MEL: OS DISCURSOS DOS DISCÍPULOS
Um filme turco cheio de palavras ausentes nesta história sobre um menino gago, o seu pai único, as abelhas, o faisão e a poesia a germinar no silêncio da contemplação.
Há uma expressão muito culinária (e extremamente destituída de poesia) que diz que não se fazem omeletas sem ovos. Para o realizador turco, Semih Kaplanoglu, que ganhou o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, parece que não se faz poesia sem Mel, Leite e Ovos - os títulos da sua trilogia, em flashback. Mel é o terceiro deste tríptico poético, que, na verdade, é o primeiro. Semih acabou pelo princípio, a sua história de Yusuf, o homem poeta, e vai agora, em retrospetiva, até à sua infância. Aquela fase em que ainda tudo é inicial, inteiro e limpo. E a poesia parece fazer ligação direta com a alma, através do olhar de uma criança. Yusuf tem uma relação difícil com as palavras escritas, nas aulas gagueja, quando lê em voz alta - tanto ou mais embaraçoso numa sala de aula do que aos reais microfones. Mas esse retraimento verbal compensa-o com a sua imensa capacidade de olhar o menino deste lugar remoto, numa aldeia da Turquia rural, na província de Rize (costa do mar Negro). Que é, como se sabe, a matéria-prima mais primordial de um poeta em construção. E todo o filme é-nos transmitido através daquilo a que o próprio realizador chama, paradoxalmente, "realismo espiritual". Sempre na perspetiva de quem vê o mundo a um metro do chão. E é nesta perpendicularidade, entre a verticalidade das árvores enormes da floresta onde o pai assaltava colmeias, e o olhar horizontal no miúdo, que se encontra um ponto qualquer onde se formam as "origens da alma", na palavras do realizador. Ou se vai incubando, fermentado, acumulando, cozinhando com leite, mel e ovos, o armazenamento vocabular e sensorial de um poeta que ainda não sabe que o será porque ele apenas é um poeta em construção. Assim como todas as crianças nos seus dramas de pequena escala, os insetos que observam, os embaraços na escola, o confronto com os colegas, as náuseas que lhe provocam o leite, a admiração pelo pai recoletor de mel que sobe as altitudes das árvores, e a ele, só a ele, lhe fala baixinho numa cumplicidade terna - porque se um miúdo é filho único um pai também é pai único - e, então, temos um pequeno contentor humano de emoções, a aprender as coisas dos adultos: a humilhação, a vergonha, o riso dos outros, a perda, os equívocos (os equívocos são tramados), e os mistérios da vida que são enigmas muito mais enigmáticos, fascinantes ou dolorosos para quem os inaugura.
Um filme de pausas
E depois há o silêncio, puro e absolutamente encantador, que sempre se diz que estimula a capacidade de olhar, reparar e ver. Mas, curiosamente, também de ouvir. E falar de sons, como o zumbido das abelhas, o dardejar de asas do falcão, o passo indolente da mula, as cordas que esticam e se retesam para a escalada das árvores, o rumorejo do rio, do vento nas árvores, num filme que enfatiza formalmente o silêncio (o realizador não usa banda sonora extradiegética) não é de todo um paradoxo. Porque a própria ausência de ruído enfatiza os pequenos rumores, como se lhes ampliasse os decibéis, ressalta-lhes o protagonismo, e onde há pouco verbo resta-nos muito espaço cerebral para dedicar à contemplação desta natureza colonizada ainda pelos primordiais ruídos.
O realizador encontrou este pequeno ator (Boras Altas, de 7 anos) enquanto este passava alegremente de bicicleta. A personalidade do miúdo era diametralmente oposta à do contemplativo, tímido e contido personagem, por isso, conta Semih, ele teve de fazer um trabalho minucioso com o miúdo. Ainda por cima não tem filhos, não sabe lidar com crianças, mas teve uma ajuda de um "treinador [sic] de atores infantis". Diz-se que a palavra pode ter a valência de mil imagens e não o contrário, e produzir um efeito impactante, mas a pausa - no momento certo, na hora e no local certos produz um efeito ainda mais estrepitante. Por isso, este é um filme de pausas cheias de poesia lá dentro. E a poesia, como se sabe, é feita da mesma matéria com que se constroem os sonhos. E não por acaso o filme acaba com o miúdo a dormir, no meio da imensa e misteriosa floresta, cheio de "brancos pavores", tão líquidos como o rio que corre ali perto. E cita-se uma frase maravilhosa em latim, que condensa todo o filme - soa muito melhor em latim, mas a tradução impõe-se: Altissima quaeque flumina minimo sono labi, os rios mais profundos correm sempre com menos ruído.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
"Mel", encerra a ‘trilogia de Yusuf’, criada pelo realizador turco Semih Kaplanoglu, um dos nomes mais respeitados daquela cinematografia, embora praticamente desconhecido em Portugal. Foi também com essa trilogia que Kaplanoglu, de 48 anos, se impôs nos festivais de cinema internacionais, primeiro com "Ovo", exibido em 2007 na Quinzena dos Realizadores de Cannes (e, por cá, na primeira edição do Festival do Estoril), depois com "Leite", que competiu em Veneza 2008 (o IndieLisboa mostrou-o em Portugal) e por fim com "Mel", que agora chega às salas. "Mel" foi surpreendentemente premiado a ouro no Festival de Berlim do ano passado, que Werner Herzog presidiu. E deixamos uma questão meramente factual antes de avançarmos mais: quantos cineastas se podem orgulhar de ter apresentado três filmes consecutivos nos três festivais mais importantes do mundo?
A trilogia em causa é pouco habitual. Há quatro anos, Kaplanoglu, que é também romancista, estava a trabalhar num texto sobre um rapaz que vivia com a mãe numa região rural, algures nas profundezas da Anatólia, num tempo de sonho e de lenda difícil de datar. Esse rapaz chamava-se Yusuf. Aos 18 anos, era um poeta promissor que começava a ensaiar os primeiros versos. Foi nessa altura, a meio do texto, que Kaplanoglu se perguntou: como será Yusuf com a idade de 40 anos? E o que terá sido ele em criança? "Num fim de semana", disse o cineasta em Berlim, "decidi lançar-me para a trilogia. Comecei pela personagem adulta, pois senti-a mais próxima de mim. As suas inquietações podiam ser as minhas: donde venho, quem sou, para onde vou..."
Nascia "Ovo" e começava aqui uma trilogia contada da frente para trás. Nesse filme de 2007, Yusuf é um homem maduro que deixa a grande cidade para voltar à sua aldeia natal quando lhe morre a mãe. Em "Leite, Yusuf é um rapaz solitário da província que ajuda a mãe nos afazeres domésticos enquanto acaba o liceu, numa altura em que as suas primeiras obras de fim da adolescência começam a ver a luz do dia, em obscuras publicações literárias. Por fim, chegamos a: "Mel", o filme mais secreto dos três - talvez porque, aqui, Yusuf é uma criança. Apesar desta lógica aparente, nada é líquido nesta trilogia, que jamais nos dará os seus segredos de barato. É que, efetivamente, não estamos certos que o Yusuf de "Ovo", de "Leite" e de "Mel" sejam exatamente a mesma personagem em três fases diferentes da vida. Digamos que se tratam antes de três variações poéticas sobre a mesma figura, provavelmente baseadas na biografia ou em memórias pessoais do realizador.
