6 Agosto. Ao Ar Livre. Histórias de Cabaret = As Histórias do Cinema de Abel Ferrara. Indie rules!

Fábrica da Cerveja, 22h, sócios 1€, não-sócios 3,5€.


Há, em Abel Ferrara, uma tal pulsão de cinema que, mesmo com dois cordéis, três actores, alguns amigos e um fio de argumento, ele nos enleia durante 90 minutos. É um mundo sórdido que só ele consegue tornar gracioso, humano, matriz de um imaginário quase feérico. As raparigas são todas belas, o barman quer recitar Shakespeare em vez de vender uísque marado, o contabilista tem um sistema infalível para ganhar a lotaria.
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Jorge Leitão Ramos, Expresso



Um belíssimo manifesto pela independência.

Abel Ferrara é um especialista do caos, esse mesmo caos (viram o episódio do "Cinema de Notre Temps" que a ARTE fez sobre ele?) que lhe inunda a vida pessoal, os processos criativos e uma data de filmes. Pois bem, há muito que ele não filmava assim o caos, a periclitância como estado permanente, o risco de a qualquer momento tudo dar para o torto.

"Histórias de Cabaret" é habitado por estas sensações de uma ponta à outra, dir-se-ia mesmo que é sobre elas; mas, e quase como uma inevitabilidade tratando-se de Ferrara, foi ele próprio extraído ao caos e à iminência do falhanço, no decurso de uma rodagem (na Cinecittà, em Roma) marcada por inúmeros problemas de produção e pela ameaça constante de tudo ficar pelo caminho.

Quer o filme se tenha alimentado dessas perturbações quer não, o efeito de espelho adensou-se. "Histórias de Cabaret" rima as angústias de Abel Ferrara como autor "independente", reflecte a dificuldade da condução a bom porto do seu "pequeno comércio", do seu "cabaret", quer dizer, do seu cinema. É a história de um "night club" nova-iorquino (reconstituído num estúdio romano, como dissemos, incluindo alguns planos de exteriores) dirigido por um Willem Dafoe, actor em estado de graça, tão entalado como optimista (a energia positiva da personagem evoca a do Ed Wood de Tim Burton, outro filme sobre as agruras da independência). Não há dinheiro para pagar a ninguém, nem às "strippers" que ameaçam entrar em greve, nem à senhoria, uma velhota a quem Dafoe deve vários meses de renda e que não se cansa de anunciar que ou ele paga ou é despejado. Está tudo à beira do fim, mas Dafoe tem razões para estar optimista: apostou tudo num esquema (confuso e aparentemente fraudulento) para ganhar a lotaria, e teve sucesso. Mas ainda o caos: nem ele nem nenhum dos seus parceiros se lembram de onde raio guardaram o bilhete premiado.




É portanto uma noite de "ou vai ou racha", num frenesi dado praticamente em "tempo real" (a duração do filme corresponde à duração da acção), o fulcro de "Histórias de Cabaret". Em suspensão (sobre o abismo, em fuga para a frente) e em "suspense" (ah mas onde está aquele maldito bilhete salvador?). O tempo preenche-se com as correrias à procura do bilhete e com as conversas de Dafoe para apaziguar os credores e convencer as meninas a subirem ao palco - e entretanto, "the show must go on", com "performers" vindos de outros filmes de Ferrara (Matthew Modine ou Asia Argento). Dafoe é uma espécie de figura paterna, mestre de cerimónias, psicólogo, intrujão por uma boa causa (a sua independência, o seu negócio, o bem-estar da "família" composta pelos funcionários do "cabaret"). Também é uma espécie de cineasta, como que um duplo do próprio Ferrara, a conduzir um filme de expediente em expediente, a arrancá-lo às garras do fracasso. Ferrara mencionou "A Morte de um Apostador Chinês", de Cassavetes, o filme onde Ben Gazzara se dispunha a tudo para preservar o seu negócio nocturno. "Histórias de Cabaret" tem outro tipo de intensidade, e um espírito de irrisão totalmente diverso da sisudez de Cassavetes. Mas é, como ele, um belíssimo manifesto pela independência, capaz de integrar, irónica e esfuziantemente, todas as suas ambiguidades e sombreados morais.
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Luís Miguel Oliveira, Público


