Estreou a 14 de Abril e já o estamos a dar. Espectáculo!...
SINOPSE
A Cidade dos Mortos, no Cairo, é a maior necrópole do mundo. Um milhão de pessoas vivem dentro do cemitério - em casas tumulares ou nos edifícios que cresceram em redor. Dentro do cemitério há de tudo: padarias, cafés, escolas para as crianças, teatros de fantoches... A Cidade dos Mortos estende-se por mais de dez quilómetros ao longo de uma auto-estrada, mas não deixa de ser uma aldeia, com mães à caça de um bom partido para as filhas, rapazes a correr atrás das raparigas, disputas entre vizinhos. Preparado e rodado ao longo de cinco anos (2004-2009), este filme (site) procura dar a ver a alma invisível do cemitério.
CRÍTICAS
Depois de uma realidade que lhe estava próxima (Os Lisboetas, 2004), Sérgio Tréfaut viaja até latitudes bem mais longínquas, mas não tão sombrias como se poderia supor: um lugar de morte cheio de vida, no Cairo. Foram cinco anos, oito viagens ao Cairo, meses seguidos a viver na cidade egípcia, lições de árabe, muitos obstáculos, muitos pedidos oficiais rejeitados, muita burocracia de repartição, muito "do you have a permit?", muitas boas intenções goradas, um passo à frente e logo dois atrás, perda de parte das rushes originais, algumas hesitações... e finalmente a decisão de filmar clandestinamente a maior necrópole do mundo, onde as moradas dos defuntos são também habitadas por vivos. Ao rodar o documentário A Cidade dos Mortos, que conquistou o grande prémio Documenta Madrid 2010 e passou por mais de uma dezena de festivais internacionais, Sérgio Trefaut pensou em desistir, parecia-lhe "um filme amaldiçoado". Afinal uma superstição que não existe entre o milhão de habitantes daquele cemitério, que se encheu de famílias, e escolas, e mercados, e cafés, e disputas entre vizinhos, e teatros de fantoches, e namoros, e casamentos, e música, e crianças que jogam à bola usando jazigos como balizas... E vida, em suma.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
Os habitantes de um cemitério do Cairo, que vivem juntos dos vermes e da prodridão, contam, e assim se contam: "a nossa cidade".
Serge Tréfaut contou já em entrevistas a aventura que foi a rodagem deste documentário sobre uma cidade paralela que se formou dentro de uma cidade (o Cairo, que circula à volta e não querendo reparar). É uma cidade entre túmulos ou dentro de túmulos em que se monta uma casa que várias vezes é preciso desmontar por causa de um funeral - e a seguir volta a pôr-se a mesa ou a fazer a cama sobre o local onde jaz, novinho em folha, o morto. É uma cidade paralela: o cemitério do Cairo.
Devido às idas e vindas (Portugal-Egipto) espaçadas no tempo, contou o realizador, essa "cidade" parecia resistir a deixar-se fixar e à sua singularidade no documentário; e as figuras não conseguiam ascender à condição de personagens. Tréfaut lançou, então, mão de um artifício - a voz "off " de um coveiro. Sabemos como a voz "off" costuma ser bengala nos documentários, mas aqui ela revelou-se preciosa: enche "A Cidade dos Mortos" de espírito(s), do espírito de um lugar, algo que, filtrado pelo olhar de Tréfaut, aparece com uma energia pícara (e às vezes até algo próximo de um certo neo-realismo fantasista: a sequência em que o circo chega à cidade, ao cemitério, podia vir de "La Strada", de Fellini). E visivelmente serena e orgulhosa, como nas cenas de um casamento que o realizador decidiu autonomizar da longa-metragem, porque corria o risco de ocupar nela demasiado espaço, e funciona como um bónus na sessão de cinema: "Waiting for Paradise".
Os habitantes deste cemitério, que vivem próximos dos vermes e da podridão, contam, e assim se contam: "a nossa cidade". Sempre entre a vida e a morte, é algo que se tacteia, sem se fixar. "A Cidade dos Mortos" mantém sempre a dualidade como horizonte - é uma forma de se manter sempre ao alcance dos espíritos -, não forçando nunca um duelo ou uma vitória: uma espécie de toca-e-foge que vai da podridão da carne, do cheiro das "ruas", para a corrida hormonal dos rapazes que fazem o "cruising" atrás das raparigas.