Em "Mel", Yusuf tem apenas 6 anos. Acabou de entrar na escola, está a aprender a ler, mas enfrenta alguns problemas de gaguez. Mais importante do que isso: Yusuf tem um pai que é apicultor e do qual pouco ou nada se sabia nos filmes anteriores. No primeiro plano do filme, o pai sobe a uma árvore para recolher o mel de uma colmeia, segundo um método tradicional, já em desuso. É um trabalho de risco. O mel, neste filme, é de certa forma uma metáfora da natureza e do espírito da floresta, como o milagre da vida, que se produz a si próprio e sem explicação. Acontece que o ramo da árvore à qual o pai de Yusuf lança a sua corda ameaça quebrar-se, deixando-o suspenso entre a vida e a morte. O que vem depois é um longo flashback, narrado a partir do universo interior da criança (o mundo é visto pelos seus olhos), sobre o percurso da sua aprendizagem. Até que Yusuf descubra que a morte de um pai, afinal, não é o fim do mundo, somente uma etapa decisiva da existência.
Kaplanoglu é um cineasta sensível que se dirige ao âmago da natureza humana, para um cinema pictórico e contemplativo, solto das regras comuns da narrativa. É um devoto confesso da luz artificial, da película em 35 mm, e trabalha com atores não profissionais (o miúdo deste filme, Bora Altas, é um achado), em longuíssimos planos-sequência. Estamos a falar de um cinema em que a sensibilidade à luz (ou a influência - revelada pelo cineasta em Berlim - da pintura de Vermeer) pode ser mais importante do que a definição de uma personagem ou do que a explicação dos seus gestos. Aquilo que mais interessa a Kaplanoglu é a criação de um hino à beleza da natureza e da criação, toda uma cosmogonia de imagens e sons a priori inatacável e em que a ação das palavras é com frequência interdita.
Mas bastará tudo isto para fazer um grande filme? Se o cinema de Kaplanoglu é solene e impõe respeito, resultando invariavelmente em planos de uma beleza arrebatadora (esperamos que a qualidade da cópia de 35mm a exibir assim o comprove), não deixa contudo de levantar problemas. É que "Mel", um filme sobre a infância e a dor da perda paterna, viagem simbólica à inocência e às origens da Humanidade, é de tal modo controlado ao milímetro, de tal modo compenetrado na composição dos seus elementos, que nos deixa a sensação do 'belo pelo belo', de um filme deslumbrado pelo seu próprio gesto estético. O talento cinematográfico existe, mas será que ele não está sempre a correr o risco de se sufocar a si próprio? Resta-nos um filme bonito - talvez até em demasia -, mas autossatisfeito. Para ver - definitivamente - e para dividir.
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Francisco Ferreira, Expresso
CONTÉM DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Mel" encerra a "Trilogia Yussuf" de Semih Kaplanoglu. Continuamos a andar para trás: depois de já ter sido quarentão e adolescente, Yussuf é agora um miúdo em crescimento na Turquia rural. O princípio, diz Kaplanoglu, é aquilo que fica connosco até ao fim.
Depois de "Yumurta" (2007), regresso de um poeta à sua terra natal após a morte da mãe, e de "Süt" (2008), retrato de um adolescente dividido entre a escrita e o pobre trabalho que sustenta a sua família, Semih Kaplanoglu fecha a sua trilogia sobre Yussuf (personagem que é também o seu alter-ego) com "Mel", retrato da emancipação de uma criança na Turquia rural, que foi Urso de Ouro em Berlim em 2010.
Continuando a olhar para trás, Kaplanoglu mostra-nos desta vez a infância em estado puro que guardamos pela vida fora: a curiosidade da descoberta dos sentidos, a vontade da expressão individual e a timidez que a impede de se soltar, e o eterno elo de admiração da criança pelo seu pai, sob o olhar atento da mãe. O pai de Yussuf, apicultor, procura novas fontes de mel para o sustento familiar, pequenas incursões feitas na companhia do filho, de olhos e ouvidos abertos para cada gesto. Mas será após uma partida solitária para longe que, na ausência da referência paterna, os sentidos de Yussuf se abrirão mais ao confronto entre o isolamento interior no seu diminuído lar, o encontro com as palavras na escola e o puro estado da natureza que circunda a casa. Há um mundo que o chama e que ele abraça, na descoberta da vida e da ausência.
"Em 2005", diz-nos Kaplanoglu, "escrevi um conto sobre um aspirante a poeta de 18 anos que vivia no campo e enviava os seus poemas a jornais literários [segmento da história que filmaria em "Süt", segunda parte da trilogia]. Mas perguntei-me o que aconteceria a essa personagem na sua idade adulta e na sua infância, se poderia continuar a escrever poemas com 40 anos de idade ou se teria de fazer outra coisa para ganhar a vida".
A história da "Trilogia Yussuf", que tem o seu ponto alto em "Mel", é, portanto, a do crescimento invertido de um homem que foi criança, a de um longo caminho de emancipação face à presença espiritual do pai e o amor presente da mãe. A luta de Yusuf pela independência confunde-se com a procura da sua forma de expressão no mundo - a poesia e o uso das palavras. "Ao falar com Orçun, o meu co-argumentista, e com Hande, o meu montador, pensámos numa trilogia", diz-nos o realizador. É uma trilogia ao contrário: "Decidi começar do ponto que conhecia melhor - os 40 anos -, por estar a passar por problemas semelhantes [retratados em "Yumurta"]. Depois de uma certa idade, concentramo-nos mais no passado do que no futuro, talvez por haver uma aproximação à morte ou porque o tempo que já vivemos ser maior do que aquele que vamos viver", explica.
Atrás da cortina
Além de um reflexo dos seus dilemas posteriores, a infância de Yusuf é também a descoberta do mundo que alimentará os sentidos: a imensa floresta onde se situa a sua casa abre o caminho para a aprendizagem das sensações e das palavras que as descrevem. Apesar de ser o último filme da trilogia, "Mel" é também o primeiro: os outros dois filmes começam aqui, quando Yusuf era pequeno.
Mas dizer Yusuf é outra maneira de dizer Semith. A poesia não é apenas a forma de expressão do protagonista: é a forma de expressão do próprio realizador. "Uso um método de simplificação nos meus filmes que aprendi com a poesia. Penso muitas vezes em como tornar a poesia relevante numa forma de arte como o cinema. A expressão poética dos meus filmes é uma consequência desse esforço", diz ao Ípsilon. Toda a "Trilogia Yussuf" revela uma paciente busca do tempo certo de expressão, uma relação cuidada entre a exposição de um sentimento e a escolha de adereços e de palavras numa paisagem natural de imagens. "A poesia é aquilo que fazemos das nossas experiências a partir do que guardamos na nossa linguagem. Não se trata só de colocar os nossos sentimentos em palavras, tem também a ver com o silêncio."
