Entradas - 1€ sócios, 3,5€ não-sócios.
Bilhetes à venda no Teatro das Figuras e no Teatro Lethes no dia da sessão a partir das 20h.
PRESENÇA DO REALIZADOR!
(apoio da Direcção da Cultura do Algarve)
Fragmentos de espaços e tempos, restos de épocas e locais onde apenas habitam memórias e fantasmas. Vestígios de coisas sobre as quais o tempo, os elementos, a natureza, e a própria acção humana modificaram e modificam. Com o tempo tudo deixa de ser, transformando-se eventualmente numa outra coisa. Lugares que deixaram de fazer sentido, de serem necessários, de estar na moda. Lugares esquecidos, obsoletos, inóspitos, vazios. Não interessa aqui explicar porque foram criados e existiram, nem as razões porque se abandonaram ou foram transformados. Apenas se promove uma ideia, talvez poética, sobre algo que foi e é parte da(s) história(s) deste País.
"Ruínas" começa com a implosão das torres da Torralta em Tróia. Em seguida vemos uma campa de um cemitério do Porto, ao mesmo tempo que ouvimos o relato da trágica história associada, a história de uma tal Henriqueta Souza, uma mulher que guardou a cabeça do amante como relíquia.
"Ruínas" é um documentário cujas "personagens" são uma série de edifícios e estruturas deixadas ao abandono em diversos pontos do país. É um filme contemplativo, habitado por memórias fragmentadas de um passado recente, que parecem prestes a desvanecer-se, conjuntamente com as ruínas que vemos ao longo dos 60 minutos do filme.
O documentário leva-nos até ao Bairro do Alvito, à estação da CP de Barca d'Alva, ao que resta do Sanatório de Albergaria, ou a uma pousada de Porto de Barcas, prestes a ser engolida pelo mar. Passamos também por cinemas, igrejas, complexos balneares e casas abandonadas.
Em lugar de fornecer uma contextualização, do motivo que levou ao aparecimento e o que tornou obsoleto todos estes espaços, Mozos opta por uma associação livre das suas imagens com relatos vários. Ouvimos desde livros de receitas do século XVII, a poemas de Ruy Belo e de Teixeira de Pascoaes, ou à carta de um director de uma recém-remodelada pousada, endereçada a um potencial cliente.
"Ruínas" recebeu o prémio Tobis de Melhor Longa-Metragem Portuguesa do IndieLisboa 2009. o prémio da competição internacional do festival FidMarseille e uma menção especial do júri do Filminho - Festa do Cinema Galego e Português.
Alexandre Costa, Expresso
Manuel Mozos nas ruínas das grandes esperanças
O cineasta Manuel Mozos filmou edifícios em decadência e ofereceu-lhes histórias. Nesse cruzamento de imagens e de textos fala-se, em "Ruínas", de um país mais de misérias do que de grandezas. Isto é Portugal. "De grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado". Belíssimo.
Há quanto tempo ninguém andava por aqui? Quem se lembra ainda do que aqui se passou?
Manuel Mozos tem por hábito ir anotando num caderno coisas destas: lugares, uma notícia que leu numa revista, uma referência de um texto. O que queria fazer em "Ruínas" - o filme, uma produção de O Som e a Fúria, que estreou esta semana - era cruzar essas coisas. Queria filmar os espaços vazios, sim, mas queria povoá-los, dar-lhes vozes, sons, fazê-los habitar por fantasmas que, se calhar, não eram os fantasmas desses espaços - eram outros, que obrigaram os primeiros a chegar-se para o lado e a deixá-los instalar-se também.
"Ruínas" é uma sucessão de imagens de espaços que o país deixou para trás, que esqueceu, mas que não desapareceram. Muitos permanecem, de pé, numa dignidade silenciosa, abandonados mas não vencidos. Ninguém passa por eles, mas eles ainda ali estão.
"O que me interessa, quer nos espaços quer nos outros materiais que utilizo no filme, é serem coisas que acho interessantes e que se diluem, se perdem. Achava importante dar-lhes alguma vida, tentar que não desaparecessem completamente", diz o realizador. Não se trata de um olhar nostálgico ou saudosista, sublinha. "Mas são sítios que têm um lado poético, de coisas que existiram, que fizeram parte de histórias deste país."
