5 Agosto AO AR LIVRE, um filme tremendamente emocionante e onde a banalidade não existe: OS LIMITES DO CONTROLO. Jarmush!!!!

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Os anos passam, e Jim Jarmusch, que já foi a personificação de um cinema americano jovem, rebelde e marginal, tem agora 56 anos e começa a personificar um cinema americano antigo, rebelde e marginal. É um homem antigo, Jarmusch - e isto, antes que se levante alguma dúvida, é uma coisa maravilhosa.



"Os Limites do Controlo" é um filme de um homem antigo, a tentar lembrar os valores da antiguidade (não necessariamente a dita "clássica" embora nem ela deva ser excluída) num mundo de gostos estereotipados e sem memória. É um canto pela diversidade artística e cultural, que encontra o mesmo esplendor num filme, no artesanato de uma tribo índia da América do Sul, num quadro de Juan Gris, na arquitectura madrilena, numa canção. Que faz ouvir o inglês, o espanhol, o francês, o japonês, e aprecia cada língua como se tivessem o mesmo valor de mercado.



"Os Limites do Controlo" é um lamento por um mundo obliterado pela cultura de massas, não porque tenha alguma coisa contra os objectos produzidos pela cultura de massas mas porque sofre com o esmagamento do resto - do que é residual, marginal, local, único, específico. Como diz uma frase, ouvida várias vezes e em várias línguas (num filme construído todo em rimas e repetições, e não apenas nos diálogos), "o universo não tem centro nem arestas". Mas, como se torna claro no último dos encontros do granítico Isaach de Bankolé (improvável, mas genial, mistura africana de uma disciplina de samurai com a impassibilidade de Robert Mitchum e a frieza de Lee Marvin), houve uma usurpação: alguém ocupou uma porção do universo e decidiu que aquela porção era o centro, tratando a seguir de começar a limar o que decidiu que eram as arestas. "Os Limites do Controlo" fala em nome das "arestas", e conta a história da revolta da margem contra o centro - é uma metáfora, mas Jarmusch toma-a como convém: pela sua literalidade. Uma espécie de cosmogonia (des)esperançosa, uma fábula triste e cansada mesmo quando parece divertida e a agitada.





Triste e cansada já deve ter dado para perceber, concentremo-nos no divertido e agitado. "Agitado" não é piada - "Os Limites do Controlo" não foi feito a pensar, digamos, em pessoas impacientes, tem o seu ritmo e os seus rituais e leva-os muito a sério; mas é um facto que se passam imensas coisas e imensas peripécias. Tem a estrutura narrativa de que Jarmusch mais gosta, a de uma viagem. Isaach de Bankolé, que se comporta como os assassinos contratados (tipo filme de Melville) mas durante algum tempo isso é tudo o que sabemos dele (ou seja, "que se comporta como um assassino contratado"), é despachado para Espanha numa missão cujos pormenores são omitidos ao espectador (ou, o que vai dar ao mesmo, são dados por charadas deliciosa e misticamente incompreensíveis).



Madrid, depois Sevilha, finalmente uma aldeola andaluza. Para além de esperar, sentado em cafés e esplanadas (sempre dois "espressos" ao mesmo tempo, homem de hábitos enraizados) ou em incursões no Museu Rainha Sofia (cujos quadros e objectos funcionam como os "cartoons" de "Ghost Dog", anunciando coisas que vão acontecer a seguir), tem vários encontros. Primeiro com uma rapariga, que está sempre nua (ou de gabardine transparente), saiu direitinha da primeira cena do "Desprezo" ("gostas do meu rabo?", pergunta a Isaach, e isto nunca foi citado desta maneira tão divertida), e cujo papel na "organização" permanece obscuro. Depois, uma série de encontros fugazes para sessões de "coffee and cigarettes" - quanto mais aborrecerem Jarmusch com a história de que os filmes dele têm "lógica de filme de sketches" é certo e sabido que ele não vai deixar de os fazer assim. A cada encontro, Isaach e o coadjuvante trocam umas caixinhas de fósforos (coisa arcaica) e isso é uma espécie de sinal para o próximo encontro ou para o próximo destino. Falam de pintura, de música, de ciência, de cinema (Tilda Swinton, em loura hitchcockiana: "o que de mais gosto nos filmes é quando mostram só gente sentada a conversar", assim descrevendo sinteticamente o plano em que está, e que Jarmusch depois, prolonga por mais algum tempo). Alguns são figuras familiares no "universo Jarmusch": John Hurt, Yuki Kudoh (a miúda japonesa do "Mystery Train" de há vinte anos), e Bill Murray, em vilão, a fazer-se tão oleoso quanto consegue (genial, o plano da "vanitas" com a peruca loura na caveira).