Através da infância de Yussuf, Kaplanoglu tentou ir ao encontro do sentido inicial que se perde ao longo da vida. "A vida põe uma cortina à frente dos nossos sentidos, impede-nos de tocar, cheirar e ver. Quando fiz o filme, tentei encontrar uma maneira de remover essa cortina, queria descrever não só a infância de Yussuf mas também a da humanidade. Pensei muito em como descrever essa pureza, pois julgo que a perdemos nas nossas relações. Falamos muito não por nos darmos bem, mas porque não conseguimos estabelecer uma verdadeira ligação uns com os outros", sublinha.
O esforço do realizador turco passa também por um método de filmagem assente ainda nas suas formas naturais: sem pós-produção, através de uma rodagem integrada no seu ambiente natural - a província de Rize, na Turquia -, procurando uma conjugação natural de luz e vida nos elementos que compõem a imensidão da paisagem e da floresta. "Interesso-me muito pela natureza", afirma o realizador, "observo-a e tento envolver-me com ela. O sentido do tempo, o nascer e o pôr do sol, as estações, tudo isso tem um efeito em mim. Sinto que não consigo criar se não traduzir isso naquilo que faço."
Todo o seu trabalho vai no sentido de uma necessidade de espiritualidade e de depuração que é o contrário da vida moderna, urbana que nos aliena dos sentidos. "A nossa percepção não está apenas relacionada com o cinema, depende também da quantidade de poesia que lemos, do nosso envolvimento com a arte e a filosofia, e da nossa relação com a espiritualidade. A vida moderna não nos permite questionar a nossa existência e a criação, há uma indolência dominante em relação a isso", argumenta Kaplanoglu.
Um cinema da esperança
Os contornos da "Trilogia Yussuf" relembram os de uma outra descoberta - a do mundo de Apu, jovem personagem do cinema do indiano Satyajit Ray. Também Apu era um aspirante a escritor dividido entre um profundo e desejo de criação e as responsabilidades da vida diária, de que depende a sobrevivência familiar. A procura de uma paz de espírito entre os acessórios materiais da vida é comum ao cinema de Ray e Kaplanoglu. Contudo, é num cinema mais metafísico e já distante de Ray que Kaplanoglu acaba por encontrar as suas influências mais decisivas. "'O Espelho' (1975), de Tarkovski, teve um grande impacto em mim: as sementes e as ideias do que queria fazer no cinema vêm daí, tal como de 'Andrei Rublev' (1966)", diz o realizador. "Foram filmes que marcaram a minha relação com o cinema."
Mas se é o movimento de Tarkovski que marca o tempo do cinema de Kaplanoglu e a sua busca de abstracção, o realizador turco refere ainda a porta aberta pelos filmes de Ingmar Bergman: "Ao criar as minhas personagens, fiz referência à forma de ver de Bergman. Ele coloca as questões mais substanciais e dolorosas sobre a existência do homem moderno. Os seus filmes provam que o cinema pode contar a história da sua insuficiência espiritual, não apenas vagueando pelos corredores sombrios da alma humana, mas dando-nos uma esperança que faz parte do mundo e que nos leva para a própria essência da criação."
Como Bergman, Kaplanoglu vai até à raiz de uma vida. Na sua inocência, Yussuf mostra-nos que aquilo que nos forma nunca nos abandonará. Ele sabe que poderá sempre encontrar aquilo que procura na árvore onde o pai ia buscar o mel para levar para casa.
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Francisco Valente, Público
Um filme turco cheio de palavras ausentes nesta história sobre um menino gago, o seu pai único, as abelhas, o faisão e a poesia a germinar no silêncio da contemplação.
Há uma expressão muito culinária (e extremamente destituída de poesia) que diz que não se fazem omeletas sem ovos. Para o realizador turco, Semih Kaplanoglu, que ganhou o Urso de Ouro no último Festival de Berlim, parece que não se faz poesia sem Mel, Leite e Ovos - os títulos da sua trilogia, em flashback. Mel é o terceiro deste tríptico poético, que, na verdade, é o primeiro. Semih acabou pelo princípio, a sua história de Yusuf, o homem poeta, e vai agora, em retrospetiva, até à sua infância. Aquela fase em que ainda tudo é inicial, inteiro e limpo. E a poesia parece fazer ligação direta com a alma, através do olhar de uma criança. Yusuf tem uma relação difícil com as palavras escritas, nas aulas gagueja, quando lê em voz alta - tanto ou mais embaraçoso numa sala de aula do que aos reais microfones. Mas esse retraimento verbal compensa-o com a sua imensa capacidade de olhar o menino deste lugar remoto, numa aldeia da Turquia rural, na província de Rize (costa do mar Negro). Que é, como se sabe, a matéria-prima mais primordial de um poeta em construção. E todo o filme é-nos transmitido através daquilo a que o próprio realizador chama, paradoxalmente, "realismo espiritual". Sempre na perspetiva de quem vê o mundo a um metro do chão. E é nesta perpendicularidade, entre a verticalidade das árvores enormes da floresta onde o pai assaltava colmeias, e o olhar horizontal no miúdo, que se encontra um ponto qualquer onde se formam as "origens da alma", na palavras do realizador. Ou se vai incubando, fermentado, acumulando, cozinhando com leite, mel e ovos, o armazenamento vocabular e sensorial de um poeta que ainda não sabe que o será porque ele apenas é um poeta em construção. Assim como todas as crianças nos seus dramas de pequena escala, os insetos que observam, os embaraços na escola, o confronto com os colegas, as náuseas que lhe provocam o leite, a admiração pelo pai recoletor de mel que sobe as altitudes das árvores, e a ele, só a ele, lhe fala baixinho numa cumplicidade terna - porque se um miúdo é filho único um pai também é pai único - e, então, temos um pequeno contentor humano de emoções, a aprender as coisas dos adultos: a humilhação, a vergonha, o riso dos outros, a perda, os equívocos (os equívocos são tramados), e os mistérios da vida que são enigmas muito mais enigmáticos, fascinantes ou dolorosos para quem os inaugura.
Um filme de pausas
E depois há o silêncio, puro e absolutamente encantador, que sempre se diz que estimula a capacidade de olhar, reparar e ver. Mas, curiosamente, também de ouvir. E falar de sons, como o zumbido das abelhas, o dardejar de asas do falcão, o passo indolente da mula, as cordas que esticam e se retesam para a escalada das árvores, o rumorejo do rio, do vento nas árvores, num filme que enfatiza formalmente o silêncio (o realizador não usa banda sonora extradiegética) não é de todo um paradoxo. Porque a própria ausência de ruído enfatiza os pequenos rumores, como se lhes ampliasse os decibéis, ressalta-lhes o protagonismo, e onde há pouco verbo resta-nos muito espaço cerebral para dedicar à contemplação desta natureza colonizada ainda pelos primordiais ruídos.