Inicialmente pensou usar excertos de filmes antigos, postais, ou até encontrar pessoas que pudessem contar histórias sobre aqueles sítios. Pensou, inclusivamente, em alargar o filme a outras coisas que estavam a desaparecer, "profissões, jardins, matas, falar da transformação de certas coisas, da construção de campos de golfe ou do efeito das auto-estradas nos percursos dos animais", não numa perspectiva sociológica mas apenas como uma constatação de que é assim. Mas à medida que ia filmando foi abandonando essa ideia. O filme foi-se tornando cada vez mais depurado até chegar ao essencial: espaços vazios e sons.
O que vemos e o que ouvimos
E o que faz a força de "Ruínas" é esse cruzamento, sempre ligeiramente deslocado, entre o que os nossos olhos vêem e a história que estamos a ouvir. No Restaurante Panorâmico de Monsanto, enquanto a câmara mostra uma escadaria, a janela panorâmica, os murais, uma voz lê uma ementa de um livro de receitas do século XVI - uma lista de iguarias que, para Mozos, "se conjugava com aquela monumentalidade".
Às vezes, como no caso do sanatório das Penhas da Saúde, o que ouvimos - neste caso: relatórios médicos com todos os pormenores sobre o estado de saúde dos doentes à entrada e à saída do internamento - tem a ver com a história do sítio. Outras vezes é apenas uma história que podia pertencer àquele lugar, e só por acaso não pertenceu - como a carta a perguntar quais os preços de um fim-de-semana para um grupo de amigos num hotel, lida sobre a imagem da Estalagem de São José, em Porto da Barca, junto ao mar, um sítio onde Mozos chegou a ficar alojado antes de o estabelecimento fechar e começar a resvalar para o esquecimento.
"Na recolha de textos interessava-me ir para coisas que não ficam como grande literatura, procurava mais literatura de cordel, epistolar, relatórios, ementas". Ficaram três poemas. O resto são textos como o edital "Ao povo do Barreiro sobre o lançamento de uma bomba", de 1934, ou uma carta com um pedido de empréstimo - "coisas um pouco fúteis, do dia-a-dia, que as pessoas guardam, mas que nunca ficarão como nada de importante a não ser para quem faz e para quem recebe".
Os "makavenkos" ["Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos", de Francisco de Almeida Grandella, 1919], por exemplo, aparecem mais do que uma vez, sem qualquer ligação aparente com o que estamos a ver. Mas este clube de "bon vivants", formado para os prazeres da comida, fundado em 1884 por Grandella e alguns amigos, apareceu naturalmente no processo de pesquisa de Mozos.
"Vi uma vez numa revista uma notícia sobre a construção de um sanatório que nunca tinha sido terminado no Cabeço de Montachique, e percebi que o Grandella, dos Armazéns Grandella, tinha feito parte das pessoas que se juntaram para esse projecto."
Mais tarde, descobriu numa livraria o livro de Grandella e interessou-se primeiro pelo lado da gastronomia. Só depois encontrou uma série de outras histórias. "Havia uma lenda de que haveria um cofre enterrado no Cabeço de Montachique com moedas a que eram para pagar o sanatório. O edifício é estranhíssimo, tem uma configuração de estrela, o que tem a ver com [sociedades secretas como] as maçonarias, as carbonárias." Soube que o realizador António Macedo fizera lá um filme, e quis vê-lo. Depois filmou o sanatório que nunca chegou a existir, mas as imagens acabaram por praticamente não entrar no filme, à excepção de dois planos ao cair da noite - como se o edifício não conseguisse libertar-se da maldição de nunca conseguir materializar-se.
Um país pequeno
Mas os textos dos "makavenkos" ficaram, entre a história de "Henriqueta, uma heroína do século XIX" e o livro de ciências naturais para a 4.ª Classe do Ensino Primário e Elementar do ano de 1961. Com esses textos, os espectadores são conduzidos para a história que o realizador quer contar, seguem atrás dos fantasmas que ele ali quis projectar. Mozos não tem dúvidas sobre isso. "Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado." As mesmas imagens com outro texto contariam outra história. Durante a montagem experimentou vários textos (houve um enorme trabalho de pesquisa prévia sobre os lugares, com Ana Gomes e Dulce Mendes) combinados com diferentes imagens. "A construção ia-se fazendo por experiências, justaposição de imagens com sons, até eu achar que ficava assim. Mas era um jogo que podia tornar-se infindável."
