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Tem um nome complicadíssimo de pronunciar para as gentes do ocidente, mas prefere que o chamem de Joe. Apichatpong Weerasethakul venceu a Palma de Ouro na última edição de Cannes graças a este filme, que é também a sua primeira obra a estrear nas salas portuguesas, apesar de algumas terem sido projectadas nalguns festivais nacionais e de ter duas magníficas fitas (Febre Tropical e Síndromas de um Século) editadas em DVD.
Como filme, O Tio Boonmee... surgiu enquanto o realizador criava para o Primitive, projecto artístico que o levou a filmar no nordeste tailandês e a contar algumas das suas lendas e histórias. Primeiro surgiu A Letter to Uncle Boonmee, espécie de preâmbulo para esta longa-metragem que nos leva à memória de um senhor em convalescença que entra em contacto com os espíritos de alguns dos seus familiares e que se recorda, ou projecta, reincarnações suas enquanto animal e espírito no passado e no futuro.
O resultado é belíssimo, uma viagem pela floresta, onde espíritos convivem com animais e humanos, num misto de realidade e conto popular, ou lendas, desfasado de noções temporais, de uma orientação que condicione a experiência que Apichatpong proporciona. A certa altura, um espírito diz que o Céu é um local sobrevalorizado. Será, certamente. Lá não existirão filmes assim.
.
André Santos, Timeout
Não é preciso muito tempo, bastam dois ou três planos (até que o boi amarrado se solte e se aventure por uma floresta filmada em "noite americana", ou que assim parece) para se ter a sensação, muito clara, muito nítida, mas também, como dizer, muito calma, de que "O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores" é uma espécie de janela que alguém abriu, uma corrente de ar fresco soprada sobre a tristíssima avalanche de entulho que semanalmente se abate sobre o chamado "circuito comercial".
É um filme extraordinário, em todos os sentidos da palavra, um filme que devolve o cinema à sua (quase) esquecida vocação demiúrgica. É verdadeiramente um filme de "criação", de criação de um "mundo". E se com isto evocamos o que Godard escreveu, há muitos anos, sobre o "Índia" de Rossellini (que se tratava do "filme da criação do mundo"), fazemo-lo porque "O Tio Boonmee", no seu trabalho sobre o folclore, a mitologia, a história, empregues como maneira de "dobrar" a realidade sobre a sua própria fantasia (ou vice-versa), tem momentos em que nos traz o filme de Rossellini à cabeça - e evidentemente não apenas por, também aqui, os animais falarem (coisa que provavelmente desde o filme de Rossellini eles não faziam tão bem).
Lembra-nos mais coisas: Disney (o Disney genuíno), Powell / Pressburger, o "Brigadoon" de Minnelli, e claro, os indianos, certas coisas de Satyajit Ray ou Ritwik Ghatak, influência maior do cinema tailandês que talvez Apichatpong Weerasethakul nunca tivesse denunciado desta maneira. É assim tão especial, como são especiais os momentos, cada vez mais raros, em que sentimos o cinema a reencontrar-se consigo próprio. De resto, Apichatpong disse que "O Tio Boonmee" era a sua "pequena lamentação" pelo cinema. Voltaremos a ela, porque parece condensar-se no derradeiro plano.
O observador distante totalmente alheado do folclore e das tradições tailandesas, em vez de lamentar que a sua ignorância o condene a ver "O Tio Boonmee" como um objecto hermético, deve congratular-se por isso mesmo: está em óptima posição para remeter tudo o que não percebe para o "folclore e as tradições tailandesas" e limitar-se a apreciar o que vê. É mais misterioso, e se calhar ainda mais belo, assim. E no entanto, perfeitamente claro: é como dizia Jean Douchet nos anos 50, não precisamos de "aprender japonês" para perceber Mizoguchi, basta que "aprendamos Mizoguchi". Precisaremos, de facto, de saber alguma coisa da Tailândia para perceber o fabuloso intróito da princesa desfigurada à procura da sua imagem "redimida" pelo reflexo nas águas do lago? Ou por que razão foi o Tio Boonmee, numa vida anterior, um peixe-gato? Ou porque é que os homens-macacos de olhos que brilham no escuro confraternizaram e tiraram fotografias com os soldados que andavam pela floresta a matar comunistas? Claro que não, basta que saibamos "aprender Apichatpong".
