Rivette, um dos pilares da Nouvelle Vague, pode ainda fazer mil filmes, reais ou sonhados, no tempo de vida que lhe resta. "36 Vistas do Monte Saint-Loup" não é um testamento. Contudo, sentimos que este filme encerra qualquer coisa. A sua iluminação tem uma aura solene. É um adieu à la scene e, em simultâneo, uma glorificação magistral da representação. Parece um 'pequeno Rivette', mas voa nas alturas.
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Francisco Ferreira, Expresso
De todos os mestres da Nova Vaga francesa, Jacques Rivette (nascido a 1 de Março de 1928, em Rouen, na Normandia) é aquele que se manteve mais fiel a um tema único, recorrente e obsessivo: as formas de representação, os actores, o teatro, a sua sedução e também todas as suas frondosas ambiguidades. Muitas vezes, o seu trabalho tem partido dos próprios bastidores do teatro, como em "O Amor Louco" (1969), "O Bando das Quatro" (1989) ou "Sabe-se Lá" (2001); outras contemplando os artifícios da pintura, como em "A Bela Impertinente" (1991); outras ainda convocando as regras do melodrama histórico, como em "Não Toquem no Machado" (2007).
Agora, Rivette está de volta às salas portuguesas (o seu título anterior, "Não Toquem no Machado", foi editado directamente em DVD) com um filme em que o gosto da teatralidade tem que ver com o primitivismo simples e nostálgico do circo: "36 Vistas do Monte Saint-Loup" é uma deambulação romanesca, plena de humor, que tem como centro um velho circo ambulante, viajando de povoação em povoação e, valha a verdade, com audiências sempre muito reduzidas.
O que interessa a Rivette é, justamente, essa condição esquecida, quase marginal, de uma forma de espectáculo que não possui os faustos tecnológicos de muitas linguagens contemporâneas, permanecendo serenamente fiel à sua pequena arena e aos rituais de palhaços e malabaristas. "36 Vistas do Monte Saint-Loup" está longe de ser um documentário, o que não o impede de funcionar como uma espécie de reportagem imaginária sobre um mundo de ilusões e máscaras, afinal risonho e feliz na sua fidelidade a formas ancestrais de espectáculo.
Em todo o caso, como sempre acontece em Rivette, o motor da acção é o insólito das relações humanas. Mais exactamente, Rivette filma personagens ligadas pelo puro acaso, a pouco e pouco envolvidas numa teia de afectos e memórias cujo ponto de fuga será, talvez, o amor. Assim, na cena de abertura, na deslumbrante paisagem do Sul da França (Languedoc), descobrimos Kate, uma designer de Paris que viaja para voltar a reunir-se ao pequeno circo que abandonou há mais de uma década: o seu carro avaria-se e quem lhe dá uma ajuda é Vittorio, um enigmático italiano que aparece no seu bólide desportivo. Podemos resumir "36 Vistas do Monte Saint-Loup" como o ritual de mútua descoberta de Vittorio e Kate: ele revelando-se como um herdeiro irónico e bem-disposto dos tradicionais galãs italianos; ela reencontrando no circo uma verdade existencial que há muito lhe escapava.
Nos papéis principais encontramos dois actores que já fazem parte do universo criativo de Rivette: Jane Birkin e Vittorio Castellito (este um dos nomes maiores e mais internacionais no actual panorama dos actores italianos). E não deixa de ser curioso referir que eles formam um par muito distante dos padrões de "juventude" que, hoje em dia, dominam a maior parte das histórias românticas que o cinema nos oferece: ela actualmente com 63 anos, ele com 57, apresentam-se como personagens atípicas, fora de moda, afinal tocadas por uma alegria deliciosamente juvenil.
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João Lopes, Diário de Notícias
Na obra de Jacques Riverre, 36 VISTAS DO MONTE SAINT LOUP revela-se como uma iluminação inesperada, inédita, nunca revelada até hoje. A fórmula é de Vittorio (Sergio Castellitto), nova aparição da misteriosa personagem de salvador, daquele que ajuda a fazer a passagem, cuja missão, depois de Sabe-se Lá, consiste em libertar uma princesa do seu passado, da sua dor.