O que ficou é também uma história do país. Ou melhor, são histórias de um certo país. Alguns espaços podem ser grandiosos, mas o que ouvimos são histórias pequenas, pequenas misérias. Um país pequeno?
"Penso que não fugimos a um lado pequenino mesmo quando se tentam coisas mais majestosas ou grandiosas. Em alguns dos textos há uma espécie de impotência, um lado quase tragicómico. Como na primeira história dos 'makavenkos', de um senhor que quer muito escrever uma peça de teatro e nunca consegue, ou o rapazinho que eles adoptam e depois a mãe leva embora. Há um lado, que sinto que é um bocadinho o país, de grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado."
Não é um filme sobre o Estado Novo, mas este insiste em espreitar aqui e ali, nos textos, nas imagens - nos velhos livros de escola e mapas do Centro Educativo do Mosteiro de Santa Clara ou no enumerar de serviços disponíveis (por categorias) para os funcionários da Hidro-Eléctrica do Douro. "Apercebi-me de que, se calhar, estaria excessivamente centrado no Estado Novo, mas não era isso que queria, para mim era o século XX, porque é o que eu conheço bem, vivi nele uma parte razoável da minha vida."
Há, em todo o filme, uma única cena com pessoas. É logo no início, no cemitério do Prado do Repouso, no Porto, no dia de Finados. Antes disso, apenas uma imagem: a implosão das torres de Tróia. "Quer esse plano de Tróia (quis filmar antes da implosão mas não foi possível) quer a sequência no Prado do Repouso têm um carácter metafórico para o resto do filme. O primeiro porque é a única coisa em todo o filme que desaparece. Depois da implosão só fica pó. E essa ideia do pó conduz-nos à questão do cemitério. Se não houvesse pessoas, o filme seria lido de outro modo. Nós, pessoas, temos uma memória. Mesmo quando as coisas desaparecem ficamos ligados a elas."
É por isso que os espaços vazios estão cheios de vozes.
Alexandra Prado Coelho, Ípsilon, Público
Nem as paredes confessam
Por acaso, até confessam. Confessam muita coisa. Por isso, é que o realizador Manuel Mozos nos põe a olhar para elas durante uma hora. Não é castigo, como na escola, mas não deixa de ser um teste à perseverança. A do olhar, o nosso. E a perseverança delas, as paredes, que se mantêm de pé, apesar de inúteis, esquecidas, obsoletas...
É uma mania das paredes, muitas ficam ali, com ar de milhafre ferido na casa (como diz uma canção), apesar de não sustentarem coisa nenhuma. A não ser que se proceda à eutanásia das paredes, que foi o que aconteceu às Torres de Tróia. E é com esta implosão que Manuel Mozos abre a sua sequência de ruínas. Dos escombros ao pó.
A maior parte são ruínas de um Portugal bolorento, pequenino e muito Estado Novo... Algumas são reconhecíveis, antigos hospitais, orfanatos abandonados, o Parque Mayer, as Minas de São Domingo, a Estalagem Gado Bravo, o Restaurante Panorâmico de Monsanto... Mas também muito casa de azulejinho e couves no quintal.
O realizador também constrói o seu documentários com ruínas, excertos, pedaços... Às imagens junta fragmentos em voz off, alguém que lê uma receita, uma carta, uma relatório, actas, notícias, versinhos, análises de hematologia... Como se fossem ecos que nos devolvem estas ruínas, que apesar de despovoadas ainda conservam a memória daquilo que foram e daquilo que abrigaram. Com maus tratos, mazelas, cicatrizes, infiltrações e outras injúrias do tempo e do esquecimento - estes são os nossos interiores. Ou, de outra maneira, estes interiores também somos nós. A câmara de Mozos capta o visível e o invisível- e numa das paredes lá está, coberto de pó e encardido, mas ainda bem pregado à parede que o ampara: um retrato de Salazar.