Quando acaba, na cena destinada a provar que todo o controlo tem os seus limites, "Os Limites do Controlo" está que parece uma daquelas ficções científicas distópicas sobre mundos totalitários, sobre mundos "do centro". À independência já não basta a melancolia, pede-se-lhe um pouco de ferocidade. É a novidade de "Os Limites do Controlo", filme belo e inventivo, zangado e elegante, filme de homem antigo.

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Luís Miguel Oliveira, Público


ENTREVISTA AO REALIZADOR

“ Os Limites do Controlo”, o mais recente filme de Jim Jarmusch, estreou-se na semana passada em Portugal. Jarmusch, americano do Ohio adoptado por Nova Iorque nos anos 70, assina com ele a sua primeira obra integralmente “estrangeira”: todo o filme se passa em Espanha, entre Madrid e a Andaluzia. É uma fábula, que convoca rituais de filme negro e ideais de samurai para descrever a missão de um assassino contratado. Com muitas pausas e muitas esperas – “um filme de acção sem acção”, diz Jarmusch na entrevista – preenchidas com a observação e a escuta de um mundo – pintura, música, ciência – palpitante de diversidade.



Jarmusch, que começou a filmar no princípio da década de 80, personificou a “independência” no cinema americano muito antes de o Festival Sundance e a Miramax (não exclusivamente) terem transformado essa independência numa indústria a replicar noutra escala os códigos e os processos de Hollywood. Continua a personificá-la, mais do que nunca, como uma independência de espírito. Trinta anos depois de “Permanent Vacation”, Jarmusch é como um célebre herói de Nicholas Ray (esse lendário “maverick” de quem Jarmusch colheu o testemunho, no tempo em que foi seu assistente na escola de cinema de Nova Iorque): “He hasn’t moved”. Em tradução livre, diríamos que não arredou pé. Como esta entrevista deixará perceber.



“ Os Limites do Controlo”, que título formidável... Onde é que o foi buscar?
A um ensaio de William S. Burroughs [publicado em 1975], que se chamava assim. Queria apenas usar o título, fazer um filme com esse nome, que é, de facto, formidável. Mas depois, de certa maneira, no filme acabaram por ficar alguns ecos do tema que Burroughs abordava nesse ensaio, os mecanismos de controlo da linguagem e, a partir da linguagem, de controlo do pensamento. E, claro, as fendas que se abrem nesses mecanismos, os seus limites. Mas a ideia nunca foi adaptar o ensaio, apenas ficar-lhe com o título.



Olhando para “ Os Limites do Controlo” sob determinada perspectiva, é capaz de se tratar do filme mais profundamente política que já fez.
Eu diria mais filosófico...





O que não exclui uma forte ressonância política...
Não, claro que não, ela está lá e espero que seja perceptível. Mas o tema da consciência tem uma amplitude filosófica inesgotável, preocupou todo o tipo de pensadores nos últimos milhares de anos, e é a questão essencial do filme: o que é que faz com que um indivíduo seja um indivíduo? Que tenha a sua consciência e não uma consciência ditada por outros? Que siga o seu caminho em vez de ir atrás do rebanho.