E o "Apichatpong", aqui, é um cinema funde todas as ordens de realidade, o vivido e o sonhado, a experiência e a imaginação, a profundidade e a ligeireza, a metafísica e o aparte anedótico (a não negligenciar, o seu sentido de humor, que já conhecíamos pelo menos desde "Síndromas e um Século), com uma graça, uma delicadeza e um equilíbrio pouco menos que perfeitos. O Tio Boonmee, que está moribundo (mal dos rins), evidentemente não morre; ou por outra, a morte entrega-o ao que foi a sua vida, aos seus fantasmas, aos seus remorsos, aos seus desejos, às suas memórias, que se materializam por acção combinada do cinema e da natureza. É isto "O Tio Boonmee", é isto "o Apichatpong". E os que ficam depois dele, pobres diabos, ficam especados em frente a um minúsculo ecran de televisão. É o derradeiro plano.
.
Luís Miguel Oliveira, Público
Há coisas que fazem sentido em Tio Boonmee… e coisas que não. Coisas que nem nós nem os nativos da Tailândia, certamente mais conhecedores das tradições e costumes desse país, conseguimos perceber. Fala-se aqui em perceber no sentido de conseguir atribuir uma via lógica, dentro da trama e da narrativa. Nesse aspecto, sim, existem coisas aqui que eu provavelmente jamais conseguirei compreender. Mas a nível emocional e sensatorial, Tio Boonmee… está em sintonia constante com quem estiver disposto a sintonizar-se na frequência correcta.
Quem já tiver visto Tropical Malady (igualmente magnífico) ou outro dos filmes do realizador, já saberá o que esperar: um universo aparte, diferente do nosso, que proporciona ao espectador nada mais que uma verdadeira viagem. Apichatpong Weerasethakul faz cinema como mais ninguém faz, transformando o mínimo em puro artifício e a natureza (haverá mais alguém que filma assim a floresta?) em sonho. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes com este seu último filme, está agora nas bocas do mundo, e com uma obra assim, tudo isso é mais que justificado. Mas enquanto que em Tropical Malady ou Syndromes and a Century tínhamos uma narrativa fragmentada, Tio Boonmee… fica a ganhar em centrar-se acima de tudo sobre um determinado grupo de personagens. Ao fazer isto, a relação emocional com as personagens torna-se maior, e o realizador consegue aqui criar um grupo de personagens com as quais o espectador se relaciona. Mas façamos uma pequena sinopse da história: Boonmee é um homem que está às portas da morte, vítima de uma doença terminal. Para cuidar dele, a sua mulher regressa dos mortos e o seu filho, desaparecido há muito, regressa… sob a forma de um macaco fantasma (sim, leram bem). A trama (se é que esta existe propriamente… e todo o relembrar das vidas passadas de que o título fala é algo que deve ser guardado para o filme) desenvolve-se a partir daí, e que se desengane o espectador que espera apenas um monte de planos bonitos e um filme que apela aos sentidos: este é, acima de tudo, um filme sobre um homem obrigado a lidar com a morte. E o que torna todo o filme tão único e diferente é exactamente o facto de Apichatong ter uma visão muito particular da morte e de toda a mitologia que a acompanha. Aqui, os fantasmas abraçam os vivos e vêm com eles fotos do passado. “O céu é sobrevalozirado”, diz a certa altura a sua mulher regressada do além. Para o realizador tailandês, o outro mundo está já aqui ao lado.
Além de alguns momentos verdadeiramente tocantes e outros com o humor particular do realizador, sempre embebidos de uma poesia como só Apichatong consegue (há que dar destaque a toda aquela caminhada em direcção à gruta, perto do final, e a uma lindíssima cena de diálogo entre Boonmee e a sua defunta mulher), temos aqui todo um mundo totalmente novo para experimentar. Tal como foi dito, para Apichatong o natural e o sobrenatural co-existem, e o filme está todo ele filmado segundo esse princípio. O tom é todo ele poético e etéreo, com todo aquele espírito naturalista do realizador (câmara frequentemente estática, tudo filmado tal como é) que acaba por dar a Tio Boonmee… um ar de sonho. É, realmente, algo notável: Apichatong mostra-nos uma floresta, e filma-a tal como uma floresta, mas a sua câmara, milagrosamente, consegue colocar-nos lá dentro de forma que nos apercebamos de que aquela floresta é, de facto, muito mais que isso. É um portal para o cinema deste realizador. A fotografia é, portanto, lindíssima, tal como o trabalho de som, que captura sem filtros o som de toda a vida existente naquela enorme floresta. Há imagens que ficam marcadas na memória, vivendo com o espectador depois deste ter saído da sala (aqueles macacos fantasmas…). É, a nível sensatorial, uma experiência envolvente, que nos agarra e prende por todos os lados, ao mesmo tempo despertando-nos a nível emocional.