Ana Margarida de Carvalho, Visão
Portugal revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório
"Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas" T.S. Eliot, "The Waste Land"
Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, "Xavier" (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como "Quando Troveja" (1999) e o recente descentramento de "Quatro Copas" (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" ("José Cardoso Pires - ¬Diário de Bordo" , 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico "Cinema Português?" (1997) ou o inventivo "Censura: Alguns Cortes" (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo.
Este intróito revela-se fundamental para falar de "Ruínas", na medida em que este filme-ensaio funciona na curta obra de Mozos como súmula de todo o seu universo conceptual. Se não vejamos: o filme assume-se como "biografia" subterrânea de um país condenado pelo abandono da memória, transformada em lixo cultural; faz da "collage" modernista o seu método caótico de investigação sobre um passado contraditório e algo desconexo; inscreve nos intervalos de um documentário aleatório e prospectivo o desejo de ficções miniaturais, tendentes a recompor um retrato de meio-corpo de personagens ausentes e perdidas na voragem do tempo: os habitantes anónimos daquele sanatório gigantesco que agride a paisagem da Serra da Estrela, feito esqueleto de uma doença passada, mas perpetuado pela permanência dos seus sinais físicos na paisagem; os actores fantasmáticos daquele Parque Mayer desertificado no centro de uma Lisboa transformada em lixo urbano e transtornada por um progresso sem sentidos; os turistas "mortos" da ribatejana Estalagem Gado Bravo, de que saltaram letras da insígnia identificativa, numa tétrica "natureza morta" povoada por dejectos e por restos quase fossilizados de caveiras de animais; os frescos modernistas de um restaurante em Monsanto, com panorama sobre a capital do Império perdido, como se ainda convidassem a lautos banquetes de tempos que já lá vão e não voltarão nunca mais; as viagens impossíveis de chegada à estação de Barca de Alva, desactivada e inoperante, no coração do Douro Internacional, com carruagens enferrujadas e marcas de uma impotência atávica em operar uma arqueologia da memória; os vestígios desfeitos de uma mina abandonada que sinaliza o impasse de uma produção obsoleta de riquezas miríficas.
Há riscos neste retrato de um país "arruinado" e inútil (ou inutilizado?) visto a partir da incúria de um património menor? Há e muitos, mas Mozos tem consciência do jogo da (in)glória que desenha, evitando a demagogia fácil das imagens de decadência, como se procurasse ver Portugal pelo lado das inevitáveis "derrotas". O que se toma fascinante é o modo como toma partido, deixando em aberto a perspectiva critica de cada espectador, embora conduzindo sempre o seu olhar com implacável direccionalidade. Se existe possível rima interna, subjacente a este projecto, ela faz-se com Manoel de Oliveira, como se se tratasse de um contraponto documental a "Non, ou a Vã Glória de Mandar": o país revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório tomado significativo pela acumulação geográfica de gestos sem saída. Ao Portugal dos Pequenitos que um arquitecto do antigamente construíra para glorificar uma ridícula noção do património imaginário, apõe Mozos um Portugal dos "Grandes", devastado e espectral, monstruoso porque verdadeiro.
Haverá quem conteste que esta negatividade passa por alguma pretensão poética, uma poética pobre, contraditada (mas também acentuada) pelo certeiro recurso à textualidade de Ruy Belo, por exemplo, um poeta da "habitação' e do território. Uma coisa não podemos negar: estamos perante uma corajosa frontalidade, perante nossa incapacidade de lidar com a pequena História de nós, com o terror de termos de escorar a nossa realidade entre ruínas. E regressamos, para concluir, a T. S. Eliot, citado, como na epígrafe, da tradução portuguesa de Maria Amélia Neto: "Penso que estamos na viela dos ratos/Onde os mortos perderam os seus ossos".
Mário Jorge Torres, Público
A presença de Mozos no cinema português actual tem uma função simbólica crucial: ele é uma testemunha de algo que deixou de ser o que noutro tempo foi.