Mas é aí que justamente, transposto para o contexto contemporâneo, se torna num tema político. O seu interesse em “culturas” marginais aos grandes centros de difusão e promoção, em “jardins” como numa entrevista antiga lhes chamou, já vem de há muito tempo, mas em “ Os Limites do Controlo” é um interesse que entra em oposição clara, e até agressiva, com a chamada “cultura de massas”.
Acho que só comecei a explorar esse interesse, deliberadamente, com “Homem Morto”... Mas sim, com certeza. Desconfio, por natureza, da cultura de massas, e angustiam-me os seus cada vez mais perfeitos métodos de controlo do seu poder de persuasão. A maneira como leva as pessoas a abdicar da sua própria imaginação e a substituí-la por uma imaginação préfabricada. A decidir o que é aceitável e a pôr de lado o que não é, e a violência com que o faz. É um poder cada vez mais refinado. Eu próprio às vezes dou por mim com coisas que a cultura de massas pôs na minha cabeça. E tenho que fazer um esforço para as tirar de lá, porque não quero que elas lá estejam [risos]...



Acha que o panorama é agora mais sufocante do que há trinta anos, quando começou a filmar?
Havia ilhas, até em sentido geográfico, por exemplo em Nova Iorque [para onde foi viver nos anos 70]. Era mais fácil viver à margem. Hoje é muito mais opressivo. Além de que, pelo menos nos EUA, se se tiver alguma ambição artística, ou se se quiser criar alguma coisa movido primordialmente por um princípio artístico, a tendência é que se seja tratado como lixo.



Podia contar-lhe o que se diz em Portugal dos artistas, e dos cineastas portugueses, mas não quero angustiá-lo... Mas, portanto, "Os Limites do Controlo" narra a história da vingança da margem sobre o centro?
A vingança é inútil [uma má escolha de palavras do entrevistador propor¬cionou a "recriação" de um diálogo do filme: na cena final, Bill Murray pergunta a Isaach de Bankolé "Isto é o quê, uma vingança?" e Isaach responde, exactamente como Jarmusch, ''A vingança é inútil"]. É uma metáfora, uma metáfora de uma tomada de consciência e de uma afirmação da consciência contra todas as imagens e ideias que lhe são impostas de fora. A personagem de Bill Murray é uma representação dos poderes convencionais de todo o tipo, político, económico, cultural. Nunca pude com aquele cinismo disfarçado de pragmatismo, que agora está outra vez na moda, que nos quer convencer de que o mundo é "assim" e só "assim". O "vocês não sabem nada da vida", o "não é assim que o mundo funciona", seguido da conveniente explicaçãozinha cínica. Têm que escrever a pensar nisto, têm que fazer filmes a pensar naquilo - sempre "as massas" e, o que é igual, o "dinheiro" . Abdiquem da vossa individualidade, abdiquem da vossa imaginação. Ao diabo com essa gente toda. O discurso da personagem de Bill Murray nessa cena é um repositório desse tipo de frases feitas.



Já tinha filmado fora dos Estados Unidos ["Noite na Terra", de 1994, tem vários "sketches" rodados na Europa], mas foi a primeira vez que fez um filme inteiro no estrangeiro.
É verdade. E, no fundo, eu sei que não era preciso. Esta história podia ter sido filmada em qualquer lugar do mundo, inclusive nos EUA. Mas achei que seria inspirador lidar com outros cenários, outras culturas, debater-me com outro tipo de estranheza. E foi. Além do mais, foi óptimo passar uns meses longe destes malditos Estados Unidos, para desenjoar [risos].