Esta princesa graciosa, chorosa, inconsolável, o seu amor morto, é Jane Birkin. Depois de ter sido uma actriz ingénua em L’Amour par Terre e a antiga modelo de um grande pintor em A Bela Impertinente, Jane Birkin coloca a nu, neste filme, o enigma de todas as heroínas rivettianas: encerrada na prisão de rua de Rivoli, num momento de distracção arrancada às montanhas do filme, ela ressuscita a memória de Anna Karina, prisioneira do convento de A Religiosa; assombrada por uma falta que não cometeu; tem a morte na alma como Sandrine Bonnaire em Secret Défense; está loucamente apaixonada por um fantasma como Pauline (Bulle Ogier) em Out 1, avança, num estado intermédio entre a vida e a morte, que se parece com o coma de que acorda Louise (Marianne Denicourt) no início de Alto Baixo Frágil…
No entanto, 36 VISTAS DO MONTE SAINT LOUP introduz um espaço-tempo inéditos que modifica as regras do jogo: o circo. Apesar das aparências, o circo não é a continuação do teatro por outros meios. Jacques Rivette faz uma síntese: é um círculo mágico de luz, rodeado de bancadas vazias que se povoam, à noite, fantasmas sussurrando por trás das cortinas azuis. Desde Paris nous appartient, o teatro constitui para as heroínas rivettianas uma prova de verdade, cada actriz aprendiz tornando-se ela própria atrás das palavras de outra: o seu papel. O circo substitui, às armadilhas da linguagem teatral, as máscaras dos palhaços e os números mortais dos acrobatas: “É o local mais perigoso do mundo… onde tudo é possível… onde os olhos se abrem e os meus olhos se abriram.”.
Qual Lola Montès, consciente que arrisca a vida na pista, Kate (Jane Birkin) deverá atravessar a sua prova de fogo, para se curar da sua dor. “Tenho a impressão que fui operada. Estava habituada à minha doença, à minha dor”. Interpretando os conselhos de Rilke a um jovem poeta, Vittorio, autor da encenação destinada a libertar Kate das recordações que a impedem de viver (a morte trágica, quinze anos antes, do homem que amava), revela uma das chaves do enigma: “Todos os dragões da nossa vida são talvez princesas que sofrem, à espera de ser libertadas”. Na obra de Jacques Rivette, o circo torna-se imagem do perigo que a arte nos obriga a enfrentar,
para nos libertarmos dos nossos medos. Ao contrário das heroínas de Alto Baixo Frágil… que cultivavam os jogos perigosos porque não há “sensação mais forte que o medo”, Vittorio, este encenador “deslocado”, toma como missão salvar as princesas.
É nesse sentido que 36 VISTAS DO MONTE SAINT LOUP é uma cápsula, ou para retomar uma expressão hoje raramente usada, uma arte poética: Jacques Rivette oferece aos seus espectadores a oportunidade perturbadora de viver, durante 84 minutos mágicos, a experiência à qual a arte (por vezes) nos eleva.
E só precisa de uns panos tingidos flutuando nas águas de um rio, uma mesa em que frutos se descascam como naturezas mortas, amantes que se procuram ou evitam, um palhaço que nos olha nos olhos “Tudo está bem quando acaba bem!”, a tenda de um circo fendida pelo verde das árvores, uma lua cheia, que do alto das montanhas vela os nossos sonhos. Tudo está bem quando acaba bem. Como Jacques Rivette nos permite descobrir, “é a arte que faz a vida” e não o contrário.
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Helène Frappat
ENTREVISTA A JANE BIRKIN
Sergio Castellito trata Jane Birkin a chicote, isto é, os seus medos, o luto por uma relação destruída, algo próximo de um masoquismo silencioso, tudo isso é rasgado como uma folha de papel de jornal que foi cruzada a alta velocidade por um chicote - se isto parece um número de circo ou um jogo S&M, é mesmo um número de circo.
Jane regressou, 15 anos depois de ter partido, à tenda familiar, debaixo da qual sepultam recriminações, culpa e um amor. Nesse reencontro cruza-se com um "clown" (Castellito), que começa por ser o homem que lhe põe o motor do automóvel em funcionamento - eis a primeira pantomima de "36 vistas do Monte Saint-Loup", de Jacques Rivette - e depois vai ser o homem que põe novamente em andamento a máquina de alguém que já se habituara "à doença", à avaria.