O realizador encontrou este pequeno ator (Boras Altas, de 7 anos) enquanto este passava alegremente de bicicleta. A personalidade do miúdo era diametralmente oposta à do contemplativo, tímido e contido personagem, por isso, conta Semih, ele teve de fazer um trabalho minucioso com o miúdo. Ainda por cima não tem filhos, não sabe lidar com crianças, mas teve uma ajuda de um "treinador [sic] de atores infantis". Diz-se que a palavra pode ter a valência de mil imagens e não o contrário, e produzir um efeito impactante, mas a pausa - no momento certo, na hora e no local certos produz um efeito ainda mais estrepitante. Por isso, este é um filme de pausas cheias de poesia lá dentro. E a poesia, como se sabe, é feita da mesma matéria com que se constroem os sonhos. E não por acaso o filme acaba com o miúdo a dormir, no meio da imensa e misteriosa floresta, cheio de "brancos pavores", tão líquidos como o rio que corre ali perto. E cita-se uma frase maravilhosa em latim, que condensa todo o filme - soa muito melhor em latim, mas a tradução impõe-se: Altissima quaeque flumina minimo sono labi, os rios mais profundos correm sempre com menos ruído.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
"Mel", encerra a ‘trilogia de Yusuf’, criada pelo realizador turco Semih Kaplanoglu, um dos nomes mais respeitados daquela cinematografia, embora praticamente desconhecido em Portugal. Foi também com essa trilogia que Kaplanoglu, de 48 anos, se impôs nos festivais de cinema internacionais, primeiro com "Ovo", exibido em 2007 na Quinzena dos Realizadores de Cannes (e, por cá, na primeira edição do Festival do Estoril), depois com "Leite", que competiu em Veneza 2008 (o IndieLisboa mostrou-o em Portugal) e por fim com "Mel", que agora chega às salas. "Mel" foi surpreendentemente premiado a ouro no Festival de Berlim do ano passado, que Werner Herzog presidiu. E deixamos uma questão meramente factual antes de avançarmos mais: quantos cineastas se podem orgulhar de ter apresentado três filmes consecutivos nos três festivais mais importantes do mundo?
A trilogia em causa é pouco habitual. Há quatro anos, Kaplanoglu, que é também romancista, estava a trabalhar num texto sobre um rapaz que vivia com a mãe numa região rural, algures nas profundezas da Anatólia, num tempo de sonho e de lenda difícil de datar. Esse rapaz chamava-se Yusuf. Aos 18 anos, era um poeta promissor que começava a ensaiar os primeiros versos. Foi nessa altura, a meio do texto, que Kaplanoglu se perguntou: como será Yusuf com a idade de 40 anos? E o que terá sido ele em criança? "Num fim de semana", disse o cineasta em Berlim, "decidi lançar-me para a trilogia. Comecei pela personagem adulta, pois senti-a mais próxima de mim. As suas inquietações podiam ser as minhas: donde venho, quem sou, para onde vou..."
Nascia "Ovo" e começava aqui uma trilogia contada da frente para trás. Nesse filme de 2007, Yusuf é um homem maduro que deixa a grande cidade para voltar à sua aldeia natal quando lhe morre a mãe. Em "Leite, Yusuf é um rapaz solitário da província que ajuda a mãe nos afazeres domésticos enquanto acaba o liceu, numa altura em que as suas primeiras obras de fim da adolescência começam a ver a luz do dia, em obscuras publicações literárias. Por fim, chegamos a: "Mel", o filme mais secreto dos três - talvez porque, aqui, Yusuf é uma criança. Apesar desta lógica aparente, nada é líquido nesta trilogia, que jamais nos dará os seus segredos de barato. É que, efetivamente, não estamos certos que o Yusuf de "Ovo", de "Leite" e de "Mel" sejam exatamente a mesma personagem em três fases diferentes da vida. Digamos que se tratam antes de três variações poéticas sobre a mesma figura, provavelmente baseadas na biografia ou em memórias pessoais do realizador.
Em "Mel", Yusuf tem apenas 6 anos. Acabou de entrar na escola, está a aprender a ler, mas enfrenta alguns problemas de gaguez. Mais importante do que isso: Yusuf tem um pai que é apicultor e do qual pouco ou nada se sabia nos filmes anteriores. No primeiro plano do filme, o pai sobe a uma árvore para recolher o mel de uma colmeia, segundo um método tradicional, já em desuso. É um trabalho de risco. O mel, neste filme, é de certa forma uma metáfora da natureza e do espírito da floresta, como o milagre da vida, que se produz a si próprio e sem explicação. Acontece que o ramo da árvore à qual o pai de Yusuf lança a sua corda ameaça quebrar-se, deixando-o suspenso entre a vida e a morte. O que vem depois é um longo flashback, narrado a partir do universo interior da criança (o mundo é visto pelos seus olhos), sobre o percurso da sua aprendizagem. Até que Yusuf descubra que a morte de um pai, afinal, não é o fim do mundo, somente uma etapa decisiva da existência.
Kaplanoglu é um cineasta sensível que se dirige ao âmago da natureza humana, para um cinema pictórico e contemplativo, solto das regras comuns da narrativa. É um devoto confesso da luz artificial, da película em 35 mm, e trabalha com atores não profissionais (o miúdo deste filme, Bora Altas, é um achado), em longuíssimos planos-sequência. Estamos a falar de um cinema em que a sensibilidade à luz (ou a influência - revelada pelo cineasta em Berlim - da pintura de Vermeer) pode ser mais importante do que a definição de uma personagem ou do que a explicação dos seus gestos. Aquilo que mais interessa a Kaplanoglu é a criação de um hino à beleza da natureza e da criação, toda uma cosmogonia de imagens e sons a priori inatacável e em que a ação das palavras é com frequência interdita.
Mas bastará tudo isto para fazer um grande filme? Se o cinema de Kaplanoglu é solene e impõe respeito, resultando invariavelmente em planos de uma beleza arrebatadora (esperamos que a qualidade da cópia de 35mm a exibir assim o comprove), não deixa contudo de levantar problemas. É que "Mel", um filme sobre a infância e a dor da perda paterna, viagem simbólica à inocência e às origens da Humanidade, é de tal modo controlado ao milímetro, de tal modo compenetrado na composição dos seus elementos, que nos deixa a sensação do 'belo pelo belo', de um filme deslumbrado pelo seu próprio gesto estético. O talento cinematográfico existe, mas será que ele não está sempre a correr o risco de se sufocar a si próprio? Resta-nos um filme bonito - talvez até em demasia -, mas autossatisfeito. Para ver - definitivamente - e para dividir.
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Francisco Ferreira, Expresso
CONTÉM DECLARAÇÕES DO REALIZADOR
Mel" encerra a "Trilogia Yussuf" de Semih Kaplanoglu. Continuamos a andar para trás: depois de já ter sido quarentão e adolescente, Yussuf é agora um miúdo em crescimento na Turquia rural. O princípio, diz Kaplanoglu, é aquilo que fica connosco até ao fim.
Depois de "Yumurta" (2007), regresso de um poeta à sua terra natal após a morte da mãe, e de "Süt" (2008), retrato de um adolescente dividido entre a escrita e o pobre trabalho que sustenta a sua família, Semih Kaplanoglu fecha a sua trilogia sobre Yussuf (personagem que é também o seu alter-ego) com "Mel", retrato da emancipação de uma criança na Turquia rural, que foi Urso de Ouro em Berlim em 2010.