E Espanha porquê?
Nenhuma razão especial, intuição simplesmente. Meti na cabeça que tinha que ir filmar em Espanha. Conhecia bem Madrid, e há anos que estava fascinado com aquele prédio de formas arredondadas que se vê no filme [um prédio vagamente reminiscente de Gaudi, mas obviamente não dele, impossível identificar o arquitecto - se algum leitor souber, faça o favor de dizer]. E Sevilha é uma das minhas cidades preferidas, é quase um fetiche [risos]. E finalmente a zona de Almeria foi o local onde foram rodados todos aqueles maravilhosos "western spaghettis" dos anos 60 e 70. Sabia que Espanha me ia dar muito com que me entreter.





Mas Espanha tem também uma coisa a que é sensível, e aliás isso está no filme: é um país "moderno", no sentido em que pertence ao "primeiro mundo", mas também é um país muito antigo, cheio de histórias e de marcas delas...
Indubitavelmente, sim. O muito novo e o muito velho coexistem plenamente. Reparou nos moinhos que se vêem na cena do comboio? Aquilo é a zona da Mancha, não há os moinhos do Dom Quixote mas há aqueles moinhos modernos, muito brancos, eólicos... E ainda. há outra coisa, que é a incrível mistura cultural que Espanha albergou. Pensar que foi um sítio onde os cristãos, os judeus e os muçulmanos viveram em paz uns com os outros... Até ao momento em que os cristãos decidiram correr com eles, claro [risos]. Mas portanto não são só as marcas do tempo que Espanha conserva, são também as marcas desse trânsito cultural. A arquitectura mourisca... E os ciganos, o flamenco...



Há muitas pequenas citações ao longo de "Os Limites do Controlo", e entre elas até há, não juro que seja a primeira vez que o faz mas nunca o fez assim, algumas autocitações, como todas aquelas cenas de "café e cigarros". Sendo sempre grave, e quase sempre sério, é um filme muito divertido, a sisudez está sempre a ser desfeita por uma brincadeira qualquer...
São autocitações, com certeza. É uma maneira de cortar o dramatismo. Queria que o filme tivesse esse tom sério e grave mas ao mesmo tempo que esse tom fosse sempre não-dramático. Uma espécie de filme de acção sem acção [risos], todo à base de pequenas situaçõezinhas.


Mas também é um filme sobre a ética e a autodisciplina. O protagonista é um parente próximo do Ghost Dog [personagem do filme homónimo, um samurai contemporâneo].
Sim, é um parente do Ghost Dog. É uma autodisciplina de praticante de artes marciais. Que, para mim, são uma coisa espiritual, muito mais do que física. Têm a ver com uma apreciação e uma aceitação da própria consciência, e a partir daí com o encontro de um posicionamento individual no mundo. O que não implica um centramento: esta personagem está sempre muito atenta ["aware"] ao mundo, muito observadora, aprende com tudo.



Mas não se distrai com nada. Também vem um bocadinho dos heróis de Jean-Pierre Melville [o realizador de "O Samurai", com Alain Delon] não vem?
Um bocadinho. Mas também de uma personagem dos romances de Donald Westlake, ou dos que assinou com pseudónimo [Richard Stark], que foi interpretada por Lee Marvin no "Point Blank" de John Boorman. Esta personagem também tinha como imperioso não se distrair com nada.


Uma das brincadeiras do filme é uma referência, sem o nomear, ao seu amigo Aki Kaurismaki. Continua a ser um cinéfilo? O que viu ultimamente que mais o entusiasmou?
Oh, sim, absolutamente. Estou sempre a ver filmes. A perspectiva de passar o resto da vida a ver filmes, seja a rever os de que gosto seja a descobrir os que nunca vi, é uma coisa maravilhosa. O que me entusiasmou recentemente?... [pausa] Ainda não o vi, mas estou ansioso pelo novo filme de Michael Mann, "Inimigos Públicos". Não sou um incondicional, mas tenho cada vez mais respeito e interesse pelo seu trabalho. De resto, ultimamente, vi uma retrospectiva Straub/Huillet de cabo a rabo, e agora ando a ver uma retrospectiva Nicholas Ray... Conheço os filmes todos de cor e salteado, mas nunca resisto a vê-los mais uma vez.

