O DESPERTAR DA MENTE, Michel Gondry
Anda alguém a tentar mexer com as nossas cabeças, pelo menos desde que "Queres Ser John Malkovich?" (1999) abriu a caixa de Pandora. Era nesse filme, lembram-se?, que Malkovich "himself" descobria horrorizado que lhe estavam a ocupar o cérebro. Tanto "Queres Ser John Malkovich?" como, agora, "O Despertar da Mente", carregam a mesma assinatura, a do argumentista-prodígio Charlie Kaufman, e, para todos os efeitos, é dentro da cabeça dele que estamos. Reconhecem-se os sinais: as convulsões narrativas, as neuroses angustiadas, o esbatimento entre real e virtual, a demonstração algo laboratorial da triste comédia da condição humana. É assim que se pode identificar um universo autoral "kaufmaniano" antes mesmo de se falar do realizador dos seus argumentos, qualquer que ele seja, foi assim que começou a infiltrar-se, como um vírus, no cinema americano. Sobre "O Despertar da Mente", por exemplo, afirmou: "Não parti do princípio que ia escrever uma história de amor. Mas é intencional a minha fúria contra o romance convencional de Hollywood, porque isso deu cabo de mim quando eu estava a crescer, e a minha experiência não tem nada a ver com essas coisas." Fica o programa: um outro mundo é possível.
Não será por acaso que, para a sua hipótese de uma "alter-Hollywood", Kaufman se tenha aliado a realizadores com a folha (quase) limpa: Spike Jonze, Michel Gondry e até George Clooney ("Confissões de Uma Mente Perigosa"). Todos eles se estrearam na realização com argumentos de Kaufman, mas para a linhagem que aqui vem ao caso bastará convocar os dois primeiros: tanto Jonze como Gondry vêm do universo dos videoclips, tanto um como outro ambicionavam a transição para o cinema. Spike Jonze foi o primeiro a dar o salto, com "Queres Ser John Malkovich?" (seguiu-se "Inadaptado", em 2003). Foi ele quem proporcionou o encontro entre Kaufman e o francês Michel Gondry, que até tinha vindo para Hollywood com filmes como "Regresso ao Futuro" e "O Feitiço do Tempo" na cabeça. Estava-se mesmo a ver que os labirintos narrativos de Kaufman não andavam longe das pretensões de Gondry. O francês até trazia uma ideia sugerida por um amigo - e se um dia alguém recebesse uma carta a dizer que tinha sido apagado da memória de uma pessoa próxima? -, mas Kaufman contra propôs-lhe "Human Nature" (comercialmente inédito em Portugal). Foi a estreia desastrada de Gondry no cinema em 2001, filme contra-natura inscrito na evolução darwiniana da espécie humana, entre ci¬vilização e macacada, como que exibindo restos de bizarria que tinham ficado de fora de “Queres Ser John Malkovitch” (onde a culpa também era do macaco). Havia pêlo a mais (sic), artifício a rodos, e o espectador era deixado no limbo, sem nunca entrar no que mais parecia um videoclip de Gondry em versão longa - estavam lá marcas habituais, como o regresso à natureza e a vontade de efabulação que explorou no seu trabalho com Bjork ("Human behaviour", "Isobel", "Bacherolette", entre outros dips). Gondry anotou 40 páginas com tudo o que tinha falhado em "Human Nature" e, ao que parece, tentou apagar qualquer conotação com o filme: no recém-editado DVD "The Work of Director Michel Gondry", compilação dos seus trabalhos na área do videoclip e da curta-metragem, não há qualquer rasto da sua primeira longa-metragem, mas há dois "teasers" a anunciar "O Despertar da Mente" - um falso "spot" publicitário sobre a Lacuna Inc., empresa especializada em apagar "memórias perturbadoras", e um breve episódio em que Jim Carrey conduz a sua cama por uma L.A. nocturna cantando Elvis.
Nada que fizesse prever uma espera gratificante. Desenganem-se, pois: "O Despertar da Mente" (tradução menoríssima para o originalmente poético, e "dever", "Eternal Sunshine of the Spotless Mind") é filme para juntar ao panteão onde reinam "Punch-Drunk Love", de Paul Thomas Anderson, e "O Amor É Um Lugar Estranho", de Sofia Coppola, aí onde a comédia romântica ganhou rédeas para a experimentação e renovação.
(...) "O Despertar da Mente" abre espaço à virtualidade, transitando entre o real e o consciente.