Tio Boonmee… é uma autêntica viagem por um mundo como só Apichatpong Weerasethakul sabe criar (pelo seu mundo), uma autêntica janela que se abre como raramente se vê no cinema. Um triunfo em todos os aspectos, desde o trabalho de imagem e som até, claro, aquelas personagens que nos conseguem por vezes encantar, por vezes comover. Veja-se aquela simples e curta história da princesa envelhecida que vê num lago o reflexo do seu eu jovem, com toda a beleza que antes possuía, ou alguns diálogos simples e curtos que encerram em si mesmo mais sentimento enterrado sob as palavras que o que parece à primeira vista. É inclassificável, inqualificável, único, diferente e sem dúvida intolerável para muitos. O seu ritmo lento certamente criará bocejo em muitos e fascinará outros tantos, e percebe-se facilmente ambas as reacções. Não é definitivamente um filme para todos (haverá algum que seja?), que pode tão facilmente despertar fascínio como desprezo. Mas o que temos em Tio Boonmee… é cinema como meio de viagem, é a arte como meio de criar um mundo novo e diferente. Isto é, afinal de contas, cinema do género Fantástico, com fantasmas e morte, magia e vidas passadas. Mas aqui o Fantástico é normal, e o natural e o sobrenatural fundem-se, criando um universo banhado a sonho e preenchido de alma. Numa indústria onde os filmes em sala estão cada vez mais iguais, onde o que cada vez mais interessa são as pipocas, é bom ver uma longa-metragem de Apichatong (sim, não me atrevo a tentar escrever o seu último nome) nas salas. É bom ver o ecrã transformado em janela e viver uma viagem que nos preencha por completo, seja de que forma for. Quer se goste quer não, este é um filme que tem muito a dar. A forma como o recebemos, por outro lado, é algo que variará com cada um de nós. No meu caso, fascinou-me (e, tal como o texto certamente tornou óbvio, nem consigo explicar bem porquê, não estando a fazer esta crítica jus ao filme). Mas certamente não será assim com todos.
.Como filme, O Tio Boonmee... surgiu enquanto o realizador criava para o Primitive, projecto artístico que o levou a filmar no nordeste tailandês e a contar algumas das suas lendas e histórias. Primeiro surgiu A Letter to Uncle Boonmee, espécie de preâmbulo para esta longa-metragem que nos leva à memória de um senhor em convalescença que entra em contacto com os espíritos de alguns dos seus familiares e que se recorda, ou projecta, reincarnações suas enquanto animal e espírito no passado e no futuro.
O resultado é belíssimo, uma viagem pela floresta, onde espíritos convivem com animais e humanos, num misto de realidade e conto popular, ou lendas, desfasado de noções temporais, de uma orientação que condicione a experiência que Apichatpong proporciona. A certa altura, um espírito diz que o Céu é um local sobrevalorizado. Será, certamente. Lá não existirão filmes assim.
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André Santos, Timeout
Não é preciso muito tempo, bastam dois ou três planos (até que o boi amarrado se solte e se aventure por uma floresta filmada em "noite americana", ou que assim parece) para se ter a sensação, muito clara, muito nítida, mas também, como dizer, muito calma, de que "O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores" é uma espécie de janela que alguém abriu, uma corrente de ar fresco soprada sobre a tristíssima avalanche de entulho que semanalmente se abate sobre o chamado "circuito comercial".
É um filme extraordinário, em todos os sentidos da palavra, um filme que devolve o cinema à sua (quase) esquecida vocação demiúrgica. É verdadeiramente um filme de "criação", de criação de um "mundo". E se com isto evocamos o que Godard escreveu, há muitos anos, sobre o "Índia" de Rossellini (que se tratava do "filme da criação do mundo"), fazemo-lo porque "O Tio Boonmee", no seu trabalho sobre o folclore, a mitologia, a história, empregues como maneira de "dobrar" a realidade sobre a sua própria fantasia (ou vice-versa), tem momentos em que nos traz o filme de Rossellini à cabeça - e evidentemente não apenas por, também aqui, os animais falarem (coisa que provavelmente desde o filme de Rossellini eles não faziam tão bem).