É aquele masoquismo silencioso da personagem de Birkin, 64 anos, no novo filme de Rivette. É o mesmo masoquismo silencioso de Liz, a personagem que Birkin interpretava num anterior filme de Rivette, "A Bela Impertinente" (1991), em que um pintor (Michel Piccoli), que vivia com a mulher e modelo (Birkin), recomeçava o trabalho numa tela que abandonara usando um novo modelo (Emmanuelle Béart) como inspiração. Não sabemos se há masoquismo, recriminações ou amargura, mas as palavras de Jane sobre o facto de os cineastas procurarem nela a mulher em sofrimento ouvem-se como silêncio. Ei-la, Jane, cujo rosto teima em não se decidir entre a infância e a velhice.
"Nunca vi esse filme ["A Bela Impertinente"]. Quando estreou, o meu pai e Serge [Gainsbourg, de quem foi companheira] tinham morrido há pouco tempo e eu fechara-me em casa com Lou [Doillon, sua filha e do cineasta Jacques Doillon], persianas corridas e tudo. Depois disso nunca pensei que Rivette se voltasse a lembrar de mim [para "36 vistas do Monte Saint-Loup"]. Quando trabalhamos para um realizador, torna-se cruel sentirmos, ou mesmo pensarmos nisso, que ele se esqueceu de nós.
Com Doillon fiz 'La Pirate' [1984] e mais três filmes de seguida e ele deixou de me chamar para os filmes. Não dava sequer para ter ciúmes porque as outras actrizes eram todas mais novas, não havia competição possível. Rivette falou-me neste filme há mais de quatro anos, mas entretanto teve dificuldades em arranjar dinheiro para o projecto. Mas eu nem sequer sabia qual era o meu papel. Nem se era o principal. E fiquei surpreendida. Não sabia nada. Rivette deu-me uma folha de papel com a cena no cemitério em que eu pedia desculpa a alguém, em que contava que tinha sido mandada embora" - falava dos mortos e com os mortos, falava do confronto com o pai, o patrão do circo, por causa de um dos seus artistas e paixão dela. "Era apenas com essa folha de papel que eu podia imaginar a minha personagem no filme: que tivera uma relação amorosa, que me tinha ido embora. Mais nada. Rivette procura criar para os actores situações de insegurança, em que não saibamos onde estamos. É isso o que ele procura, a vida."
E sobre isso - o filme - Jane Birkin diz que se deixou conduzir. E ao dizê-lo parece que abraça uma (a sua?) fatalidade. Como se a coreografia da coisa, por exemplo das cenas entre ela e o seu "partnaire", pertencesse apenas a Rivette, ou ao italiano Castellito. Como se ela não tivesse tido nada a ver com a progressiva ocupação do filme pelos tempos do circo, coisa que começa como um jogo de ecos e de transferências - os medos das personagens "na vida" e os medos na arena "do espectáculo" - e acaba sendo uma efectiva conquista e tomada de posse.
"Eu não fiz nada. Jacques divertia-se muito com aquela sequência inicial em que Sergio concerta o meu carro. É uma coisa chaplinesca. Rivette" - um Rivette de 82 anos "muito diferente" daquele que encontrou em "A Bela Impertinente", diferente não propriamente "durante as cenas, mas entre as cenas, mais perdido... e nunca come" - "gosta muito desse lado de 'clown', apesar da sua reputação intelectual. E por isso permitiu que Castellito desenvolvesse isso. Essa coisa de o tempo das cenas de circo começarem a ditar o tempo das cenas do filme percebia-se logo na rodagem. Jacques filmou muitas cenas de espectáculo circense, que depois deixou de fora, ficou só com as cenas dos 'clowns'. Ele gosta muito dessa forma de expressão: essa arte de fazer rir e o medo de não conseguir fazer rir."
O medo, principalmente.