Se pensavam que este filme de Abel Ferrara se passava no sub-mundo nova-iorquino, estão moderadamente enganados. Porque, na verdade, Histórias de Cabaret (Go Go Tales), passa-se no submundo de outro submundo. Desce-se ainda mais um andar no underground do realizador. Agora estamos numa subcave da subcave, nos bastidores de um cabaret, esconso e sufocante, que já teve melhores dias (ou melhores noites). Mas não é a claustrofobia do espaço que impede o arejamento do guião. Tudo acontece na vertigem de um bungee jumping, sem rede nem sistema de pára-quedas…. Em Go Go Tales, as cenas sucedem-se nesta queda livre, ao ritmo da música e das strippers semi-nuas, que em primeiro plano ou em fundo, não param de se contorcer. E há coisas sempre acontecer, ao ponto de parecer haver um torvelinho de uma corrente de ar impossível naquela viciosa atmosfera. Primeiro são brisasinhas que sopram em várias direcções, em seguida já nos envolvemos no tufão, no ciclone de acontecimentos que se enrodilham no caminho de um empresário da noite (Willem Dafoe) que, em contra-relógio, tenta salvar o seu stripper-club. Claro que apesar da ventania, há a falta de ar do espaço fechado, dos planos esquinados, sempre apertados, do escuro, do interior, dos efeitos claustrofóbicos das câmaras de videovigilância… Tudo passa, tudo dança, tudo corre, tudo se transaciona, tudo desvaira… Não sobra um fôlego. Mas quem se lembra de vir respirar para um clube de strippers?


Há uma série de meninas despidas, ou em vias disso. São todas esculturalmente perfeitas, estilizadamente iguais, estereotipadamente despersonalizadas. Quase não têm cabeça, não se distinguem, (uma delas é Ásia Argento), apesar do dono do cabaret, dentro do seu smoking branco e manchado, especificar as suas idiossincrasias e nacionalidades, do Texas à Sibéria. Também há toda a entourage burocrática dos bastidores, o contabilista , o porteiro, o barman, o cozinheiro gourmet que prepara cachorros biológicos. E também há cachorros não comestíveis, um lulu e um rotter-weiler que também participam na lap dancing. E toda a gente se queixa. A senhoria velhota, com um cabelo louro-decadente, reclama as rendas atrasadas, as strippers ameaçam fazer greve por falta de pagamento, uma delas está grávida e o médico não recomenda que dance de saltos de arranha-céus, outra delas é apanhada na pista pelo marido (o actor italiano do momento, Riccardo Scamarcio)… No meio disto tudo, um grupo de chineses entra lá dentro por engano, e seguem o «homem-caranguejo» do restaurante do lado. Há um bilhete premiado e desaparecido de uma espécie de euromilhões, um aquário com peixes, uma máquina espacial de bronzear que pega fogo, a música imparável de Francis Kuipers …

O caos está instalado mas desinstala-se ainda mais, naquele galope desenfreado, por entre aqueles compartimentos do bas-fond, e de fundos do fundo. A cada esquina algo de Cassavetes, e de Altman, e por instantes, quando as bailarinas mostram outras vocações circenses, (uma toca piano, outra é ilusionista, um bar-man representa Shakespeare… ) parece que se rompe, por instantes, a fina parede dos estúdios Cinnecitá.
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Ana Margarida de Carvalho, finalcut-visao.blogspot.com


INCLUI DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Em Cannes 2001, após a projecção de "Histórias de Cabaret", tentámos entrevistar Abel Ferrara sabendo que a tarefa era quase impossível. O filme não estava ainda comprado para Portugal, o que dificultava o acesso ao 'rei dos indies', esse nova-iorquino de gema, filho de um camionista do Bronx, que agora trocou a cidade por Roma "porque a vida em Nova Iorque ficou impossível depois do 11 de Setembro". Havia um contacto no press release. Do outro lado da linha, recebemos um simpático "no problem", que em seguida se desculpou: não podia marcar dia e hora. É que Abel tem, no mínimo, vida privada tão turbulenta como os heróis dos seus filmes. São quase todos sublimes: "O Polícia sem Lei". ou "O Funeral", glórias dos anos 90, também deixaram mossa em Portugal. Mas a sorte bate-nos à porta na tarde seguinte em local mítico para os festivaleiros, o bar Le Petit Majestic. Ferrara, chega com a actriz Shanyn Leigh e uma agente de imprensa francesa que conhecemos. Pede uma cerveja com o seu slang nova-iorquino cerrado, parece uma personagem de "Os Sopranos". Introdução e pedido de conversa feitos, levamo-lo para o jardim do Grand Hotel, que fica mesmo ao lado.