Lembra-nos mais coisas: Disney (o Disney genuíno), Powell / Pressburger, o "Brigadoon" de Minnelli, e claro, os indianos, certas coisas de Satyajit Ray ou Ritwik Ghatak, influência maior do cinema tailandês que talvez Apichatpong Weerasethakul nunca tivesse denunciado desta maneira. É assim tão especial, como são especiais os momentos, cada vez mais raros, em que sentimos o cinema a reencontrar-se consigo próprio. De resto, Apichatpong disse que "O Tio Boonmee" era a sua "pequena lamentação" pelo cinema. Voltaremos a ela, porque parece condensar-se no derradeiro plano.
O observador distante totalmente alheado do folclore e das tradições tailandesas, em vez de lamentar que a sua ignorância o condene a ver "O Tio Boonmee" como um objecto hermético, deve congratular-se por isso mesmo: está em óptima posição para remeter tudo o que não percebe para o "folclore e as tradições tailandesas" e limitar-se a apreciar o que vê. É mais misterioso, e se calhar ainda mais belo, assim. E no entanto, perfeitamente claro: é como dizia Jean Douchet nos anos 50, não precisamos de "aprender japonês" para perceber Mizoguchi, basta que "aprendamos Mizoguchi". Precisaremos, de facto, de saber alguma coisa da Tailândia para perceber o fabuloso intróito da princesa desfigurada à procura da sua imagem "redimida" pelo reflexo nas águas do lago? Ou por que razão foi o Tio Boonmee, numa vida anterior, um peixe-gato? Ou porque é que os homens-macacos de olhos que brilham no escuro confraternizaram e tiraram fotografias com os soldados que andavam pela floresta a matar comunistas? Claro que não, basta que saibamos "aprender Apichatpong".
E o "Apichatpong", aqui, é um cinema funde todas as ordens de realidade, o vivido e o sonhado, a experiência e a imaginação, a profundidade e a ligeireza, a metafísica e o aparte anedótico (a não negligenciar, o seu sentido de humor, que já conhecíamos pelo menos desde "Síndromas e um Século), com uma graça, uma delicadeza e um equilíbrio pouco menos que perfeitos. O Tio Boonmee, que está moribundo (mal dos rins), evidentemente não morre; ou por outra, a morte entrega-o ao que foi a sua vida, aos seus fantasmas, aos seus remorsos, aos seus desejos, às suas memórias, que se materializam por acção combinada do cinema e da natureza. É isto "O Tio Boonmee", é isto "o Apichatpong". E os que ficam depois dele, pobres diabos, ficam especados em frente a um minúsculo ecran de televisão. É o derradeiro plano.
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Luís Miguel Oliveira, Público
Há coisas que fazem sentido em Tio Boonmee… e coisas que não. Coisas que nem nós nem os nativos da Tailândia, certamente mais conhecedores das tradições e costumes desse país, conseguimos perceber. Fala-se aqui em perceber no sentido de conseguir atribuir uma via lógica, dentro da trama e da narrativa. Nesse aspecto, sim, existem coisas aqui que eu provavelmente jamais conseguirei compreender. Mas a nível emocional e sensatorial, Tio Boonmee… está em sintonia constante com quem estiver disposto a sintonizar-se na frequência correcta.
Quem já tiver visto Tropical Malady (igualmente magnífico) ou outro dos filmes do realizador, já saberá o que esperar: um universo aparte, diferente do nosso, que proporciona ao espectador nada mais que uma verdadeira viagem. Apichatpong Weerasethakul faz cinema como mais ninguém faz, transformando o mínimo em puro artifício e a natureza (haverá mais alguém que filma assim a floresta?) em sonho. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes com este seu último filme, está agora nas bocas do mundo, e com uma obra assim, tudo isso é mais que justificado. Mas enquanto que em Tropical Malady ou Syndromes and a Century tínhamos uma narrativa fragmentada, Tio Boonmee… fica a ganhar em centrar-se acima de tudo sobre um determinado grupo de personagens. Ao fazer isto, a relação emocional com as personagens torna-se maior, e o realizador consegue aqui criar um grupo de personagens com as quais o espectador se relaciona. Mas façamos uma pequena sinopse da história: Boonmee é um homem que está às portas da morte, vítima de uma doença terminal. Para cuidar dele, a sua mulher regressa dos mortos e o seu filho, desaparecido há muito, regressa… sob a forma de um macaco fantasma (sim, leram bem). A trama (se é que esta existe propriamente… e todo o relembrar das vidas passadas de que o título fala é algo que deve ser guardado para o filme) desenvolve-se a partir daí, e que se desengane o espectador que espera apenas um monte de planos bonitos e um filme que apela aos sentidos: este é, acima de tudo, um filme sobre um homem obrigado a lidar com a morte. E o que torna todo o filme tão único e diferente é exactamente o facto de Apichatong ter uma visão muito particular da morte e de toda a mitologia que a acompanha. Aqui, os fantasmas abraçam os vivos e vêm com eles fotos do passado. “O céu é sobrevalozirado”, diz a certa altura a sua mulher regressada do além. Para o realizador tailandês, o outro mundo está já aqui ao lado.