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Luís Miguel Oliveira, Público





SOBRE O REALIZADOR

Partindo do "caldo cultural" da Nova Iorque de 70, o trajecto "jarmuschiano" foi sempre no sentido de uma progressiva expansão de horizontes, geográficos e culturais - em todo o seu glorioso descentramento.



Pode-se dizer, o próprio Jim Jarmusch o diz, que "Os Limites do Controlo" é um filme sobre uma personagem que insiste - por questão de auto-disciplina espiritual - em conservar os olhos abertos ao mundo em vez de os fechar. É um pouco a história do próprio Jarmusch, que tem este apelido por causa da ascendência checa da sua família e nasceu em Akron, Ohio, em 1953. Entre "Permanent Vacation" (de 1980), o seu primeiro filme, realizado como exercício para a escola de cinema de Nova Iorque e ainda tão centrado nas subculturas novaiorquinas que ele viveu por dentro durante a década de 70 ("já foi bem bom ter vivido em Nova Iorque durante os anos 70", dizia uma personagem de "Café e Cigarros"), e "Os Limites do Controlo", o trajecto é sempre no sentido de uma progressiva expansão de horizontes, geográficos e culturais, e pela mescla, que se tornou coisa "jarmuschiana", dos mais diversos elementos oriundos das mais diversas proveniências.



No último plano de "Permanent Vacation", em prenúncio da viagem que aí começava, a câmara estava montada num barco que se afastava de Manhattan. Na verdade, a viagem de Jarmusch tinha começado alguns anos antes, quando aportou a Nova Iorque para estudar jornalismo e literatura na universidade. Mal chegou, viu uns papéis afixados nos corredores a oferecer bolsas de estudo em Paris e nem hesitou. Em Paris foi dar ao centro absoluto da cinefilia clássica, a Cinemateca Francesa, ainda dirigida por Henri Langlois, e aconteceu-lhe a coisa "maravilhosa" que não resistimos a transcrever de uma entrevista de há alguns anos: "E foi o maravilhoso nascimento de qualquer coisa em mim - uma tomada de consciência da diversidade dos filmes, e de quão bela era essa forma de arte. Vi filmes indianos de Mrinal Sen e Satyajit Ray, filmes africanos, e filmes clássicos franceses, japoneses, chineses, de todo o lado. E também aprendi imenso sobre os filmes de Hollywood por vê-los naquele contexto. (...) percebia-se simplesmente que o mundo do cinema era gigantesco".



Quando voltou a Nova Iorque matriculou-se na escola de cinema. Nicholas Ray foi lá passar os últimos anos da vida a dar aulas e Jarmusch tornou-se seu assistente - nessa condição pode ser fugazmente visto no "Lightning over Water" que Wim Wenders filmou com o moribundo realizador de "Johnny Guitar". Ray morreu em 1979 e já não viu "Permanent Vacation", o filme de fim de curso de Jarmusch que a escola recebeu muito mal. Resignado com a renitência geral, estava quase convencido de que não tinha futuro como realizador quando o filme, que tinha ido parar ao Festival de Mannheim, na Alemanha, começou a receber prémios e a ser comprado. Isto mudou a vida de Jarmusch.


Glorioso descentramento
Os filmes seguintes, "Stranger than Paradise" (1984) e "Down by Law" (1986), estabeleceram-lhe a reputação. O primeiro, que fazia o movimento entre Manhattan e a Florida com passagem pelo Ohio, seguindo um conjunto de personagens vagamente "artistas" e fundamentalmente desocupadas, partia do "caldo cultural" da Nova Iorque de 70 e de um panorama "pós-punk" tristonho e arruinado, morto sem ressuscitação possível. Desse filme passava para "Down by Law" John Lurie, agora em companhia de Tom Waits e do excêntrico (em todos os sentidos) Roberto Benigni. Se "Stranger than Paradise" era um filme de despedida, "Down by Law", rodado em Nova Orleães e nos pântanos da Louisiana, voltava-se para as raízes da cultura popular americana, e logo (Nova Orleães...) no seu mais heteróclito e miscigenado.