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Vasco Câmara, Público
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Francisco Ferreira, Expresso
De todos os mestres da Nova Vaga francesa, Jacques Rivette (nascido a 1 de Março de 1928, em Rouen, na Normandia) é aquele que se manteve mais fiel a um tema único, recorrente e obsessivo: as formas de representação, os actores, o teatro, a sua sedução e também todas as suas frondosas ambiguidades. Muitas vezes, o seu trabalho tem partido dos próprios bastidores do teatro, como em "O Amor Louco" (1969), "O Bando das Quatro" (1989) ou "Sabe-se Lá" (2001); outras contemplando os artifícios da pintura, como em "A Bela Impertinente" (1991); outras ainda convocando as regras do melodrama histórico, como em "Não Toquem no Machado" (2007).
Agora, Rivette está de volta às salas portuguesas (o seu título anterior, "Não Toquem no Machado", foi editado directamente em DVD) com um filme em que o gosto da teatralidade tem que ver com o primitivismo simples e nostálgico do circo: "36 Vistas do Monte Saint-Loup" é uma deambulação romanesca, plena de humor, que tem como centro um velho circo ambulante, viajando de povoação em povoação e, valha a verdade, com audiências sempre muito reduzidas.
O que interessa a Rivette é, justamente, essa condição esquecida, quase marginal, de uma forma de espectáculo que não possui os faustos tecnológicos de muitas linguagens contemporâneas, permanecendo serenamente fiel à sua pequena arena e aos rituais de palhaços e malabaristas. "36 Vistas do Monte Saint-Loup" está longe de ser um documentário, o que não o impede de funcionar como uma espécie de reportagem imaginária sobre um mundo de ilusões e máscaras, afinal risonho e feliz na sua fidelidade a formas ancestrais de espectáculo.
Em todo o caso, como sempre acontece em Rivette, o motor da acção é o insólito das relações humanas. Mais exactamente, Rivette filma personagens ligadas pelo puro acaso, a pouco e pouco envolvidas numa teia de afectos e memórias cujo ponto de fuga será, talvez, o amor. Assim, na cena de abertura, na deslumbrante paisagem do Sul da França (Languedoc), descobrimos Kate, uma designer de Paris que viaja para voltar a reunir-se ao pequeno circo que abandonou há mais de uma década: o seu carro avaria-se e quem lhe dá uma ajuda é Vittorio, um enigmático italiano que aparece no seu bólide desportivo. Podemos resumir "36 Vistas do Monte Saint-Loup" como o ritual de mútua descoberta de Vittorio e Kate: ele revelando-se como um herdeiro irónico e bem-disposto dos tradicionais galãs italianos; ela reencontrando no circo uma verdade existencial que há muito lhe escapava.
Nos papéis principais encontramos dois actores que já fazem parte do universo criativo de Rivette: Jane Birkin e Vittorio Castellito (este um dos nomes maiores e mais internacionais no actual panorama dos actores italianos). E não deixa de ser curioso referir que eles formam um par muito distante dos padrões de "juventude" que, hoje em dia, dominam a maior parte das histórias românticas que o cinema nos oferece: ela actualmente com 63 anos, ele com 57, apresentam-se como personagens atípicas, fora de moda, afinal tocadas por uma alegria deliciosamente juvenil.
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João Lopes, Diário de Notícias
Na obra de Jacques Riverre, 36 VISTAS DO MONTE SAINT LOUP revela-se como uma iluminação inesperada, inédita, nunca revelada até hoje. A fórmula é de Vittorio (Sergio Castellitto), nova aparição da misteriosa personagem de salvador, daquele que ajuda a fazer a passagem, cuja missão, depois de Sabe-se Lá, consiste em libertar uma princesa do seu passado, da sua dor.