Além de alguns momentos verdadeiramente tocantes e outros com o humor particular do realizador, sempre embebidos de uma poesia como só Apichatong consegue (há que dar destaque a toda aquela caminhada em direcção à gruta, perto do final, e a uma lindíssima cena de diálogo entre Boonmee e a sua defunta mulher), temos aqui todo um mundo totalmente novo para experimentar. Tal como foi dito, para Apichatong o natural e o sobrenatural co-existem, e o filme está todo ele filmado segundo esse princípio. O tom é todo ele poético e etéreo, com todo aquele espírito naturalista do realizador (câmara frequentemente estática, tudo filmado tal como é) que acaba por dar a Tio Boonmee… um ar de sonho. É, realmente, algo notável: Apichatong mostra-nos uma floresta, e filma-a tal como uma floresta, mas a sua câmara, milagrosamente, consegue colocar-nos lá dentro de forma que nos apercebamos de que aquela floresta é, de facto, muito mais que isso. É um portal para o cinema deste realizador. A fotografia é, portanto, lindíssima, tal como o trabalho de som, que captura sem filtros o som de toda a vida existente naquela enorme floresta. Há imagens que ficam marcadas na memória, vivendo com o espectador depois deste ter saído da sala (aqueles macacos fantasmas…). É, a nível sensatorial, uma experiência envolvente, que nos agarra e prende por todos os lados, ao mesmo tempo despertando-nos a nível emocional.
Tio Boonmee… é uma autêntica viagem por um mundo como só Apichatpong Weerasethakul sabe criar (pelo seu mundo), uma autêntica janela que se abre como raramente se vê no cinema. Um triunfo em todos os aspectos, desde o trabalho de imagem e som até, claro, aquelas personagens que nos conseguem por vezes encantar, por vezes comover. Veja-se aquela simples e curta história da princesa envelhecida que vê num lago o reflexo do seu eu jovem, com toda a beleza que antes possuía, ou alguns diálogos simples e curtos que encerram em si mesmo mais sentimento enterrado sob as palavras que o que parece à primeira vista. É inclassificável, inqualificável, único, diferente e sem dúvida intolerável para muitos. O seu ritmo lento certamente criará bocejo em muitos e fascinará outros tantos, e percebe-se facilmente ambas as reacções. Não é definitivamente um filme para todos (haverá algum que seja?), que pode tão facilmente despertar fascínio como desprezo. Mas o que temos em Tio Boonmee… é cinema como meio de viagem, é a arte como meio de criar um mundo novo e diferente. Isto é, afinal de contas, cinema do género Fantástico, com fantasmas e morte, magia e vidas passadas. Mas aqui o Fantástico é normal, e o natural e o sobrenatural fundem-se, criando um universo banhado a sonho e preenchido de alma. Numa indústria onde os filmes em sala estão cada vez mais iguais, onde o que cada vez mais interessa são as pipocas, é bom ver uma longa-metragem de Apichatong (sim, não me atrevo a tentar escrever o seu último nome) nas salas. É bom ver o ecrã transformado em janela e viver uma viagem que nos preencha por completo, seja de que forma for. Quer se goste quer não, este é um filme que tem muito a dar. A forma como o recebemos, por outro lado, é algo que variará com cada um de nós. No meu caso, fascinou-me (e, tal como o texto certamente tornou óbvio, nem consigo explicar bem porquê, não estando a fazer esta crítica jus ao filme). Mas certamente não será assim com todos.
Gonçalo Trindade, antecinema
Título Original: Loong Boonmee raleuk chat
Realização, Argumento e Produção: Apichatpong Weerastethakul
Fotografia: Sayombhu Mukdeeprom, Yukontorn Mingmongkon, Charin Pengpanich
Montagem: Lee Chatametikool
Interpretação: Thanapat Saisaymar, Jenjira Pongpas, Sakda Kaewbuadee
Origem: Reino Unido/ Tailândia/ Alemanha/ França/ Espanha
Ano: 2010
Duração: 113´
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