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Vasco Câmara, Público
ENTREVISTAS AO REALIZADOR
Não nos mostra um único funeral neste cemitério cheio de vida.
A morte não é ver um cadáver a apodrecer; o problema está na relação que temos com aqueles que já não estão connosco. O que gosto mais, passado algum tempo, é a questão da espiritualidade, que não é óbvia. O que transmito no filme é um amor das pessoa pelas pessoas, um carinho pela vida, e não mais que isso. Acho maravilhoso que aqueles habitantes que têm um contacto diário com a morte e com aquilo que está na origem das fraudes acerca da perda da espiritualidade e da religião tenham uma visão tão serena do universo que causa a fraude. Lidam com a morte muito frente a frente com a vida.
Como foi recebido nesta cidade?
Há todo o lado do Estado que é muito complicado. É um filme clandestino, que nunca obteria permissão para ser filmado. Qualquer pessoa que ponha uma câmara na rua do Cairo precisa de autorização. Não houve suborno, de modo algum, mas tínhamos uma conversa amena quando nos abordavam. Essa proibição de rodagem tem consequências nas próprias pessoas. Filmei apenas as que me autorizaram, com quem dialoguei bastante tempo e compreenderam o meu propósito. Têm uma enorme consciência dos abusos que são feitos pelas televisões em fazer daquilo um antro de miséria.
Não a viu como tal?
Não é uma coisa terrível. No Cairo, logo ali ao lado, há o bairro dos habitantes do lixo. Depois tem outros bairros construídos sem condições, com prédios inacabados, onde morria imensa gente. A Cidade dos Mortos tem uma qualidade de vida muito superior. Acontece de tudo, é divertido e desmistificador por isso.
Como fez a ponte com essas pessoas? Aprendeu árabe?
Comecei por aprender árabe. Não chega, leva muito tempo. Cheguei ao Cairo pela primeira vez em Novembro de 2004 e fiz várias viagens até começar a filmar em Agosto de 2007. Tentei relacionar-me por vários caminhos. São vários cemitérios e redes enormes. Almocei e jantei em casa daquelas pessoas que entram no filme.
Chegou a dormir no cemitério?
Dormi uma noite numa casa. Convidaram-me, mas era complicado para elas. Uma jornalista italiana fez daquilo um caso extraordinário porque transformou um túmulo num bed&breakfast. Foi para Itália e quando voltou chegou à fronteira e não entrou mais. Dentro do período do Mubarack não se podia brincar com o fogo. Havia locais onde podíamos ficar e outros não. Depois disseram-me que era melhor ficar no hotel e assim fiz, mas comia e vivia todos os dias lá.
Gostou da experiência?
Totalmente. Sinceramente se tivesse que escolher um lugar para morar no Cairo era aqui, não tenho a menor dúvida. As pessoas são simpáticas, tem vida. Os meus amigos no Cairo estão lá.
Eles já viram o filme?
Vão vê-lo proximamente. Vou ao Cairo nos próximos meses fazer uma apresentação. O que acontece ao passar o filme no Egipto, e a Al Jazeera pede-mo há muito tempo, é que há uma parte que não quero passar na televisão porque fiz um compromisso com eles. Depois de verem talvez autorizem.
Qual é a cena?
A dos rapazes no carro. Não sei se os pais, as mães e as namoradas vão achar muita graça àquela conversa. É um pouco de mais. Tirando isso, já foi convidado para ser apresentado na grande biblioteca de Alexandria.
Pediu-lhes que fossem espontâneos?
Tudo é uma mistura de construir e espontâneo. Neste caso queria filmá-los no carro. Eles deram voltas ao cemitério e ia uma câmara atrás. Eu nem estava no carro. As conversas dele são o mais autêntico possível. Tal como a conversa da casamenteira, é o mais genuíno possível.
Como chega a esta história?
Já se fez muita reportagem mas eu não conhecia, tal como muita gente. Um amigo azucrinou-me para lá ir. Também achava tão esquisito que pedi para me explicar melhor. Peguei no avião e fui. Quando acordei no hotel na primeira manhã estava a 500 metros do cemitério. É muito intrigante, visualmente não se compreende que é um cemitério, é como uma aldeia. Ser intrigante é um desafio.
Saiu-lhe muito dinheiro do bolso?