Abel não fica no jardim, vai para o balcão do bar, e é aí que nos fala de "Histórias de Cabaret" e dos sete anos que esperou para o fazer. "Foi a primeira vez que tentei uma comédia e há muito de autobiográfico na personagem de Ray Ruby, um tipo que está a ver se a sorte muda. Ele é mais nostálgico e romântico do que eu, mas, no seu Paradise, não deixa de ser um sobrevivente." Acrescente-se que o Paradise de Ray.

Ruby (Willem Dafoe) é o bar de striptease de Nova Iorque onde estas histórias se passam. Um bar que Ferrara recriou por completo em Roma, nos estúdios da Cinecittà.




Nem tudo é rosa no cabaré chique com meninas de sonho que deslumbram empresários asiáticos: é que o clube está à beira da falência. Ao lado de Ray, há o 'barão', seu braço-direito na gestão do Paradise (Bob Hoskins), mas nenhum dos dois sabe como o salvar. A renda está atrasada. As bailarinas, lideradas por Monroe, uma Asia Argento que dança no varão e tem um rottweiler, ameaçam coma greve. A chegada do irmão de Ray, Johnnie (Matthew Modine), também não ajuda. Quem vai pagar o champanhe? Naquele ambiente que muitos julgariam sórdido, porém; há espaço para a maior generosidade do mundo. Viciado no jogo, Ray tem uma derradeira solução: aposta forte na lotaria. Para cúmulo, ganha o primeiro prémio. E, para cúmulo do cúmulo, perde o bilhete da taluda.

Influenciado por "Killing of a Chinese Bookie" (Cassavetes) e "Broadway Danny Rose" (Woody Allen), Ferrara diz que este filme "é a história de um gangue de azarados honestos à procura de dinheiro. Tenho o maior orgulho neles. O bar representa uma era dourada da vida de Nova Iorque que chegou ao fim e um tempo em que ainda havia respeito pelo trabalho e pelo showbiz'. Não é fácil imaginar uma screwball comedy que nos fala de produção de cinema independente do pri¬meiro ao último fotograma, mas, no fundo, "Histórias de Cabaret", filme de génio, não é outra coisa. Cinco estrelas para Abel.
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Francisco Ferreira, Expresso


Título Original: Go Go Tales
Realização: Abel Ferrara
Argumento: Abel Ferrara
Fotografia: Fabio Cianchetti
Montagem: Fabio Nunziata
Música: Francis Kuipers
Interpretação: Willem Dafoe, Matthew Modine, Asia Argento Roy Dotrice, Frankie Cee, Lou Doillon
Origem: Itália/EUA
Ano de Estreia: 2007
Duração: 96’



EM COMPLEMENTO

ALPHA, Miguel Fonseca, Portugal, 2008, 28’

O que começa como experiências em laboratório com animais conduz no futuro ao desenvolvimento de seres artificiais capazes de executar as mais diversas e complexas tarefas.
Estes seres, cuja aparência é totalmente humana, são inteligentes e versáteis: são capazes de realizar simples tarefas como regar plantas, pôr uma mesa, tratar da roupa ou alimentar um animal de estimação. Mas não só. São seres quase autónomos e podem mesmo falar e interagir connosco. Construídos para serem mais do que electrodomésticos perfeitos, são um pouco o que os clientes quiserem que sejam: podem ser meros ajudantes na lida da casa ou simples brinquedos para as crianças, mas também podem ser amantes sofisticados e apaixonados ou uma companhia perfeita para pessoas sós.
Antes de serem entregues aos clientes, as empresas desenvolvem uma espécie de estágio final dos seus produtos, supervisionado por um técnico, no qual se efectua o controlo de qualidade e onde certas capacidades são aperfeiçoadas, como a aprendizagem da língua dos clientes, por exemplo. Esta fase do processo é levada a cabo invariavelmente num meio fechado, normalmente numa casa que reproduz características-chave da casa do cliente.
Alpha é um destes seres artificiais e juntamente com Beta faz parte de um casal que está agora a poucas semanas de ser transportado para os seus futuros donos no Japão.

Título Original: Alpha
Realização: Miguel Fonseca
Argumento: Miguel Fonseca
Fotografia: Mário Castanheira
Montagem: Sandro Aguilar
Interpretação: João Nicolau, Sara Carinhas
Origem: Portugal
Ano de Estreia: 2008
Duração: 28’




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