Continuando a olhar para trás, Kaplanoglu mostra-nos desta vez a infância em estado puro que guardamos pela vida fora: a curiosidade da descoberta dos sentidos, a vontade da expressão individual e a timidez que a impede de se soltar, e o eterno elo de admiração da criança pelo seu pai, sob o olhar atento da mãe. O pai de Yussuf, apicultor, procura novas fontes de mel para o sustento familiar, pequenas incursões feitas na companhia do filho, de olhos e ouvidos abertos para cada gesto. Mas será após uma partida solitária para longe que, na ausência da referência paterna, os sentidos de Yussuf se abrirão mais ao confronto entre o isolamento interior no seu diminuído lar, o encontro com as palavras na escola e o puro estado da natureza que circunda a casa. Há um mundo que o chama e que ele abraça, na descoberta da vida e da ausência.
"Em 2005", diz-nos Kaplanoglu, "escrevi um conto sobre um aspirante a poeta de 18 anos que vivia no campo e enviava os seus poemas a jornais literários [segmento da história que filmaria em "Süt", segunda parte da trilogia]. Mas perguntei-me o que aconteceria a essa personagem na sua idade adulta e na sua infância, se poderia continuar a escrever poemas com 40 anos de idade ou se teria de fazer outra coisa para ganhar a vida".
A história da "Trilogia Yussuf", que tem o seu ponto alto em "Mel", é, portanto, a do crescimento invertido de um homem que foi criança, a de um longo caminho de emancipação face à presença espiritual do pai e o amor presente da mãe. A luta de Yusuf pela independência confunde-se com a procura da sua forma de expressão no mundo - a poesia e o uso das palavras. "Ao falar com Orçun, o meu co-argumentista, e com Hande, o meu montador, pensámos numa trilogia", diz-nos o realizador. É uma trilogia ao contrário: "Decidi começar do ponto que conhecia melhor - os 40 anos -, por estar a passar por problemas semelhantes [retratados em "Yumurta"]. Depois de uma certa idade, concentramo-nos mais no passado do que no futuro, talvez por haver uma aproximação à morte ou porque o tempo que já vivemos ser maior do que aquele que vamos viver", explica.
Atrás da cortina
Além de um reflexo dos seus dilemas posteriores, a infância de Yusuf é também a descoberta do mundo que alimentará os sentidos: a imensa floresta onde se situa a sua casa abre o caminho para a aprendizagem das sensações e das palavras que as descrevem. Apesar de ser o último filme da trilogia, "Mel" é também o primeiro: os outros dois filmes começam aqui, quando Yusuf era pequeno.
Mas dizer Yusuf é outra maneira de dizer Semith. A poesia não é apenas a forma de expressão do protagonista: é a forma de expressão do próprio realizador. "Uso um método de simplificação nos meus filmes que aprendi com a poesia. Penso muitas vezes em como tornar a poesia relevante numa forma de arte como o cinema. A expressão poética dos meus filmes é uma consequência desse esforço", diz ao Ípsilon. Toda a "Trilogia Yussuf" revela uma paciente busca do tempo certo de expressão, uma relação cuidada entre a exposição de um sentimento e a escolha de adereços e de palavras numa paisagem natural de imagens. "A poesia é aquilo que fazemos das nossas experiências a partir do que guardamos na nossa linguagem. Não se trata só de colocar os nossos sentimentos em palavras, tem também a ver com o silêncio."
Através da infância de Yussuf, Kaplanoglu tentou ir ao encontro do sentido inicial que se perde ao longo da vida. "A vida põe uma cortina à frente dos nossos sentidos, impede-nos de tocar, cheirar e ver. Quando fiz o filme, tentei encontrar uma maneira de remover essa cortina, queria descrever não só a infância de Yussuf mas também a da humanidade. Pensei muito em como descrever essa pureza, pois julgo que a perdemos nas nossas relações. Falamos muito não por nos darmos bem, mas porque não conseguimos estabelecer uma verdadeira ligação uns com os outros", sublinha.
O esforço do realizador turco passa também por um método de filmagem assente ainda nas suas formas naturais: sem pós-produção, através de uma rodagem integrada no seu ambiente natural - a província de Rize, na Turquia -, procurando uma conjugação natural de luz e vida nos elementos que compõem a imensidão da paisagem e da floresta. "Interesso-me muito pela natureza", afirma o realizador, "observo-a e tento envolver-me com ela. O sentido do tempo, o nascer e o pôr do sol, as estações, tudo isso tem um efeito em mim. Sinto que não consigo criar se não traduzir isso naquilo que faço."
Todo o seu trabalho vai no sentido de uma necessidade de espiritualidade e de depuração que é o contrário da vida moderna, urbana que nos aliena dos sentidos. "A nossa percepção não está apenas relacionada com o cinema, depende também da quantidade de poesia que lemos, do nosso envolvimento com a arte e a filosofia, e da nossa relação com a espiritualidade. A vida moderna não nos permite questionar a nossa existência e a criação, há uma indolência dominante em relação a isso", argumenta Kaplanoglu.
Um cinema da esperança
Os contornos da "Trilogia Yussuf" relembram os de uma outra descoberta - a do mundo de Apu, jovem personagem do cinema do indiano Satyajit Ray. Também Apu era um aspirante a escritor dividido entre um profundo e desejo de criação e as responsabilidades da vida diária, de que depende a sobrevivência familiar. A procura de uma paz de espírito entre os acessórios materiais da vida é comum ao cinema de Ray e Kaplanoglu. Contudo, é num cinema mais metafísico e já distante de Ray que Kaplanoglu acaba por encontrar as suas influências mais decisivas. "'O Espelho' (1975), de Tarkovski, teve um grande impacto em mim: as sementes e as ideias do que queria fazer no cinema vêm daí, tal como de 'Andrei Rublev' (1966)", diz o realizador. "Foram filmes que marcaram a minha relação com o cinema."
Mas se é o movimento de Tarkovski que marca o tempo do cinema de Kaplanoglu e a sua busca de abstracção, o realizador turco refere ainda a porta aberta pelos filmes de Ingmar Bergman: "Ao criar as minhas personagens, fiz referência à forma de ver de Bergman. Ele coloca as questões mais substanciais e dolorosas sobre a existência do homem moderno. Os seus filmes provam que o cinema pode contar a história da sua insuficiência espiritual, não apenas vagueando pelos corredores sombrios da alma humana, mas dando-nos uma esperança que faz parte do mundo e que nos leva para a própria essência da criação."
Como Bergman, Kaplanoglu vai até à raiz de uma vida. Na sua inocência, Yussuf mostra-nos que aquilo que nos forma nunca nos abandonará. Ele sabe que poderá sempre encontrar aquilo que procura na árvore onde o pai ia buscar o mel para levar para casa.