Que "Ruínas" (o filme de Manuel Mozos) se estreie em conjunto com "Canção de Amor e Saúde" (o filme de João Nicolau) será um facto ditado, em primeiro lugar, por questões de conveniência logística - os dois filmes têm origem na mesma produtora, a O Som e a Fúria. Mas, depois desse facto muito concreto, a porta fica aberta para um simbolismo interessante, que mais não é do que a confirmação de outro facto: a espécie de relação privilegiada entre Mozos (que nasceu em 1959 e começou a filmar no final dos anos 80) e um conjunto de cineastas bastante mais novos do que ele, nascidos já nos anos 70. Como que um apadrinhamento e uma adopção, mútuos e simultâneos. É verdade que a maior parte desses cineastas gravita em torno da O Som e a Fúria - Mozos participou em mais do que um filme de Miguel Gomes, e montou "Tony", a estreia na realização de Bruno Lourenço, também uma produção O Som e a Fúria recentemente distribuida em sala - tornando natural que também ele tenha chegado a essa produtora ("Ruínas" é o primeiro filme de Mozos com O Som e a Fúria). Mas não só: vimo-lo, por exemplo, no "Veneno Cura" de Raquel Freire e, coincidência ou não, João Salaviza, o jovem realizador do premiado "Arena", foi actor no "...Quando Troveja" que Mozos dirigiu em 1999.
Que afinidades existem entre o cinema de uns e de outros, o que é que - no que toca aos filmes - está na origem desta aproximação, desta transformação de Manuel Mozos numa espécie de "irmão mais velho" de cineastas nascidos dez, quinze, vinte anos depois dele? Convém registar um dado curioso que talvez tenha alguma coisa a ver com isto, e que se liga aos modos (e aos tempos) da recepção dos filmes de toda este gente. A carreira de Mozos, se bem que iniciada em finais da década de 80, foi fértil em impasses e azares tremendos. Do seu primeiro filme - "Um Passo, Outro Passo e Depois", de 1989 - despareceram os materiais originais, e só se pode vê-lo hoje em transcrições video que danificam bastante as qualidades da imagem e do som. "Xavier", que teria sido o seu filme seguinte, encontrou problemas de produção que atrasaram significativamente a sua conclusão e a sua estreia - rodado em 1992, "Xavier" só chegou a uma versão "acabada" e definitiva já no século XXI. De certa maneira, a obra de Mozos só "arrancou", em termos de regularidade e visibilidade, numa data relativamente recente: 1999 e "...Quando Troveja". O que vale por dizer que, em termos de recepção, se tivesse criado um efeito de contemporaneidade entre os filmes de um e de outros, e a "descoberta" de Mozos fosse, de facto, simultânea à descoberta de Gomes, Sandro Aguilar, João Nicolau...
Fazer cinema em Portugal já é difícil mesmo sem ter em conta a indiferença do público em geral, as eventuais injustiças da crítica e a hostilidade de "opinion makers" enfatuados. O percurso de Mozos faz dele um "sobrevivente", e um exemplo vivo de obstinação perante as dificuldades, um exemplo de "resiliência" - e seguramente isto é algo que os mais jovens vêem e admiram nele. Por outro lado, pelos filmes de Manuel Mozos passa ainda a sombra de um cinema português (o dos anos 80) que viveu - visto de hoje, com inusitada felicidade - a encruzilhada entre a afirmação de uma identidade e a fidelidade "familiar" a toda aquela geração de cineastas (os do Cinema Novo, os que vieram logo a seguir) que praticamente construiu a própria noção de "cinema português". O cinema português, e a noção de "cinema português", mudaram bastante na última década e meia, mas ainda há alguma coisa que responde a esse cinema português dos anos 70 e dos anos 80. Quando se vê um filme como "Canção de Amor e Saúde" percebe-se bem que, sendo já "outra coisa", é ainda um filme que tem algo a dever (e que sabe que tem algo a dever) a João César Monteiro, por exemplo. Os "filhos" já não serão "filhos" mas reconhecem os "pais", e mesmo que seja para partir para outros territórios esse reconhecimento mais ou menos próximo, mais ou menos remoto, ainda está nos filmes.
Nessa medida a presença de Manuel Mozos no cinema português actual tem uma função simbólica crucial: ele é uma espécie de testemunha de algo que deixou de ser o que noutro tempo foi, mas que desse tempo traz ainda alguma coisa para transmitir e para depositar junto dos que vieram - dos que nasceram - depois dele. Alguém dirá que "Ruínas", obra sobre lugares abandonados e memórias adormecidas, não é justamente um filme sobre isto mesmo?