Do bolso salvo seja, porque felizmente sou produtor também e consigo articular as coisas. Não ganhei dinheiro, e os documentaristas não ganham dinheiro, é muito árduo, mas sobrevive-se. O orçamento total deve rondar os 150 mil euros, feita com muitas equipas e várias viagens. A última vez estive lá três meses. Gerir 70 a 80 horas de material pede muitas horas de montagem.
Tem retratado muito os fenómenos da imigração. Aqui não deixa de filmar um certo espírito ambulante.
Talvez. Há o lado da história, um certo cinema antropológico. Muitos vão fazer filmes sabe-se lá onde, como Joris Ivens, um dos meus mestres. Há pessoas que são capazes de experimentar isso sem aprender a língua ou sem perder muito tempo, e fazem filmes muito bons, não estou a fazer crítica nenhuma. Mas eu não sou capaz. Preciso de mergulhar naquele universo e criar relações com as pessoas. Existiu essa cumplicidade que levou muito tempo e custou muito.
Teve problemas depois da conclusão?
Não. O Egipto é um país onde tudo pode ser e tudo não pode ser. Para mim é importante mostrar lá o filme porque gostava que possibilitasse uma quase reconciliação catártica. Ultrapassando o tabu de viver com os mortos, por decisão de Nasser, quando as cidades do Mar Vermelho foram bombardeadas, abrindo esse precedente, os milhares chegaram ao milhão. Os números variam entre os 700 mil e 1,7 milhões de habitantes.
(...) No Cairo trabalhou clandestinamente. Arriscaria fazer algo parecido em Portugal para levar algo avante?
No Cairo não autorizam e faz-se. Aqui não se entra facilmente em muita coisa. Quando o "Lisboetas" saiu fui convocado pelo SEF para uma sessão de branqueamento. Os poucos minutos que se mostram no SEF levaram meses a conseguir autorização, e queriam que fôssemos filmar os ingleses, franceses. Não queríamos isso. Diziam que estávamos a perturbar os pobres coitados que lá estavam, proibiram-nos de filmar os funcionários. Depois já podia filmar onde quisesse. Então pedi-lhes para me autorizarem a filmar nos locais onde se fazem os interrogatórios nos aeroportos. Nunca recebi resposta.
Continua a achar que o documentário está reservado ao espaço da memória?
Há dificuldades a nível das autorizações e dos financiamentos. A televisão quer um arquivo morto, não quer retratar a realidade contemporânea, reflectir o nosso mundo. Há uns anos tive um projecto que apresentei ao Jorge Weimans. O filme seria 15 dias com Alberto João Jardim, que vende no mundo inteiro, como Berlusconi. "Ah, nem pensar nisso". O ICA e a Gulbenkian também incentivam a criatividade mas preocupam-se muito mais em fazer um arquivo morto. Uma vez queriam que fizesse uma série de filmes sobre artistas. Eu pago para que não façam. Os artistas têm galerias, eles que se desemerdem a fazer os seus filmes.
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Maria Ramos Silva, Jornal I
O primeiro elemento importante de “A Cidade dos Mortos” é a revelação de uma realidade insólita. Como é que a descobriu?
Aquela realidade não é desconhecida – até vem em guias turísticos. O que se passou foi que várias pessoas me desafiaram a ir filmá-la e durante muito tempo não lhes dei atenção, primeiro porque era longe e depois por me parecer tão gigante que era pouco crível. Até que um dia fui ver com os meus próprios olhos e foi imediato. Pensei: é um desafio que quero tentar. Em milhões de aspectos: a língua, a cultura...
Como é que um documentarista se aproxima daquela realidade?
É um problema que se coloca em qualquer filme. Quando fiz “Lisboetas” também tive de encontrar soluções para entrar em comunidades que não têm acesso fácil e fui pela via das comunidades religiosas, das associações. Neste caso, eu sabia que várias pessoas tinham tentado filmar naquele local e só tinham conseguido ‘roubar’ imagens durante uma reportagem de dois dias. Não é o meu estilo, eu tenho de conseguir intimidade e relação com as pessoas, que, penso eu, o filme mostra que existem. Tentei entrar nas redes, quer dizer, os coveiros, os grupos religiosos, as mesquitas, as escolas, os cafés... Veja-se, por exemplo, os mercados: eles têm os seus próprios guardiões. Toda a gente diz para não filmar os mercados, que é perigosíssimo e acaba-se sendo assaltado. Só que, ao fim de algum tempo, é o próprio guardião daquele espaço que começa a tomar conta de nós.
O filme foi feito exactamente quando?
