HABEMUS PAPAM MORETTI - 2ªf, 21h30, IPJ.

sócios 2€, estudantes 3,5€, restantes 4€
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Antes dos psicanalistas invadirem as cidades tomadas pelo stress, as pessoas resolviam os seus problemas psicológicos de joelhos em frente a um padre. No confessionário ou no divã, de forma mais profunda ou superficial, moralista ou científica, libertadora ou temerosa, bem paga ou económica, o objetivo é a libertação da culpa e a regeneração do indivíduo. Mas, de alguma forma, o confessionário e o divã competem entre si e opõem-se mais do que se complementam, assim como acontece em geral com a religião e a ciência. Talvez o padre seja um psicanalista empírico e tradicional, e o psicanalista um padre sem batina e amoral. Mas qualquer comparação do género pode-se revelar ofensiva para ambas as classes, embora pareça óbvio que teriam toda a vantagem em comunicar.

Em Habemus Papa, Nanni Moretti, um ateu praticante, diverte-se com o Vaticano e tudo aquilo que tem de mais absurdo, exibindo não raras vezes o ridículo das suas normas e preceitos. Mas dificilmente será acusado pela Igreja com provas palpáveis, porque o filme não vai contra qualquer dogma ou regra elementar católica ou, se o faz, é de forma suficientemente subtil para que possa ser explicado com clareza. Seria fácil ao realizador de Palombella Rossa ridicularizar explicitamente alguns aspetos da Igreja de Roma, como o sacerdócio das mulheres, o uso do preservativo, a riqueza ostentada pelo Vaticano, o seu regime absolutista, mas de forma inteligente evita esses pontos centrais, para contar uma história em torno da eleição do Papa e assim torna-se ainda mais eficaz e assertivo. Aliás, o 'folclore' ritualista medieval não necessita de qualquer caricatura, basta a cerimónia fúnebre mostrada no início do filme.

O ponto mais sublime a que consegue chegar é dar a vitória da psicologia sobre a religião, ou pelo menos sobre aquela religião, colocando a figura do psicanalista, desempenhada pelo próprio Moretti, num patamar superior, perante um colégio episcopal psicologicamente débil que sofre, no mínimo, de um défice parental.

O mundo do Vaticano que se nos apresenta é frágil, ingénuo e absolutamente infantil. Moretti faz daqueles cardeais um grupo de homens bizarros, afastados do mundo real, que foram privados de brincar na infância e que agora têm comportamentos ingénuos e sobretudo uma sede de realidade.

Tudo isto a propósito de um Papa que tem um surto depressivo no momento em que é eleito e recusa-se a assumir o 'cargo'. O que aparentemente é simples, na Igreja Católica assume outra proporção, pois apesar da eleição ser feita pelos cardeais, é entendida como um desígnio divino pelo que, ao mostrar um Papa não preparado para o ofício, é desafiada a existência ou eficácia do próprio Deus. É assim que Nanni Moretti, de forma subliminar, sem entrar por uma euforia anticlerical, não abordando sequer os pontos mais polémicos, derrota este Vaticano enquanto nos diverte com um filme hilariante.

Michel Piccoli que, em Um encontro Único, de Manoel de Oliveira, fez de Khrouchtchev, contracenando com João Bénard da Costa, que fazia de Papa João XXIII, agora é ele próprio o Papa que não quer ser Papa, com o qual facilmente nos identificamos e tem mais características humanas do que divinas, como se querem os homens. Habemus Papa é um filme sobre um homem que não queria ser Deus.
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Manuel Halpern, Visão


“Habemus Papam” é a forma (até agora) mais feliz de Moretti aprender a existir com os outros

Houve um momento - toda uma primeira parte da obra “morettiana”, via “persona” Michele Appicella ou através de outra construção dele próprio, Nanni - em que a energia de um filme era um monopólio detido apenas por alguns dos planos: os grandes-planos sobre Moretti. Era(m) ele(s) que a continha(m) e que a libertava(m). Os filmes, por isso, tinham de regressar sempre a ele. Que, intolerante, controlava os outros. Os filmes existiam numa espécie de estado policial. Vêem-se, ainda, em estado de tensão.