Luís Miguel Oliveira, Público
Destroços
O filme de Manuel Mozos não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser.
"Ruínas" é sobre os destroços do passado recente, muito recente, o passado de há 50 anos. Estes destroços estão mesmo ao nosso lado, mesmo à nossa vista (tanto que não os vemos), ou estão escondidos por detrás dos nossos separadores de auto-estrada, esquecidos para lá das colinas das nossas eólicas, no meio das nossas matas de eucalipto. O filme começa com uma história do século XIX, uma história excessiva, pela qual perpassa a paixão à qual o filme recusa depois ceder, servindo-nos a emoção apenas a frio. É uma história que nos coloca imediatamente fora do nosso tempo mas não muito longe do nosso tempo, não num passado histórico dignificado pela distância. Aquele é o passado em que os nossos avós morriam de amor.
Todos os destroços que o filme mostra estão num estado de delapidação e abandono completos (por isso os designo por destroços), cujo símbolo maior talvez seja a Estalagem Gado Bravo na chamada "recta do Pegões", por onde passavam todos os veraneantes que, antes de haver auto-estradas, escolhiam seguir para o Algarve pela ponte de Vila Franca. É um edifício digno que ainda está ali, cada vez mais escancarado e partido. Merece de nós um olhar de esguelha, quanto muito. Manuel Mozos foi gravar a sua destruição e o seu ruído de fundo, o impiedoso zumbido do trânsito.
As imagens e a banda sonora de "Ruínas" não são, portanto, sobre um passado de ruínas ou monumentos. Vemos antes a devastação, tão calma e distante que arrepia, do belíssimo restaurante panorâmico de Monsanto. Vemos o silêncio do Bairro de Habitação Económica do Estado Novo no Alvito, os edifícios abandonados da Hidroeléctrica do Douro, a ruína da Pousada das Penhas da Saúde. Vemos um extraordinário hotel sobre o mar, sossegados sanatórios do início do século XX. Tudo isto são restos de épocas em que os empreendimentos do Estado alimentavam centenas de famílias e lhes garantiam casa, cuidavam da paisagem e da arquitectura, deixavam uma ideia de eternidade e segurança em cada pedra assente num parapeito, em cada viga de betão lançada sobre o vazio. Mozos filmou também minas, barcaças e estações de caminho de ferro varridas pelo vento e o desmazelo, a ferrugem que restou dos sonhos de um Portugal autónomo industrialmente. E gravou para a banda sonora destroços de quando se utilizavam fórmulas de boas maneiras que não eram menos sinceras que as nossas mensagens de uma cordialidade de teclado e se escreviam cartas pondo um tempo vagaroso em cada frase, cartas que eram escritas tanto para o seu destinatário quanto para a arte de escrever cartas.
Os destroços materiais para que este filme olha fixamente, sem o pestanejar ou o exame mais empenhado dos movimentos de câmara, foram quase todos magníficas peças da arquitectura e da arte modernas e também isso intensifica a estranheza com que olhamos a sua decrepitude. São os melhores sonhos de ontem, o melhor Estado de ontem, as melhores maneiras de ontem, que "Ruínas" expõe como obsoletos e desprezados.
Os melhores sonhos de ontem
"Ruínas" não é sobre o país degradado, o país-subúrbio, o país-lixo em que se transformou todo o Portugal entre a costa e 50 km para o interior por causa do sucessivo falhanço do Estado nas sucessivas modernidades: a do iluminismo após Pombal, a do liberalismo oitocentista, a da modernização a partir da década de 1960. As imagens da Cova do Vapor e da Fonte da Telha incluídas no filme deviam, em minha opinião, ter ficado de fora na montagem final (embora sejam testemunho da obsolescência rapidíssima de uma vida que é suburbana e pobre mas também digna e aldeã, certamente melhor do que aquela que decorre nos horríveis arredores de Lisboa ou do Porto).