Esta princesa graciosa, chorosa, inconsolável, o seu amor morto, é Jane Birkin. Depois de ter sido uma actriz ingénua em L’Amour par Terre e a antiga modelo de um grande pintor em A Bela Impertinente, Jane Birkin coloca a nu, neste filme, o enigma de todas as heroínas rivettianas: encerrada na prisão de rua de Rivoli, num momento de distracção arrancada às montanhas do filme, ela ressuscita a memória de Anna Karina, prisioneira do convento de A Religiosa; assombrada por uma falta que não cometeu; tem a morte na alma como Sandrine Bonnaire em Secret Défense; está loucamente apaixonada por um fantasma como Pauline (Bulle Ogier) em Out 1, avança, num estado intermédio entre a vida e a morte, que se parece com o coma de que acorda Louise (Marianne Denicourt) no início de Alto Baixo Frágil…
No entanto, 36 VISTAS DO MONTE SAINT LOUP introduz um espaço-tempo inéditos que modifica as regras do jogo: o circo. Apesar das aparências, o circo não é a continuação do teatro por outros meios. Jacques Rivette faz uma síntese: é um círculo mágico de luz, rodeado de bancadas vazias que se povoam, à noite, fantasmas sussurrando por trás das cortinas azuis. Desde Paris nous appartient, o teatro constitui para as heroínas rivettianas uma prova de verdade, cada actriz aprendiz tornando-se ela própria atrás das palavras de outra: o seu papel. O circo substitui, às armadilhas da linguagem teatral, as máscaras dos palhaços e os números mortais dos acrobatas: “É o local mais perigoso do mundo… onde tudo é possível… onde os olhos se abrem e os meus olhos se abriram.”.
Qual Lola Montès, consciente que arrisca a vida na pista, Kate (Jane Birkin) deverá atravessar a sua prova de fogo, para se curar da sua dor. “Tenho a impressão que fui operada. Estava habituada à minha doença, à minha dor”. Interpretando os conselhos de Rilke a um jovem poeta, Vittorio, autor da encenação destinada a libertar Kate das recordações que a impedem de viver (a morte trágica, quinze anos antes, do homem que amava), revela uma das chaves do enigma: “Todos os dragões da nossa vida são talvez princesas que sofrem, à espera de ser libertadas”. Na obra de Jacques Rivette, o circo torna-se imagem do perigo que a arte nos obriga a enfrentar,
para nos libertarmos dos nossos medos. Ao contrário das heroínas de Alto Baixo Frágil… que cultivavam os jogos perigosos porque não há “sensação mais forte que o medo”, Vittorio, este encenador “deslocado”, toma como missão salvar as princesas.
É nesse sentido que 36 VISTAS DO MONTE SAINT LOUP é uma cápsula, ou para retomar uma expressão hoje raramente usada, uma arte poética: Jacques Rivette oferece aos seus espectadores a oportunidade perturbadora de viver, durante 84 minutos mágicos, a experiência à qual a arte (por vezes) nos eleva.
E só precisa de uns panos tingidos flutuando nas águas de um rio, uma mesa em que frutos se descascam como naturezas mortas, amantes que se procuram ou evitam, um palhaço que nos olha nos olhos “Tudo está bem quando acaba bem!”, a tenda de um circo fendida pelo verde das árvores, uma lua cheia, que do alto das montanhas vela os nossos sonhos. Tudo está bem quando acaba bem. Como Jacques Rivette nos permite descobrir, “é a arte que faz a vida” e não o contrário.
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Helène Frappat
ENTREVISTA A JANE BIRKIN
Sergio Castellito trata Jane Birkin a chicote, isto é, os seus medos, o luto por uma relação destruída, algo próximo de um masoquismo silencioso, tudo isso é rasgado como uma folha de papel de jornal que foi cruzada a alta velocidade por um chicote - se isto parece um número de circo ou um jogo S&M, é mesmo um número de circo.
Jane regressou, 15 anos depois de ter partido, à tenda familiar, debaixo da qual sepultam recriminações, culpa e um amor. Nesse reencontro cruza-se com um "clown" (Castellito), que começa por ser o homem que lhe põe o motor do automóvel em funcionamento - eis a primeira pantomima de "36 vistas do Monte Saint-Loup", de Jacques Rivette - e depois vai ser o homem que põe novamente em andamento a máquina de alguém que já se habituara "à doença", à avaria.