É claro que havia nisto, nesta aparente incapacidade de permitir que os outros existissem, um jogo auto-irónico, de massacre com a sua própria geração, com um passado político rasurado pela amnésia (é em “Bianca”, filme de 1984, que a personagem Michele Apicella, tornado “serial-killer” a golpes de misericórdia porque não suporta a infelicidade dos outros, conta que houve um Verão em que veio a Portugal para conhecer Otelo Saraiva de Carvalho, mas já não se lembra...).

Houve a doença de Moretti, o fluxo liberatório diarístico (“Querido Diário” e “Abril”), mas foi ao filme pelo luto do filho, melodrama de onde tinha sido excluída qualquer auto-ironia, que foi permitido fazer figura de intruso ou de página que se virava. Depois dele, e cinco anos depois, Nanni enchia “O Caimão” de géneros e registos (a comédia sentimental, o musical, o “filme dentro do filme”) parecendo procurar novo centro de gravidade. Como que testando novas figurações mas receando pelas perdas, acumulava hipóteses e fontes de energia, de tal forma que a coisa cedia e o “golpe de teatro” final - o próprio Nanni como Silvio Berlusconi - era estocada gongórica.

“Habemus Papam” é a forma (até agora) mais equilibrada de Nanni aprender a existir com os outros. Distribuindo-se pelos outros. É o filme em que um Papa (Michel Piccoli) eleito em conclave não consegue abeirar-se sequer da varanda da Basílica de São Pedro para saudar os que têm fé. Foge, deambulando anonimamente por Roma.


Não é inédito: o padre Nanni dava por encerrado o ritual, em “A Missa Acabou” (1985), partindo para a Terra do Fogo por concluir que ninguém precisava dele. Mas esse padre, de ambições ainda totalitárias, podia ser outra coisa qualquer. E o filme nem era sobre a Igreja Católica. Era a crónica de uma geração que se esqueceu. Já Piccoli, como Cardeal Melville, é um Papa em perda, acometido da angústia paralisante de que o seu sacerdócio para nada serve. As luzes apagaram-se, a realidade já está ao longe, os cardeais encerrados num conto de fadas. Às escuras, como os anões sem Branca de Neve e sem Rainha Má - já nem há inferno, só há deserto.

Um psicanalista (Moretti) é chamado para tratar deste pânico papal. A princípio causando dúvidas no Vaticano a aproximação do inconsciente à fé, as duas visões acabam por ficar reféns do mesmo jogo - o psicanalista fica condenado a organizar um torneio ecuménico de voleibol com os assustados e suspensos cardeais. O Vaticano como cenário para um burlesco emudecido - há diálogos, mas a coreografia entre planos e cenas podia prescindir deles, pelo desejo de silêncio de “Habemus Papam”. A ele, ao Papa de Piccoli, a liberdade com a dúvida gloriosa. Neste filme de um ateu que foi criado por católicos, a psicanálise (Moretti e a tentação ditatorial da sua “persona”) é mais maltratada do que a Igreja. O realizador não se deixa prender pela episódica “realidade”, suspende-a - passa ao lado de denúncia de escândalos de pedofilia ou de polvos financeiros, por exemplo.


Enche-se de uma ternura humanista que em momentos temos a tentação de chamar “rosselliniana” (por causa de “Francesco, Giullare di Dio”). Nesse equilíbrio com os outros, Moretti permite que com Piccoli entre Manoel de Oliveira para o seu filme. Quando Piccoli, respondendo a uma psicanalista, diz que foi em tempos actor, tanto está a falar dos rituais de teatralidade no Vaticano como do filme de Oliveira em que ele, como actor, desistia e ia para casa. “Je Rentre à La Maison” (2001) não está aqui, contudo, como citação cinéfila, coisa estranha em Moretti. Está como mais mundo. Como uma contiguidade de que o cineasta hoje precisa. A dúvida liberta.
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Vasco Câmara, Público



Realização: Nanni Moretti
Argumento: Nanni Moretti, Francesco Piccolo e Federica Pontremoli
Música: Franco Piersanti
Direção de Fotografia: Alessandro Pesci
Montagem: Esmeralda Calabria
Interpretação: Nanni Moretti, Michel Piccoli, Jerzy Stuhr, Renato Scarpa, Franco Graziosi, Camillo Milli,
Roberto Nobile, Ulrich von Dobschütz, Gianluca Gobbi

Origem: Itália
Ano: 2011
Duração: 102'

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