Fui pela primeira vez ao Cairo em Novembro de 2004, as filmagens foram realizadas ente Agosto de 2007 e 2009, em várias fases. Antes de começar a filmar fiz várias viagens e fui estabelecendo relações, almocei em casa de coveiros durante semanas, fui arranjando assistentes egípcios. É preciso dizer que, na fase de financiamento do filme, muitos produtores internacionais mostravam interesse, mas diziam: “Só me meto numa coisa no Egipto com autorizações”. Porque o Egipto tem uma péssima reputação. Tentei, por todos os meios, obter as autorizações para filmar, coloquei vários embaixadores de vários países a escreverem cartas a ministros – e nada. Tive de fazer um filme clandestino. “A Cidade dos Mortos” é um filme clandestino. De vez em quando a polícia aparecia e nós fazíamos de conta que íamos visitar alguém...
Mas porquê clandestino?
Durante o regime de Mubarak, havia uma obsessão pela autorização de filmar. Era a primeira coisa que uma peixeira perguntaria, num mercado, se a estivéssemos a filmar. E a polícia tinha direito de parar as filmagens imediatamente. O regime queria que se falasse das pirâmides, dos monumentos, mas da cidade dos mortos não. E as pessoas na rua tinham medo de falar para uma câmara. Conquistar a confiança foi um processo difícil.
E por isso não filma nenhum funeral?
Não. É por convicção pessoal. Comecei a filmar seis meses depois de a minha mãe morrer e acho que ligar uma câmara no enterro de uma pessoa é uma coisa intrusiva, que não se faz. Era fácil, pagando – os pobres aceitam. Mas mostrei como eram os túmulos, não querendo cair num tom demasiado explicativo, National Geographic...O que eu queria era dar uma dimensão espiritual daquele lugar e daquelas pessoas. E, sobretudo, ultrapassar um tabu que não é só ocidental, pois no Egipto também existe. Para os cairotas, aquilo é uma mancha negra, uma vergonha, foi preciso muito tempo até que se admitisse que era um lugar que existia.
E existe desde quando?
No filme, o narrador explica que começou com o êxodo rural, o Cairo passou de 4 para 20 milhões de habitantes nos anos 60/70. Existe uma tradição antiga, no Egipto, de as famílias virem visitar os mortos, trazerem uma tenda ou construírem uma casinha e virem habitar durante uma semana com os mortos. Inicialmente, aquilo eram habitações temporárias que foram ocupadas,. Mas é apenas uma gota de água face aos subúrbios clandestinos e mal construídos do Cairo, onde a qualidade de vida é muitas vezes pior do que no cemitério. Há outros cemitérios habitados no mundo, nas Filipinas e em El Salvador. No Egipto tem uma característica especial por causa das tradições faraónicas e pré-faraónicas de construir edifícios para os mortos lá viverem. Aquele cemitério tem uma cidade inferior com os subterrâneos onde as pessoas estão lado a lado umas das outras.
Há planos do filme em que nem parece que estamos num cemitério...
A Inês Gonçalves, que fez a fotografia num período do filme, disse-me.” Sérgio, isto é impossível, uma pessoa chega aqui e por nada deste mundo acredita que é um cemitério.” Mas é. Cada casota daquelas é uma casota funerária, cada uma delas tem X mortos enterrados. Se mostrasse aquela realidade de um modo estritamente observacional não se perceberia nada.
Essa é uma das questões que o filme levanta: ao contrário de que acontecia nos seus outros trabalhos, em “a Cidade dos Mortos” o olhar é exterior, não consegue cumplicidade com as pessoas que mostra...
Deixe-me invocar em minha defesa o testemunho de Samir Farid, que é o papa da crítica egípcia e que me disse que nunca foi feito um filme sobre aquela realidade, nem por estrangeiros nem por egípcios. Conseguir que as pessoas no cemitério se abrissem era um dia sim e um dia não – por causa do medo. Mas tive dois ou três aliados de pedra e cal que até tentavam convencer os outros.
Um filme como este tem potencialidade comerciais?
Já circulou em 15 festivais, foi vendido para a televisão sueca, finlandesa, espanhola, o ARTE, mas do ponto de vista comercial não é significativo. Do ponto de vista de comunicação e de divulgação é. A própria Al Jazeera quer o filme e estamos a negociar, porque há uma cena que não autorizo que seja mostrada no Egipto – a cena com os jovens no carro. Foi um acordo que fiz com eles: deixavam-me filmar desde que não fosse mostrado lá. Aquelas histórias das malandrices que podem fazer nos túmulos não é um assunto que queiram que passe na televisão. E nas universidades que têm estudos islâmicos o filme está por todo o lado, dos Estados Unidos a França e a Beirute...