Ao país-subúrbio dedicou em 2006 Daniel Blaufuks o seu filme "Um pouco mais pequeno que o Indiana", uma obra à qual a "opinião" preferiu o politicamente correcto "Lisboetas" de Sérgio Tréfaut, mais conforme as canções de embalar que gostamos de nos cantar a nós próprios sobre nós próprios. Durante muito tempo, o país-subúrbio foi "descoberto", fotografado, pensado, apenas pelos arquitectos e por aqueles que com eles privavam. Hoje, vem ainda da cultura dos arquitectos - e de geógrafos como Álvaro Domingues - a consciência de que esse país não tem já remédio, e que o feio, o subúrbio, terá de constituir a base sobre a qual construir uma vida com a civilidade possível.
O filme de Manuel Mozos não se ocupa disso. Não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser... há tão pouco tempo que, nas imagens de um consultório de dentista os instrumentos estão largados sobre as mesas como se o médico tivesse ido lá fora por um momento, talvez atender o telefone. "Ruínas" não é bom título para o filme. O conceito de ruínas tem uma linhagem pesada. Imagens figurando monumentos arruinados constituíram um tema muito importante para a cultura europeia do final do Ancién Régime. Face às ruínas, filósofos e pensadores sentiam mais agudamente o Fim da História que se aproximava, que as Revoluções confirmariam, que Hegel constataria. Ora, não é o futuro que interessou Manuel Mozos e o seu filme não tem nada que ver com o Fim da História, antes com a suspensão portuguesa da história. Aliás, é neste ponto que "Ruínas" deixa de ser apenas (mais) uma meditação em imagem e palavra sobre a transitoriedade ou a distracção modernas e passa a ser também um testemunho português sobre Portugal.
Os destroços de Manuel Mozos são a história recente de Portugal, de um Portugal orgulhoso e de destino próprio, que fazemos em destroços sem dignidade nenhuma e tentamos esconder no escuro, no sítio onde desaparece a garrafa de plástico que atiramos pela janela do carro, o lugar para lá dos arbustos e do lixo onde jaz a faixa de estrada morta, sem princípio nem fim, que ainda hoje as raposas têm medo de atravessar.
Mas "Ruínas" não nos mete pelos olhos e ouvidos dentro apenas a obsolescência destes destroços. Faz-nos também pressentir a sua ensurdecedora recusa de partir em paz para dentro da noite, recusa que a opinião dominante portuguesa gostaria que o passado tivesse o bom gosto de abdicar. Em Portugal é preciso deixar que à memória colectiva mais recente caia a tinta, apodreça o tecto, enferrujem as dobradiças e os carris, corroa a erva daninha, se partam com o vento as vidraças. Portugal não quer recordar nem quer ver aquilo que foi ontem, ainda ontem, há bocadinho. Quando aceita fazê-lo, esconde a vergonha e o remorso debaixo de estatísticas (que mentem e triunfam porque simplificam tudo). Há no filme um plano enigmático: vemos nele a tranquilidade do mar embalado pela praia. A vista perde-se-nos no horizonte aberto. Que faz aqui o mar, entre madeiras podres, estuques caídos, carris ferrugentos.
Descansa-nos os olhos? Aponta-nos o caminho secular da fuga? Gosto de pensar que está ali a assegurar-nos de que tudo será um dia limpo pelo sal e pelo sol e que os crânios dos animais de um passado morto ainda ontem, que surgem aqui e ali nas imagens, serão transformados nas formas reverberantes de brancura que encontramos por vezes na areia e conseguimos tomar por vestígios fósseis de um tempo imemorial.
Paulo Varela Gomes – Historiador, Público
ENTREVISTA
Cineasta culmina um ano de grande intensidade com a estreia de "Ruínas", mais um documentário português, premiado em França, a chegar às salas de cinema.
Com uma longa e reconhecida carreira na montagem, Manuel Mozos tem-se virado com cada vez mais frequência para a realização, revelando, assim, um universo muito pessoal, que vai da ficção ao documentário. Depois da estreia do relato ficcional de "4 Copas", e do sucesso com o documentário sobre a fadista Aldina Duarte, aí está "Ruínas", um olhar sobre o que ficou de algumas monumentais obras arquitectónicas, "habitadas" pelos sons e memórias do passado. Um filme de notável sensibilidade, vencedor do prémio de Melhor Filme Português do Indie Lisboa e do Prémio Georges de Beauregard, no prestigiado Festival de Marselha, em França.
De onde surgiu a ideia de filmar as "ruínas" de Portugal?
