvez porque nem sempre Nascimento consegue tirar dos actores (ou estes nem sempre correspondem) toda a «verdade»; não a exterior, mas a interior, aquela que não é dita, até porque palavras não podem transmiti-la. O realizador (também co-argumentista, com João Canijo) percebeu pelo menos isto, na medida em que evita o excesso de diálogos, concentrando-se nos gestos e movimentos dos personagens. A fotografia de Mário Castanheira é também um auxiliar precioso do drama, ao conseguir recriar a atmosfera desolada, fria e suja do meio em que tudo decorre.
José Nascimento, porém, parece ter receado manter todo o filme neste meio, centrar-se em exclusivo no drama daqueles homens e da sua luta pela sobrevivência. Daí que recorra ao expediente de apresentar, na segunda parte, em montagem alternada, essa odisseia e as tentativas de salvamento que o filho de um dos pescadores leva a cabo, incluindo cenas que nada acrescentam à história. Com a agravante de estas irem progressivamente tomando destaque sobre as outras, esvaziando parte da tensão de que o espectador estava, até então, possuído.
De qualquer modo, estas reservas que pomos à segunda parte de «Tarde Demais» não invalidam o resultado extremamente positivo da totalidade do filme. É uma daquelas obras que é preciso ver e em que é preciso acreditar.
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Manuel Cintra Ferreira, Expresso
ENTREVISTA
José Nascimento é uma das figuras-sombra do cinema português. Montador com créditos firmados em dezenas de filmes, tem tido como realizador um percurso bissexto, que agora conhece um novo impulso com «Tarde Demais», onde conta o trágico e patético naufrágio de uma traineira no Mar da Palha.
Desde «Repórter X» a «Tarde Demais» medeiam 14 anos, o que é muito tempo. Durante esse período, teve outros projectos?, em que é que se ocupou?
Na película, por exemplo, porque fiz a montagem de muitos filmes. Também fui professor no Conservatório, trabalhei em publicidade, fiz magazines para a televisão... Fui-me entretendo. Ao mesmo tempo, ia concorrendo. Tive quatro ou cinco projectos, que foram caindo. E houve ainda a «fase Cavaco», que constituiu um deserto...
E nunca pensou em pegar nesses projectos e dar-lhes outra saída?
Da melhor maneira. Enfim, dedico-me... e passo a outro senão há «feedback». É o curso natural das coisas. Não tenho jeito para o fado e para a queixinha.
Agora, porque levou tanto tempo a voltar a ser subsidiado?
É preciso ver que eu não pertenço a nenhum «lobbie», a nenhum clube, não tenho partido, sempre fui um «free-lancer»...
É uma questão de decisão? Decide-se não esmorecer?
Bom, eu encarei este projecto como uma prova de fogo, como uma última oportunidade. Se visse que ao fim de tantos anos tinha perdido a mão... aí havia que mudar de profissão. Depois, este projecto envolvia um desafio suplementar, que era filmar dentro de água - uma coisa dificílima, porque as marés e os «raccords» estão quase sempre em desacordo... Este filme era a minha prova dos nove. Por outro lado, esta minha «endurance» creio que virá do facto de até aqui nunca me ter assumido inteiramente como realizador, mas sim como técnico. Eu pensava - e julgo que bem - que só este percurso me permitiria estar do ponto de vista técnico à altura das oportunidades que surgissem. Para mim, não fazia sentido eu fazer um filme e ser o director de fotografia a indicar o sítio da câmara... E por isso resolvi ser paciente e ir aprendendo.
Como é que se passa de uma película algo formalista, como «Repórter X», a um filme deste género, que é uma espécie de regresso à inocência do olhar, a uma busca de realismo?
Isso tem a ver comigo, necessariamente, tem a ver com a chegada da maturidade, se quiser... E como nunca me senti obrigado a ser realizador, a ter de fazer um filme por ano, fiquei mais à vontade - não precisava de defender nenhuma espécie de «marca registada». «Repórter X» tinha a ver com artefactos da ficção, enquanto em «Tarde Demais» tratava-se de fazer uma «reconstituição» de algo que havia acontecido na realidade e, ao mesmo tempo, de saber como dar-lhe um olhar diferente sem trair a verdade emocional das coisas.
Se, por acaso, este filme lhe tivesse aparecido mais cedo, acha que estaria preparado para ele?
Do ponto de vista pessoal? Não sei... Seria outro filme, com certeza. Agora, confesso-lhe que, para mim, aprender a viver é fundamental para quem quer contar histórias - é necessário estarmos mais disponíveis perante a vida e para os outros, andarmos sem grandes expectativas...
Isso nota-se na maneira como a câmara se relaciona com as personagens, tanto em «Repórter X» como em «Tarde Demais»... No primeiro, a câmara domina a personagem; neste último, sente-se que a câmara se limita a ser fiel à verdade emocional das personagens... Aqui, a câmara está mais próxima daquilo que eu sou. «Repórter X» era um «filme de «bonecos», muito estilizado... Em «Tarde Demais», a minha atitude perante as personagens é de uma grande identificação. Por exemplo, não dei espaço a planos de recuo, e para demonstrar que os homens estão no meio do rio estive sempre perto deles, a viver o drama dos náufragos...
Isso até torna o drama mais universal e acentua o absurdo, porque vemos os náufragos a caminhar dentro de água, como se fossem Gullivers, entre as margens demasiado próximas...
Esta sensação de claustrofobia foi planeada?
Por muito que eu tenha planificado o filme, quando se chega ao sítio do naufrágio, que é no meio do Tejo, há os ventos, as marés, as correntes... E tem de se aguentar todas estas variáveis... e tomá-las em conta. Tal como tem de se tomar em conta a condição dos actores e ser-se rápido a preparar o plano, senão eles ficam gelados... Portanto, há uma urgência em filmar e uma grande vontade para que tudo saia bem à primeira. Deste modo, as condições extremas em que «Tarde Demais» foi feito obrigou-me a improvisar. E fui percebendo, à medida que ia filmando, que estava tanto melhor quanto mais próximo estivesse das personagens...
Porque é que uma história como esta o seduziu?
Li a reportagem e percebi que estavam reunidas as seguintes coisas: uma ideia de tragédia e uma espécie de comentário irónico à nossa história marítima. Na história trágico-marítima ainda havia grandeza; agora neste naufrágio de uma traineira no Mar da Palha todas as razões que levaram à perda de vidas humanas me pareciam pífias, mesquinhas, medíocres... Contra o passado mistificado era possível contar esta tragédia absurda: pescadores que morrem no Mar da Palha, diante de Lisboa, sem socorro, a cinco anos do ano 2000. Há qualquer coisa de político neste meu gesto, sem nunca ter precisado de cair na mensagem, no panfleto.
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Expresso
Realização: José Nascimento
Argumento: José Nascimento, João Canijo
Fotografia: Mário Castanheira
Música: Nuno Rebelo
Montagem: João Braz, José Nascimento
Interpretação: Vítor Norte, Adriano Luz, Nuno Melo, Carlos Santos, Ana Moreira,
Francisco Nascimento, Rita Blanco, José António Aranha, Suzana Borges
Origem: Portugal
Ano: 2000
Duração: 97’
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