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Francisco Valente, Público
Título Original: Bal
Realização: Semih Kaplanoglu
Argumento: Semih Kaplanoglu e Orçun Köksal
Direcção de Fotografia: Baris Özbiçer
Montagem: Ayahan Ergüse, Semih Kaplanoglu, S.Hande
Interpretação: Boras Altas, Erdal Besikçioglu , Tülin Özen
Origem: Turquia
Ano: 2010
Duração: 103’
COMENTÁRIO DO REALIZADOR
A TRILOGIA YUSUF
MEL é o terceiro filme da minha “Trilogia Yusuf”. A ideia para esta trilogia começou a formar‐se quando estava a rever um guião, que tinha escrito há muito tempo, sobre a história de Yusuf durante os seus anos de universitário em SÜT / MILK. Enquanto estava a elaborar esta personagem dei por mim a especular sobre como seria o seu futuro enquanto adulto (YUMURTA/EGG) e acerca de como teriam sido o passado e a infância do rapaz (BAL/MEL). Estas ideias ajudaram a moldar a trilogia. Comecei com YUMURTA/EGG, talvez porque a minha intenção fosse ir descobrindo a personagem em camadas, até chegar ao centro. Toda a trilogia pode ser vista como um extenso flashback. Nenhum dos filmes pode ser considerado de época: todos eles decorrem na actualidade, em diversos ambientes e escalões económicos turcos. Perguntam‐me se todos estes Yusufs são, efectivamente, a mesma personagem. Opto por não responder para não denunciar os seus segredos, a relação directa e indirecta entre os filmes, os mistérios da trilogia.
AS MINHAS PRÓPRIAS EXPERIÊNCIAS PASSADAS
Descrevi as minhas próprias experiências passadas enquanto delineava a personagem de Yusuf, pelo que se pode dizer que Yusuf tem partes de mim. Fiz várias referências à minha própria infância e juventude enquanto trabalhava nos três argumentos e acredito que fui capaz de lidar com os problemas na vida de Yusuf, as suas demandas e desafios, de forma realista. A minha infância serviu, igualmente, como ponto de partida para o guião de MEL. As minhas dificuldade na escola enquanto tentava a aprender a ler e escrever, as minhas perguntas às quais os adultos nunca responderam, a intensa crueldade e a riqueza da natureza… De certa forma, uma criança forma a sua personalidade enquanto descobre, com curiosidade, o mundo. Um mal‐entendido ocasional que conduz a erros ingénuos, sonhos, alegrias e remorsos permite‐lhe chegar à verdade. Espero que MEL nos permita chegar à verdade de Yusuf.
LUGAR INCOMUM
Para Yusuf e para o seu pai Yakup, a floresta representa um local encantado que encerra muitos dos mistérios no seu âmago. A floresta é um reino mágico no qual os dois se entretêm a esconder‐se, apenas para tornarem a reaparecer. Não é um local banal por onde eles deambulam apenas por ser um meio de subsistência. A floresta constitui um outro mundo, com gigantescas árvores e repleta de várias criaturas misteriosas, como a mula e o falcão que os acompanham durante as suas incursões à floresta. Foi bastante difícil de encontrar um sítio onde existissem largas e gigantescas árvores, com grandes troncos. Dei o meu melhor para encontrar um sítio adequado tanto para a colocação de uma colmeia como para a recriação do universo visual que queria para MEL. Trabalhámos em diversas florestas, especialmente naquelas em que existem colmeias há séculos. Localizavam‐se entre 30 e 40 km de distância umas das outras e a diferentes alturas, muito acima do nível do mar, todas elas com diferentes tipos de árvores.
YAKUP, O APICULTOR
O pai de Yusuf é um apicultor que recolhe o mel das colmeias, considerado o melhor mel e característico da região. Este mel terapêutico é a essência de um mundo antigo e de uma natureza imaculada. A sua profissão está prestes a desaparecer. O seu trabalho inclui colocar colmeias especialmente desenvolvidas, no topo das árvores, nas zonas montanhosas. É uma profissão exaustiva e perigosa. A admiração que Yusuf devota ao pai deve‐se, seguramente e em parte, ao invulgar ofício que este desempenha. Na minha opinião esta tem qualquer coisa em comum com a futura vocação de Yusuf – a poesia.
O DESAPARECIMENTO DO PAI
Não nos é possível dizer que a figura paterna não está presente na vida de Yusuf, na trilogia, já que nos é possível ver em MEL o quão forte é o seu laço com o pai. A ideia aqui é a forma como Yusuf experiencia o desaparecimento do seu pai, como lida com isso. Do ponto de vista da psicanálise, a perda prematura do pai pode fazer com que Yusuf construa a sua relação com a autoridade através da mãe, como se pode assistir em SÜT/MILK. Talvez esta seja a razão subjacente da sua fragilidade, timidez, insegurança e eventual redescoberta como acontece em YUMURTA/EGG. Mas todas estas características são pormenores de psicologia, com os quais eu não me preocupo nas minhas histórias. Estou a tentar retratar uma situação e reflectir sobre ela a um nível mais espiritual. Em vez de dissecar a nossa existência num laboratório de psicologia e reduzir a vida a uma sucessão causa efeito, estou a tentar atingir algum tipo de patamar mais elevado.
FILMAR NA COSTA DO MAR NEGRO
MEL foi rodado na pequena cidade de Çamlıhemşin. Fica na província de Rize, na costa do Mar Negro, no noroeste da Turquia. A minha motivação para esta escolha é a sua paisagem natural. Era a única região que tinha o tipo de cenário florestal que eu procurava. As condições geográficas da região acabaram, no entanto, por nos dar algumas dores de cabeça durante as filmagens. Só conseguíamos deslocar-nos até certo ponto e depois tínhamos de percorrer o restante caminho a pé até chegarmos ao local das filmagens, que ficava ainda bastante distante. Filmámos num terreno muito íngreme, no qual era difícil mantermo‐nos sequer em pé. Além disso, a costa do Mar Negro conta ainda com um clima muito instável. Chuva, sol e nevoeiro conseguem, muitas vezes, a proeza de fazer uma aparição durante a mesma hora. Tivemos, portanto, alguns problemas em manter a continuidade das cenas. Quando revejo o meu diário constato que choveu em 39 dos 48 dias de rodagem na floresta.
A HUMANIDADE DA INFÂNCIA
Se tivéssemos de classificar a actualidade como a idade adulta da Humanidade, então diria que os cenários onde MEL foi filmado estão ainda a viver a infância da Humanidade. Trabalhámos em aldeias montanhosas que em breve serão abandonadas por pessoas que ainda tentam construir a sua vida, de acordo com a tradição ancestral de comunhão com a natureza. Em lugares como este estamos a assistir à destruição dos recursos naturais, um problema para o qual devemos encontrar resposta o mais rapidamente possível.
A GAGUEZ DE YUSUF
Tendo acabado de entrar para a escola, Yusuf está a aprender a ler e escrever. Quando está a sós com o pai, o menino é capaz de ler, lentamente, pronunciando bem todas as palavras. Nas aulas, no entanto, Yusuf sente‐se demasiado pressionado e tende a gaguejar. Quando os colegas gozam com que ele, o jovem retrai‐se em silencio e solidão. Da mesma forma que o não ser aceite no serviço militar, após terminar o liceu, determina o destino de Yusuf em SÜT / MILK; o momento em que este não é capaz de ler na aula, em frente aos colegas, assinala um ponto de ruptura na sua infância. Ser elogiado por ser capaz de ler correctamente na aula, é algo de muito importante para um aluno da primeira classe. Falhar e transformar‐se numa piada para os colegas faz com que Yusuf se encerre em si mesmo e passe a desenvolver uma relação com as palavras e a poesia.