Em 1989, a terminar a década, Jarmusch continuou a sua investigação das culturas populares americanas em "Mystery Train", rodado em Memphis, Tennessee - onde encontrava, entre outros fantasmas, o de Elvis Presley. Na alvorada da década de 90, Jarmusch era o que havia de mais parecido com um "cineasta folk".


Perdeu-se um pouco no seu primeiro filme dos anos 90 - "Noite na Terra", cinco sketches em cinco cidades (duas americanas e três europeias), talvez o filme mais irrelevante da sua obra, desajeitada, mas tão sincera, declaração de amor simultânea por Los Angeles, Nova Iorque, Paris (onde encontrava Isaach de Bakolé, protagonista de "Os Limites do Controlo"), Roma (onde reencontrava Benigni) e Helsínquia (onde adoptava os actors de Kaurismaki). De "Homem Morto"(1995) dissemos muito mal quando estreou e nunca nos enganámos tanto. É talvez o filme mais complexo de Jarmusch, o filme com menos chaves cinéfilas (é um erro vê-lo como "revisão" do western), e profundamente radicado, via William Blake, na invenção de uma cultura "folk" que cruza o que veio dos brancos com o que veio dos índios, ou na visão/imaginação de uma América originada numa espécie de fronteira cultural. Depois dele, mas noutro estilo (e descontando o intróito de "Café e Cigarros", puro divertimento), Jarmusch só em "Flores Partidas" (2005) voltou a cruzar a América.


"Ghost Dog" (1999), e agora "Os Limites do Controlo", dois filmes "primos", exploram um desenho de personagem que é em si mesma altamente compósita, lançada num mundo (mais circunscrito no primeiro caso, um pouco mais vasto no segundo) que se tece pelas sobreposições de universos distintos (geográficos e "artísticos"), em todo o seu glorioso... descentramento. Como se diz no filme agora estreado, nem centro nem arestas (ou, se esperarem pelo último crédito, "no limits no control"): Jarmusch é uma espécie de panteísta cultural.

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Luís Miguel Oliveira, Público


Título Original: The Limits of Control
Realização: Jim Jarmush
Argumento: Jim Jarmush
Fotografia: Christopher Doyle
Montagem: Jay Rabinowitz
Música: Jay Rabinowitz (music editor)
Interpretação: Isaach De Bankolé, Tilda Swinton, Bill Murray, Gael García Bernal,



John Hurt, Paz de la Huerta, Alex Descas, Jean-François Stévenin, Luis Tosar
Origem: EUA/Espanha/Japão
Ano de Estreia: 2009
Duração: 116’



EM COMPLEMENTO

ANTES DE AMANHÃ, Gonçalo Galvão Teles, Portugal, 2007, 16’

Mário, um homem perseguido, pessimista, em fuga.
Se ao menos conseguisse chegar ao ponto de encontro combinado com o homem que lhe prometeu a salvação… uma cabina telefónica, na Calçada da Ajuda, às sete da manhã… a esperança de uma vida nova poderia sobreviver. E tudo voltaria ao normal.
Mas e se a madrugada do dia 25 se revelar tudo menos normal?


Título Original: Antes de Amanhã
Realização: Gonçalo Galvão Teles
Argumento: Gonçalo Galvão Teles
Fotografia: André Szankowski
Montagem: Pedro Ribeiro
Música: Bernardo Sassetti
Interpretação: Adriano Luz, Albano Jerónimo, Beatriz Batarda, Filipe Duarte, Joaquim Leitão
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2007
Duração: 16’



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