Ao longo do tempo, de notas que fui tomando sobre diversas coisas que me interessaram, até por motivos diferentes, apercebi-me de que poderia ter material significativo para elaborar um projecto sobre o esquecimento/apagamento e a resistência a isso.
O que lhe disseram essas ruínas deste país?
Imensas coisas. Através da pesquisa, fui descobrindo muito mais, de que nem sequer suspeitava e, depois, estando nos locais durante as filmagens, outras portas se abriam, que foram, ainda, multiplicadas pelas possibilidades na montagem da imagem e do som.
Qual foi o critério de inclusão dos espaços, partindo do princípio de que houve outros que ficaram de fora?
O critério foi praticamente pessoal, com a colaboração do Telmo Churro, montador do filme. Gostaria de ter filmado muitos outros espaços. E na montagem prescindimos doutros. O que ficou no filme foi aquilo que julgámos melhor para o filme. Claro que podia ser outro, mas eu quis que fosse assim e foram aqueles os espaços que ficaram.
Como se partiu para a escolha dos textos que acompanham as imagens?
Havia textos que estavam pensados antes, outros foram surgindo durante o processo. Muitos foram abandonados. E a decisão dessa escolha foi partilhada com a Elsa Ferreira, montadora de som, e com o Telmo, que foram fantásticos no seu trabalho e dedicação. Tal como os músicos, que, pacientemente, foram compondo acompanhando as diferentes fases e versões de montagem.
O filme faz lembrar o "Son nom de Venise dans Calcutá desert", o contraponto ao "India song", da Marguerite Duras. Essa paternidade é assumida?
Decerto me lisonjearia. Mas, infelizmente, reconheço que nunca vi esse filme da Marguerite Duras.
Este filme segue-se a outros, que tiveram uma boa recepção no último ano, como o "4 Copas" e o "Aldina Duarte". Para onde vai agora o realizador Manuel Mozos?
Para onde vou, não sei, como diria certo grande cantor. Terminei um documentário sobre a Tobis, aguardo a edição DVD do "4 Copas", começo a trabalhar num novo projecto de ficção e continuo o meu trabalho no ANIM.
Ficção ou documentário, uma definição que no limite o próprio "Ruínas" desafia. É também nessa fronteira que se sente melhor a trabalhar?
Sim, gosto desse desafio. As ficções documentarão e os documentários ficcionarão. Mas, na ficção, gosto, sobretudo, de trabalhar com actores e criarmos personagens. No documentário, gosto da imprevisibilidade e das possibilidades da montagem.
Há alguma "ruína" do seu passado para onde lhe custe ainda olhar, como é, de certa forma, doloroso olhar para as "ruínas" do seu filme?
Talvez haja algumas, mas julgo viver hoje mais apaziguado com isso. Como exemplo, um hotel abandonado e perdido entre pinhais nas margens da confluência do Sertã com o Zêzere, que, estando na origem do "Ruínas", nem cheguei a filmar. Ou a probabilidade de para sempre se ter perdido o negativo do meu primeiro filme.
Quando mais um documentário chega, felizmente, aos cinemas, o que lhe apeteceria dizer para seduzir os espectadores a entrarem na sala?
Não sou nada bom nessa tarefa de sedução. Claro que fico contente por estrear um filme. Mais ainda por ser um documentário e saber como isso é raro. Ainda acrescido de ser um filme português e mais ainda porque na mesma semana estão dois a ser exibidos em sala. Além de se realizar o Panorama, 4ª Mostra do documentário português. Parece um Mundo maravilhoso… Mas, por trás, a realidade… Bom, coragem e esperança - talvez fosse a frase indicada para dizer.
João Antunes, Jornal de Notícias
Realização e Argumento: Manuel Mozos
Imagem: Luís Miguel Correia, João Nicolau, Sandro Aguilar
Som: António Pedro Fgueiredo, Armanda Carvalho
Montagem: Telmo Churro
Montagem de som e mistura: Elsa Ferreira
Música: anakedlunch
Pesquisa: Dulce Mendes, Ana Gomes
Produção: João Gusmão, Ana Gomes, Cristina Almeida
Produtores: Luís Urbano, Sandro Aguilar
Origem: Portugal
Ano: 2009
Duração: 60’
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