À PROCURA DO JOVEM YUSUF
Procurámos o Yusuf em várias cidades, vilas e aldeias durante mês. Fomos a todas as escolas primárias e entrevistámos os alunos da primeira da classe. Estava à procura da versão infantil do Yusuf de YAMURTA/EGG e SÜT/MILK. Não me sentia absolutamente convencido com nenhum dos meninos que tinha encontrado até então. Após dois meses de busca resolvi mudar de localização. Era uma decisão arriscada. Todo o trabalho feito por mim e pelos responsáveis de casting seria desperdiçado, assim como o seriam todas as outras crianças já seleccionadas para papéis secundários. Mudámos para uma nova localização a cerca de 100 km de distância inicial e deitámos mãos à obra. Existiam muito poucos habitantes e eram, na sua maioria, idosos devido ao desemprego e às migrações. Os poucos jovens que restavam também não me pareceram particularmente promissores. Um dia, no meu caminho de regresso de um dos locais de rodagem vi o Boras Altas a andar de bicicleta. Saí do carro e apresentei‐me. Senti imediatamente que aquele era o Yusuf de que tinha andado à procura. Uma criança sensível e inteligente com um mundo só seu.
TRANSFORMAR BORAS EM YUSUF
Durante as filmagens de MEL o Boras Altas tinha sete anos. O Boras tem uma personalidade muito diferente da que tinha delineado para Yusuf. O Boras é muito sociável, o que é completamente incompatível com aquilo que pretendia para Yusuf. Precisava que ele representasse e foi‐me bastante difícil transformá‐lo no Yusuf. Trabalhámos muito e fomos muito pacientes. Expliquei‐lhe tudo, cena a cena, o melhor e mais detalhadamente que consegui. Desenvolvemos uma ligação baseada na confiança. Posso dizer que trabalhei com ele da mesma maneira que trabalho com os actores adultos. O Boras foi suficientemente corajoso para se submeter a mim e eu nunca abusei da sua confiança nem da admiração que sentia por mim. Aprendi muito a tentar fazer uma criança tão jovem concentrar‐se no seu papel. Como não tenho filhos, também não tenho experiência com crianças. Nunca me esquecerei do empenho e entusiasmo do Boras e das outras crianças. Gostaria de destacar a ajuda da actriz Tülin Özen e do treinador de actores infantis Kutay Sandikçi que me ajudaram a conseguir os melhores desempenhos possíveis destas crianças.
REALISMO ESPIRITUAL
Aprendi e experimentei diversas coisas nos últimos quatro anos, ao longo da pré‐produção, produção e montagem da trilogia Yusuf. Foi também um período em que tentei moldar o meu estilo de realização, ao qual chamo “realismo espiritual”.
Durante este período, questionei não só os elementos de composição cinematográfica, tais como os elementos visuais, os actores, o som, os cenários e o tempo, mas também a equipa técnica, os recursos financeiros e a formas como os gasto. E aprendi algumas lições. Fazer um filme é uma descoberta ou, até mesmo, definir‐se a si mesmo através do espelho desse filme. Não apenas para o realizador, mas para todos os elementos da equipa. Por exemplo, a minha mãe ‐ que desempenhou papéis secundários em YUMURTA/EGG e SÜT/MILK – viu a casa de YUMURTA/EGG e disse que se parecia muito com a nossa casa antiga, onde passei a minha infância. Isto levou-a a partilhar comigo vários episódios dos quais nunca tínhamos falado, histórias de família de que eu não tinha conhecimento. Mais tarde utilizei alguns deles em SÜT/ MILK e MEL.
MEL é o terceiro filme da minha “Trilogia Yusuf”. A ideia para esta trilogia começou a formar‐se quando estava a rever um guião, que tinha escrito há muito tempo, sobre a história de Yusuf durante os seus anos de universitário em SÜT / MILK. Enquanto estava a elaborar esta personagem dei por mim a especular sobre como seria o seu futuro enquanto adulto (YUMURTA/EGG) e acerca de como teriam sido o passado e a infância do rapaz (BAL/MEL). Estas ideias ajudaram a moldar a trilogia. Comecei com YUMURTA/EGG, talvez porque a minha intenção fosse ir descobrindo a personagem em camadas, até chegar ao centro. Toda a trilogia pode ser vista como um extenso flashback. Nenhum dos filmes pode ser considerado de época: todos eles decorrem na actualidade, em diversos ambientes e escalões económicos turcos. Perguntam‐me se todos estes Yusufs são, efectivamente, a mesma personagem. Opto por não responder para não denunciar os seus segredos, a relação directa e indirecta entre os filmes, os mistérios da trilogia.
AS MINHAS PRÓPRIAS EXPERIÊNCIAS PASSADAS
Descrevi as minhas próprias experiências passadas enquanto delineava a personagem de Yusuf, pelo que se pode dizer que Yusuf tem partes de mim. Fiz várias referências à minha própria infância e juventude enquanto trabalhava nos três argumentos e acredito que fui capaz de lidar com os problemas na vida de Yusuf, as suas demandas e desafios, de forma realista. A minha infância serviu, igualmente, como ponto de partida para o guião de MEL. As minhas dificuldade na escola enquanto tentava a aprender a ler e escrever, as minhas perguntas às quais os adultos nunca responderam, a intensa crueldade e a riqueza da natureza… De certa forma, uma criança forma a sua personalidade enquanto descobre, com curiosidade, o mundo. Um mal‐entendido ocasional que conduz a erros ingénuos, sonhos, alegrias e remorsos permite‐lhe chegar à verdade. Espero que MEL nos permita chegar à verdade de Yusuf.
LUGAR INCOMUM
Para Yusuf e para o seu pai Yakup, a floresta representa um local encantado que encerra muitos dos mistérios no seu âmago. A floresta é um reino mágico no qual os dois se entretêm a esconder‐se, apenas para tornarem a reaparecer. Não é um local banal por onde eles deambulam apenas por ser um meio de subsistência. A floresta constitui um outro mundo, com gigantescas árvores e repleta de várias criaturas misteriosas, como a mula e o falcão que os acompanham durante as suas incursões à floresta. Foi bastante difícil de encontrar um sítio onde existissem largas e gigantescas árvores, com grandes troncos. Dei o meu melhor para encontrar um sítio adequado tanto para a colocação de uma colmeia como para a recriação do universo visual que queria para MEL. Trabalhámos em diversas florestas, especialmente naquelas em que existem colmeias há séculos. Localizavam‐se entre 30 e 40 km de distância umas das outras e a diferentes alturas, muito acima do nível do mar, todas elas com diferentes tipos de árvores.
YAKUP, O APICULTOR
O pai de Yusuf é um apicultor que recolhe o mel das colmeias, considerado o melhor mel e característico da região. Este mel terapêutico é a essência de um mundo antigo e de uma natureza imaculada. A sua profissão está prestes a desaparecer. O seu trabalho inclui colocar colmeias especialmente desenvolvidas, no topo das árvores, nas zonas montanhosas. É uma profissão exaustiva e perigosa. A admiração que Yusuf devota ao pai deve‐se, seguramente e em parte, ao invulgar ofício que este desempenha. Na minha opinião esta tem qualquer coisa em comum com a futura vocação de Yusuf – a poesia.