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Jorge Leitão Ramos, Expresso
NOTAS SOBRE A RODAGEM - SÉRGIO TRÉFAUT
Fazer um filme é como travar uma guerra. «A cidade dos Mortos» foi o filme mais difícil que produzi e realizei até hoje. Os desafios e obstáculos diários foram tantos, sobre tantas frentes de batalha, que eu poderia passar dias a contar aventuras surreais… Mas, em jeito de introdução, de uma forma esquemática, aqui ficam as principais frentes de uma longa guerra…
1º OBSTÁCULO: A DISTÂNCIA
Depois de ter concluído alguns documentários sobre universos que me eram próximos (Outro País, Fleurette, Lisboetas), decidi que era o momento certo para tentar o que muitos outros tinham feito ao longo da vida: descobrir e filmar realidades distantes. Mas não parti procurando me enganar a mim próprio. Fui aos cemitérios do Cairo para falar daquilo que me interessa: da relação dos homens com a vida e com a morte, de pessoas de quem gosto e que admiro (e que podem viver em qualquer latitude), da alegria e do entusiasmo que podem ter pela vida, em condições adversas.
2º OBSTÁCULO: A LÍNGUA E OS REFERENTES
Em 2004, quando arranquei este projecto, não falava uma palavra de árabe e nunca tinha vivido em países de cultura muçulmana. Acredito que o modo de pensar de um grupo, seja ele qual for, é indissociável da gramática, da estrutura da língua, da musicalidade, do léxico e hábitos de comunicação. Fui oito vezes ao Cairo, vivi vários meses seguidos na cidade, tive aulas de árabe, dei aulas de documentário, transitei entre várias classes sociais, rodeei-me de egípcios. O lugar onde passei mais tempo foi, naturalmente, no cemitério. Hoje creio ter esquecido o pouco que tinha aprendido da língua, que à época me permitia seguir partes de uma conversa e dar indicações para a rodagem. Em contrapartida, ainda sinto orgulho por conhecer a vida quotidiana nos cemitérios melhor do que a maioria dos egípcios - que só vão lá para funerais e celebrações.
Além da língua, o obstáculo cultural é enorme. Uma pessoa não tem como chegar a um sítio destes e «querer filmar». É todo um longuíssimo e complicado processo.
3º OBSTÁCULO: AUTORIZAÇÕES E CUMPLICIDADES
A primeira pergunta que nos fazem quando falamos em filmar no Cairo é «Do you have a permit?». No Egipto, o sistema burocrático e as autorizações para qualquer coisa são um inferno. Ingenuamente, pensei que as minhas «boas intenções», ou o meu respeito pelas pessoas, longe do sensacionalismo, poderiam facilitar. Afinal eu não trabalhava para uma televisão que vende miséria social. Puro engano. No início, passei semanas ridículas, arrastando-me de repartição em repartição para receber sempre informações contraditórias e inconclusivas. O Embaixador de Portugal, muito simpático e diligente, chegou a escrever cartas a pelo menos três ministros egípcios para apresentar o meu projecto e solicitar autorizações. O Embaixador nunca recebeu qualquer resposta. Esse silêncio, muito egípcio, foi bastante melhor do que uma recusa. Mais tarde, também tive aconselhamento diplomático francês e espanhol. Cheguei a fazer uma pré-selecção de potenciais co-produtores locais, todos eles entusiasmados com a hipótese de entrarem neste projecto e serem o parceiro que legalizaria tudo no Egipto. Nada deu certo. Finalmente abri os olhos e percebi que nunca poderia obter uma autorização para este filme. As autoridades queriam documentários sobre pirâmides e faraós, não sobre cemitérios habitados a respeito dos quais pesam os maiores preconceitos. Além disso, qualquer produtor local que se viesse a envolver corria o risco, durante o reino de Mubarack, de ver a sua produtora fechada.