Por aqui, era de imaginar o fácil recurso a proezas técnicas: é o que, até agora, se reconhecia a Michel Gondry, que nos seus videoclips e anúncios publicitários (o seu "spot" para a levi's, em 1994, é o mais premiado de todos os tempos, facto consumado no "Guiness Book of Records") parece sempre obcecado com a busca de um novo efeito visual. Gondry é uma espécie de Mr. Gadget, o último de uma linhagem de inventores, um prestidigitador em permanente prospecção de truques. Os seus vídeos são um prodígio de dinamitação da narrativa em favor de malabarismos técnicos, jogando com estratégias especulares e caleidoscópicas. Foi assim que Spike Jonze resumiu o método de Gondry: "Ele põe o público a olhar para um sitio enquanto está a fazer o truque noutro". Por seu lado, Gondry, e todos aqueles que o clamam como "um génio", têm propagado a sua capacidade para tornar possível o impossível. "limito-me a pegar numa ideia e a tentar puxá-Ia até ao extremo", diz ele, o que deixa antever pouco mais do que piscadelas de olho ao "state of the art".
Mas é preciso dizer que "O Despertar da Mente" é um trabalho de contenção. Mesmo não dispensando as bizarrias dos seus autores - o universo liliputiano e o brique-à-braque de Gondry ou a auto-humilhação crónica dos anti-heróis de Kaufman -, nunca se atreve fora dos limites do realismo e do "low-tech". Entre o interior e o exterior da cabeça de Joel Barish, entre o presente e o passado revivido, a transição é sempre encenada - é a palavra - com simples jogos de iluminação - as luzes apagando-se atrás de Joel à medida que ele sai da memória – e com as entradas e saídas das personagens delimitando a mudança de tempo (o "décor" é, muitas vezes, partilhado).
love story. Por falar em contenção, Jim Carrey é envolvente no seu minimalismo e vulnerabilidade. Não é só a cabeça dele que arrisca desaparecer: são as contorções a que o seu rosto nos habituou. Numa composição de desespero surdo, Jim Carrey apaga-se a si próprio, da mesma forma que Kate Winslet, enquanto tempestuosa incendiária de paixões, parece escapar ao cânone da sua filmografia.
É ver como, mesmo no labirinto mais intricado, duas solidões correm sempre uma para a outra. Só que, neste caso, não se trata de um "boy meets girI", mas de um "boy meets girl again". Afinal, também era assim em "The Philadelphia Story/ Casamento Escandaloso" (1940), de George Cukor, em que Cary Grant e Katharine Hepburn, após o falhanço da primeira união, faziam o seu périplo de aprendizagem, entre peripécias e obstáculos, até voltarem a ser um par - mais perfeito, como se presume.
"O Despertar da Mente" é, portanto, um filme sobre a segunda oportunidade, uma calorosa "love story". Seria injusto reservar para Kaufman todas as expensas de autorismo. Ao que parece, nas medidas a adoptar após a frustração de "Human Nature", Gondry incluiu a necessidade de ser mais infiel ao argumentista. É o que talvez explique que "O Despertar da Mente" não vá desembocar no cinismo e cepticismo habituais nos “scripts” de Kaufman. É o regresso à infância, enfim, que servirá de refúgio ao par de “O Despertar da Mente”, com Carrey a regredir em tamanho.
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Kathleen Gomes, Público, 21/5/04
SOBRE JIM CARREY
O homem de borracha é também um mestre do minimalismo subtil. Apogeu de um percurso singular, “O Despertar da Mente" é Jim Carrey como nunca o vimos: magnífico de despojamento.
Uma relação chega ao fim: ela resolve apagá-lo (literalmente) da memória; ele, corroído pela dor, decide fazer o mesmo; mas, a meio do processo, arrepende-se... É assim que corre o "boy meets girl" de "O Despertar da Mente". E se (como não podia deixar de ser) a premissa para este ensaio sobre o amor já é bizarra q.b., o mais surpreendente poderá ser mesmo a escolha do protagonista. É que no papel de Joel Barish, um homem tímido e calado, mais um exemplo das colecções ambulantes de inseguranças, temores e neuroses "made in" Kaufmanlandia, encontramos nem mais, nem menos do que... Jim Carrey.
Tímido e calado? Sim, não é bem o que se espera de quem ainda não há muito detinha o epíteto de "herdeiro de Jerry Lewis". Não que o canadiano não nos tivesse presenteado já com alguns golpes de rins - bem vistas as coisas, Carrey é capaz de ser uma das estrelas mais experimentais de Hollywood - mas em nenhuma das "reinvenções" anteriores tinha ousado ir tão longe como no filme de Gondry. Que é como quem diz, arriscar a sua composição mais vulnerável e minimal, apagando todas as marcas exteriores de uma "persona" excessiva.
Olhando para trás, "O Despertar da Mente" pode muito bem significar não só o apogeu como o corolário lógico de um percurso singular. No início (que não é bem o início, pois para trás ficavam dez anos de participações secundárias em filmes como "Peggy Sue Casou-se", de Francis Ford Coppola, ou "Earth Girls Are Easy", de Julien Temple), Carrey abanou o mundo com um humor físico tão particular quanto extremo: perante o frenesim lunático e a elasticidade de um corpo aparentemente nas tintas para as leis da plausibilidade, parecia estar o hipotético elo perdido entre humanos e "cartoons".