O DESAPARECIMENTO DO PAI
Não nos é possível dizer que a figura paterna não está presente na vida de Yusuf, na trilogia, já que nos é possível ver em MEL o quão forte é o seu laço com o pai. A ideia aqui é a forma como Yusuf experiencia o desaparecimento do seu pai, como lida com isso. Do ponto de vista da psicanálise, a perda prematura do pai pode fazer com que Yusuf construa a sua relação com a autoridade através da mãe, como se pode assistir em SÜT/MILK. Talvez esta seja a razão subjacente da sua fragilidade, timidez, insegurança e eventual redescoberta como acontece em YUMURTA/EGG. Mas todas estas características são pormenores de psicologia, com os quais eu não me preocupo nas minhas histórias. Estou a tentar retratar uma situação e reflectir sobre ela a um nível mais espiritual. Em vez de dissecar a nossa existência num laboratório de psicologia e reduzir a vida a uma sucessão causa efeito, estou a tentar atingir algum tipo de patamar mais elevado.
FILMAR NA COSTA DO MAR NEGRO
MEL foi rodado na pequena cidade de Çamlıhemşin. Fica na província de Rize, na costa do Mar Negro, no noroeste da Turquia. A minha motivação para esta escolha é a sua paisagem natural. Era a única região que tinha o tipo de cenário florestal que eu procurava. As condições geográficas da região acabaram, no entanto, por nos dar algumas dores de cabeça durante as filmagens. Só conseguíamos deslocar-nos até certo ponto e depois tínhamos de percorrer o restante caminho a pé até chegarmos ao local das filmagens, que ficava ainda bastante distante. Filmámos num terreno muito íngreme, no qual era difícil mantermo‐nos sequer em pé. Além disso, a costa do Mar Negro conta ainda com um clima muito instável. Chuva, sol e nevoeiro conseguem, muitas vezes, a proeza de fazer uma aparição durante a mesma hora. Tivemos, portanto, alguns problemas em manter a continuidade das cenas. Quando revejo o meu diário constato que choveu em 39 dos 48 dias de rodagem na floresta.
A HUMANIDADE DA INFÂNCIA
Se tivéssemos de classificar a actualidade como a idade adulta da Humanidade, então diria que os cenários onde MEL foi filmado estão ainda a viver a infância da Humanidade. Trabalhámos em aldeias montanhosas que em breve serão abandonadas por pessoas que ainda tentam construir a sua vida, de acordo com a tradição ancestral de comunhão com a natureza. Em lugares como este estamos a assistir à destruição dos recursos naturais, um problema para o qual devemos encontrar resposta o mais rapidamente possível.
A GAGUEZ DE YUSUF
Tendo acabado de entrar para a escola, Yusuf está a aprender a ler e escrever. Quando está a sós com o pai, o menino é capaz de ler, lentamente, pronunciando bem todas as palavras. Nas aulas, no entanto, Yusuf sente‐se demasiado pressionado e tende a gaguejar. Quando os colegas gozam com que ele, o jovem retrai‐se em silencio e solidão. Da mesma forma que o não ser aceite no serviço militar, após terminar o liceu, determina o destino de Yusuf em SÜT / MILK; o momento em que este não é capaz de ler na aula, em frente aos colegas, assinala um ponto de ruptura na sua infância. Ser elogiado por ser capaz de ler correctamente na aula, é algo de muito importante para um aluno da primeira classe. Falhar e transformar‐se numa piada para os colegas faz com que Yusuf se encerre em si mesmo e passe a desenvolver uma relação com as palavras e a poesia.
À PROCURA DO JOVEM YUSUF
Procurámos o Yusuf em várias cidades, vilas e aldeias durante mês. Fomos a todas as escolas primárias e entrevistámos os alunos da primeira da classe. Estava à procura da versão infantil do Yusuf de YAMURTA/EGG e SÜT/MILK. Não me sentia absolutamente convencido com nenhum dos meninos que tinha encontrado até então. Após dois meses de busca resolvi mudar de localização. Era uma decisão arriscada. Todo o trabalho feito por mim e pelos responsáveis de casting seria desperdiçado, assim como o seriam todas as outras crianças já seleccionadas para papéis secundários. Mudámos para uma nova localização a cerca de 100 km de distância inicial e deitámos mãos à obra. Existiam muito poucos habitantes e eram, na sua maioria, idosos devido ao desemprego e às migrações. Os poucos jovens que restavam também não me pareceram particularmente promissores. Um dia, no meu caminho de regresso de um dos locais de rodagem vi o Boras Altas a andar de bicicleta. Saí do carro e apresentei‐me. Senti imediatamente que aquele era o Yusuf de que tinha andado à procura. Uma criança sensível e inteligente com um mundo só seu.
TRANSFORMAR BORAS EM YUSUF
Durante as filmagens de MEL o Boras Altas tinha sete anos. O Boras tem uma personalidade muito diferente da que tinha delineado para Yusuf. O Boras é muito sociável, o que é completamente incompatível com aquilo que pretendia para Yusuf. Precisava que ele representasse e foi‐me bastante difícil transformá‐lo no Yusuf. Trabalhámos muito e fomos muito pacientes. Expliquei‐lhe tudo, cena a cena, o melhor e mais detalhadamente que consegui. Desenvolvemos uma ligação baseada na confiança. Posso dizer que trabalhei com ele da mesma maneira que trabalho com os actores adultos. O Boras foi suficientemente corajoso para se submeter a mim e eu nunca abusei da sua confiança nem da admiração que sentia por mim. Aprendi muito a tentar fazer uma criança tão jovem concentrar‐se no seu papel. Como não tenho filhos, também não tenho experiência com crianças. Nunca me esquecerei do empenho e entusiasmo do Boras e das outras crianças. Gostaria de destacar a ajuda da actriz Tülin Özen e do treinador de actores infantis Kutay Sandikçi que me ajudaram a conseguir os melhores desempenhos possíveis destas crianças.
REALISMO ESPIRITUAL
Aprendi e experimentei diversas coisas nos últimos quatro anos, ao longo da pré‐produção, produção e montagem da trilogia Yusuf. Foi também um período em que tentei moldar o meu estilo de realização, ao qual chamo “realismo espiritual”.
Durante este período, questionei não só os elementos de composição cinematográfica, tais como os elementos visuais, os actores, o som, os cenários e o tempo, mas também a equipa técnica, os recursos financeiros e a formas como os gasto. E aprendi algumas lições. Fazer um filme é uma descoberta ou, até mesmo, definir‐se a si mesmo através do espelho desse filme. Não apenas para o realizador, mas para todos os elementos da equipa. Por exemplo, a minha mãe ‐ que desempenhou papéis secundários em YUMURTA/EGG e SÜT/MILK – viu a casa de YUMURTA/EGG e disse que se parecia muito com a nossa casa antiga, onde passei a minha infância. Isto levou-a a partilhar comigo vários episódios dos quais nunca tínhamos falado, histórias de família de que eu não tinha conhecimento. Mais tarde utilizei alguns deles em SÜT/ MILK e MEL.
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