É aquele masoquismo silencioso da personagem de Birkin, 64 anos, no novo filme de Rivette. É o mesmo masoquismo silencioso de Liz, a personagem que Birkin interpretava num anterior filme de Rivette, "A Bela Impertinente" (1991), em que um pintor (Michel Piccoli), que vivia com a mulher e modelo (Birkin), recomeçava o trabalho numa tela que abandonara usando um novo modelo (Emmanuelle Béart) como inspiração. Não sabemos se há masoquismo, recriminações ou amargura, mas as palavras de Jane sobre o facto de os cineastas procurarem nela a mulher em sofrimento ouvem-se como silêncio. Ei-la, Jane, cujo rosto teima em não se decidir entre a infância e a velhice.
"Nunca vi esse filme ["A Bela Impertinente"]. Quando estreou, o meu pai e Serge [Gainsbourg, de quem foi companheira] tinham morrido há pouco tempo e eu fechara-me em casa com Lou [Doillon, sua filha e do cineasta Jacques Doillon], persianas corridas e tudo. Depois disso nunca pensei que Rivette se voltasse a lembrar de mim [para "36 vistas do Monte Saint-Loup"]. Quando trabalhamos para um realizador, torna-se cruel sentirmos, ou mesmo pensarmos nisso, que ele se esqueceu de nós.
Com Doillon fiz 'La Pirate' [1984] e mais três filmes de seguida e ele deixou de me chamar para os filmes. Não dava sequer para ter ciúmes porque as outras actrizes eram todas mais novas, não havia competição possível. Rivette falou-me neste filme há mais de quatro anos, mas entretanto teve dificuldades em arranjar dinheiro para o projecto. Mas eu nem sequer sabia qual era o meu papel. Nem se era o principal. E fiquei surpreendida. Não sabia nada. Rivette deu-me uma folha de papel com a cena no cemitério em que eu pedia desculpa a alguém, em que contava que tinha sido mandada embora" - falava dos mortos e com os mortos, falava do confronto com o pai, o patrão do circo, por causa de um dos seus artistas e paixão dela. "Era apenas com essa folha de papel que eu podia imaginar a minha personagem no filme: que tivera uma relação amorosa, que me tinha ido embora. Mais nada. Rivette procura criar para os actores situações de insegurança, em que não saibamos onde estamos. É isso o que ele procura, a vida."
E sobre isso - o filme - Jane Birkin diz que se deixou conduzir. E ao dizê-lo parece que abraça uma (a sua?) fatalidade. Como se a coreografia da coisa, por exemplo das cenas entre ela e o seu "partnaire", pertencesse apenas a Rivette, ou ao italiano Castellito. Como se ela não tivesse tido nada a ver com a progressiva ocupação do filme pelos tempos do circo, coisa que começa como um jogo de ecos e de transferências - os medos das personagens "na vida" e os medos na arena "do espectáculo" - e acaba sendo uma efectiva conquista e tomada de posse.
"Eu não fiz nada. Jacques divertia-se muito com aquela sequência inicial em que Sergio concerta o meu carro. É uma coisa chaplinesca. Rivette" - um Rivette de 82 anos "muito diferente" daquele que encontrou em "A Bela Impertinente", diferente não propriamente "durante as cenas, mas entre as cenas, mais perdido... e nunca come" - "gosta muito desse lado de 'clown', apesar da sua reputação intelectual. E por isso permitiu que Castellito desenvolvesse isso. Essa coisa de o tempo das cenas de circo começarem a ditar o tempo das cenas do filme percebia-se logo na rodagem. Jacques filmou muitas cenas de espectáculo circense, que depois deixou de fora, ficou só com as cenas dos 'clowns'. Ele gosta muito dessa forma de expressão: essa arte de fazer rir e o medo de não conseguir fazer rir."
O medo, principalmente.
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Vasco Câmara, Público
Título original: 36 vues du Pic Saint Loup
Realização: Jacques Rivette
Argumento: Jacques Rivette, Pascal Bonitzer,Christine Laurent e Sergio Castellito
Direcção de Fotografia: Irina Lubtchansky
Som: Olivier Schwob, Georges-Henri Mauchant e Anne Le Campion
Música: Pierre Alio
Montagem: Nicole Lubtchansky
Interpretação: Jane Birkin, Sergio Castellitto, André Marcon, Jacques
Bonnaffé, Julie-Marie Parmentier,
Hélène de Vallombreuse, Tintin Orsoni, Vimala Pons
Origem: França / Itália
Duração: 84’
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