Foi assim em "Ace Ventura: Detective Animal" (onde se "rebobinava" a si próprio e falava pelo anus...), "A Máscara" (operando segundo a lógica de um "cartoon", o veiculo ideal para um desenho animado de carne e osso) ou "Doidos à Solta" (primeiro "opus" de Peter e Bobby Farrelly), um trio de êxitos comerciais que transformou o actor em supervedeta e fez de 1994 "o ano de Carrey". Os primeiros sinais de que o futuro não se faria apenas de comédias tontas e patetas alegres Vieram logo a Seguir, com "O Melga" (1996), sátira ácida de Ben Stiller, a revelar o lado "negro" de Carrey. De repente, sem perder a hiperactividade maníaca, o "clown" infantilizado deixava entrever sombras de uma perturbação inquietante, inscrevendo-se numa fascinante "terra de ninguém", próxima de uma espécie de burlesco malévolo.
Apesar do "flop" de bilheteira, estava aberto o caminho para Carrey poder continuar a frustrar expectativas dinamitando uma imagem que já se lhe colara como segunda pele. Passos seguintes, ainda mais decisivos: "The Truman Show" (1998) - fábula premonitória, por Peter Weir, sobre manipulação mediática, a prenunciar "Big Brothers" e outros horrores televisivos do género - e, principalmente, "Homem na Lua" (1999), de Milos Forman, extraordinário "biopic" dedicado a Andy Kaufman, génio iconoclasta da "stand-up comedy". Ao cruzarem comédia e drama, funcionaram como reforço de uma disponibilidade para correr riscos e tentar territórios inexplorados.
Como se Carrey se tivesse apercebido de que, por mais entusiasmante que pudesse ser (a sensação única de que, com ele, tudo é permitido e nada impossível), o "boneco" construído atingiria a saturação ao permanecer num mesmo nível "de superfície". Por isso, ofereceu-lhe uma segunda dimensão (até ai apenas vislumbrada em "O Melga"), acrescentando-lhe gravidade. Conclusão: dois "tours de force" magníficos, que lhe valeram um par de Globos de Ouro, embora a Academia se tenha teimosamente esquecido dele.
No entanto, todo esse virtuosismo assentava ainda em elementos característicos de um "carimbo" próprio, como a expressividade exagerada ou o esgar de fazer inveja a Jack Nicholson. No primeiro caso, reconhecíamos o "tonto" inocente e puro (afinal, era o único que não sabia que a sua vida não passava de um programa de TV) de outras aventuras. No segundo, estava bem patente a energia selvagem de um corpo quase irreal, em transfiguração permanente, multiplicando-se por um sem-número de identidades e máscaras.
Uma voracidade cimentada no pequeno ecrã, entre 1990 e 94, no "show" que o tornou conhecido, "In living Color", série afro-americana de comédia em "sketches" criada pelos irmãos Wayans, onde Carrey, "o tipo branco", compôs uma galeria de excêntricos (entre eles, um bombeiro horrivelmente desfigurado, cujos conselhos pouco recomendáveis provocaram a fúria de vários grupos de protecção civil).
Se o que se lhe seguiu - um regresso a material mais ligeiro, com melhores ("Ela, Eu e o Outro", em 2000, reencontro com os Farrelly) ou piores (o fraquinho "Bruce, O Todo-Poderoso", no ano passado) resultados - pareceu um retrocesso, pode ser visto agora como recuperação de fôlego, uma pausa antes de um gesto do mais puro radicalismo.
Em “O Despertar da Mente”, as transmutações de uma carreira são levadas às últimas consequências, com o actor a despir-se de tudo o que se associa à sua essência de “performer”. O Jim Carrey que conhecemos não está aqui: a “tomada” foi desligada e nos eu lugar surge uma figura triste e torturada, vestida em tons cinzentos, com barba por fazer e um olhar que alterna entre a angústia e o desespero.
Quem for à procura de caretas, contorções e espasmos ou dos tiques de um “número de actor”, descobrirá apenas uma comovente interioridade, feita de subtileza e contenção (o underacting” de certo modo ensaiado em três anos, em “The Majestic”, fantasia capriana assinada por Frank Darabont, mas que aí surgia algo tolhido pelo artificialismo do empreendimento). Mais do que nunca, após este assombroso acto de “desaparecimento”, importa exigir, de uma vez por todas, o Óscar.
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Vasco T. Menezes, Público, 21/5/04
Título Original: Eternal Sunshine of a Spotless Mind
Realização: Michel Gondry
Argumento: Charlie Kaufman
Interpretação: Jim Carrey, Kate Winslet, Mark Ruftalo
Direcção de Fotografia: Ellen Kuras
Montagem: Valdís Óskarsdóttir
Música: Jon Brion
Origem: EUA
Ano de Estreia: 2004
Duração: 108’
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