Após várias tentativas frustradas, voltei ao Cairo, pela quarta vez, acompanhado de um amigo câmara italiano, tão louco quanto eu, e decidi que tinha de conseguir filmar. Em poucos dias fomos adoptados por uma família de coveiros e penetrámos finalmente no universo do cemitério. Nessa viagem filmámos, por exemplo, a travessia da caravana de fantoches no Cemitério Sul. Eu já via aquela caravana de fantoches desde a minha primeira viagem e, pelo menos isso, eu não podia perder! Claro que na primeira noite em que filmávamos uma festa (um mulid), fomos interpelados e proibidos de filmar pela polícia. Mas no dia seguinte recomeçámos. Esse era o ritmo da nossa filmagem. Uma permanente guerra. E passo por cima de milhares de episódios para poder transmitir apenas a ideia de conjunto.
Quando uma pessoa vai à guerra tem necessariamente de encontrar aliados. Nesse campo, o meu assistente de realização, Mohamed Siam, foi exemplar no incansável trabalho de estabelecer uma rede de contactos, visitando diariamente pessoas que viviam a 10 quilómetros umas das outras. Dentro desta rede, havia pessoas que, elas próprias, eram a porta para toda uma comunidade: coveiros, guardiões de cemitérios, sheiks, donos de cafés, guardas do mercado, etc. Mesmo assim, todos os dias sentíamos que a guerra recomeçava. A conquista das personagens era permanente. Às vezes, aqueles em casa de quem almoçávamos num dia, no dia seguinte já tinham receio de ser filmados. As reportagens feitas por televisões sensacionalistas criaram enormes dificuldades ao acesso a lugares como este.
4º OBSTÁCULO: CONCEITO E DRAMATURGIA
A realidade visual do lugar, aos olhos de um ocidental, não lembra em nada um cemitério. Ao chegar ao Cairo, a fotógrafa Inês Gonçalves disse-me imediatamente: ninguém vai perceber que isto é um cemitério! E não nos passava pela cabeça estar a filmar enterros às escondidas. Tinha demasiado respeito pelas famílias para ligar uma câmara no meio de um funeral. Todas aquelas casas tumulares e mausoléus em ruas de terra batida, pareciam de facto uma aldeia deserta de filme mexicano ou de far-west. Para não falar dos mercados apinhados de gente e zona de lojas…. Das ruas cheias de barbeiros…
Assim, percebi que com um filme estritamente observacional sobre o lugar (essa era a minha primeira intenção) nunca chegaria a bom porto e também não conseguiria transmitir aquela diversidade. Passei à segunda hipótese: um filme que seguiria os preparativos de um casal de noivos para o casamento, que decorreria dentro do cemitério e alteraria a vida de dois jovens. Mas, após ano e meio de espera de uma boda interminavelmente adiada, os jovens não chegaram a casar em tempo. Pelo meio do caminho, fui filmando alguns casamentos, para tentar preparar-me e perceber como era… Passei à terceira hipótese: um filme em que alguns habitantes do cemitério, por quem eu tinha maior fascínio, falavam-me do lugar. Por último, hipótese final, percebi que a tudo isto faltava a voz mágica de um coveiro, que falasse com a propriedade de quem sempre viveu ali e que amava aquele lugar mais do que todos os outros.
5º OBSTÁCULO: AS QUESTÕES TÉCNICAS
As câmaras com que filmei estavam quase sempre estragadas, desfocavam a imagem, ou mais tarde eram usadas por uma directora de fotografia habituada a rodar em película, que considerava a câmara de vídeo quase como um brinquedo e, para meu desespero, não colocava o olho no visor… Assim, uma parte muito importante dos rushes deste filme têm problemas de definição. Esse problema veio ainda a agravar-se quando se perderam inesperadamente uma parte dos originais do filme, e apenas ficou o material digitalizado em final cut. Parecia um filme amaldiçoado. Por vezes pensei em desistir, como tantos realizadores que tentaram filmar esses cemitérios. Mas já tinha ido longe demais. E os contratos de produção, o tempo e a energia investidos, obrigavam-me a finalizar um trabalho. Se hoje levo o filme às salas de cinema é sobretudo pelo interesse antropológico, humano e filosófico. Foi esse mesmo interesse, acredito, que permitiu ao filme ser exibido em vários festivais internacionais e televisões.
Realização: Sérgio Tréfaut
Montagem: Pedro Marques
Narração: Ashraf Fakhouri
Fotografia: Nancy Abdel-Fattah, Inês Gonçalves, Carlo Lo Giudice
Som: Sameh Gamal
Origem: Portugal
Ano: 2010
Duração 63’
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