Com Kaurismäki o cinema ainda pode mais do que a vida.
Fartas de acabar os filmes feitas num oito, as personagens de Aki Kaurismäki passam à acção. Era assim, feito num oito, que tínhamos deixado o último protagonista de Kaurismäki, o Koistinen de “Luzes no Crepúsculo”, filme final de uma designada “trilogia dos perdedores”. Em “Le Havre” começa outra trilogia, ainda e sempre o modo de funcionamento preferido de Kaurismäki, que (em princípio) nos levará a várias cidades portuárias - depois deste começo nortenho, a ideia é seguir para sul. Para além da mudança de ambiente (longe de Helsínquia e da Finlândia), que não é inédita em Kaurismäki e lhe permite abrir o discurso (em “Le Havre” é evidente que ele fala da Europa, a dele, a nossa, a que todos os dias nos encanta), a julgar por este primeiro momento da nova trilogia a grande novidade a esta: a “kaurismakilândia” (segundo a imbatível expressão de Peter von Bagh), feita de excluídos e de párias com pouco dinheiro nos bolsos mas muita nobreza no carácter, “strikes back”.
Conheçam, portanto, o casal Marcel (André Wilms) e Arletty Marx (Kati Outinen). Têm nomes fabulosos, na justaposição do apelido de Karl a nomes próprios que reenviam para o cinema francês, popular e até “proletário”, dos anos imediatamente antes e depois da II Guerra (também há um Dr. Becker, interpretado por Pierre Ètaix), sendo óbvio que, depois de anos a inventar Jeans Gabins finlandeses (Matti Pellonpaa, Marko Peltola - ambos prematuramente mortos), Kaurismäki encontra em Wilms um Jean Gabin francês. Que vem, aliás, de um filme com 20 anos (“La Vie de Bohème”), retomando a mesma personagem, agora “assentada” no Havre, numa vida que não deixa de ser de “boémia” (uns biscates, muito bar, muito álcool, muita música) embora numa escala mais modesta. Está Marcel Marx na pacatez da sua existência quando dois acontecimentos, praticamente simultâneos, o vão desinquietar e obrigar a tomar medidas: cruza-se com um miudo africano, Idrissa, e o seu cão (como em “Luzes no Crepúsculo”, mas aí o miudo africano e o cão eram apenas testemunhas, testemunhas da miséria da vida numa sociedade moderna, “evoluída”), e a mulher adoece gravemente. Entre as visitas ao hospital - o pudor daquela relação, a história dos vestidos e dos presentes, é uma coisa fantástica - Marcel decide-se a ajudar o jovem Idrissa a escapar à sanha das brigadas anti-imigração clandesita e a cruzar a Mancha, para ir ter com a família imigrante em Inglaterra. E, basicamente, é isto.
Mas “isto” sucede num mundo que Kaurismäki pinta em tons idealizados. É a pequena comunidade, o “bairro”, solidário e caloroso por uma questão de princípios e valores, uma espécie de “bolsa” que existe na fronteira com a sua própria mitologia (também, obviamente, um mitologia de cinema: é por aí que Kaurismäki reencontra o cinema francês clássico). A chegada de Idrissa pressupõe a chegada de outros sinais de “modernidade” e, sobretudo, de outros valores incompreensíveis e inaceitáveis - como Idrissa, antes de ser outra coisa qualquer (um imigrante clandestino, por exemplo), é um ser humano, não é surpresa que todo o bairro se mobilize para o ajudar a fugir (como, e há uma cena que praticamente o explicita, num filme de Melville sobre a Resistência). Recorrendo às manigâncias mais extraordinárias, como um “concerto de beneficência” para angariação de fundos, ocasião para o “come back” de Little Bob, um inacreditável rocker local (aparentemente autêntico). À riqueza das personagens que estão do lado certo contrapõe Kaurismäki a silhueta simples dos opositores: Jean-Pierre Léaud, o delator, que aparece meio cambaleante e faz lembrar o “Cordelier” de Renoir, e os polícias que perseguem Idrissa, filmados sempre em bando, a correrem de um lado para o outro (uma espécie de Keystone Cops em estilo Sarkozy). E depois, a personagem ambígua do inspector Monet (Jean-Pierre Darroussin), vestido de negro como um vilão de western ingénuo, mas finalmente merecedor da humanidade que Kaurismäki lhe reconhece (a cena do ananás, no bar, é prodigiosa).
Neste mundo “de cinema” - a fotografia de Timo Salminen faz o milagre habitual: recupera uma luz de estúdio, totalmente em desuso, a aplica-a mesmo às cenas de exteriores - o cinema ainda pode mais do que a vida. É o mais optimista dos filmes de Kaurismäki em muitos anos, mesmo se, por todas, se trata de um optimismo “de fábula”. Há, portanto, lugar para o milagre. E depois do milagre vem o “tempo das cerejas” (como os tangos de Olavi Viirta e de Gardel, um velho favorito da “juke box” de Kaurismäki), e o “plano-ozu” que nunca falta num filme de Kaurismäki: uma cerejeira enquadrada, em leve contra-picado, contra chaminés e cabos eléctricos. É tão belo que dá vontade de chorar. E se não houver cerejeiras no Havre, tanto melhor.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
O cinema de Aki Kaurismäki é uma máscara de optimismo que nos avisa que o mundo não é como nos filmes. Mas teremos sempre os filmes.
Há 20 anos, Aki lembra-se, ainda se podia fumar numa sala de conferência de imprensa do Festival de Cannes. Hoje já não, e foi precisa uma pantomima digna de Chaplin para lhe tirar o cigarro da boca. Acendeu um, tirou outro... "Os tempos mudaram, eu é que continuo na mesma." Por isso é que Le Havre é um porto de abrigo, porque há coisas que não mudam nos filmes do cineasta finlandês: aquele fingimento de optimismo e de happy end quando a coisa está negra, a autoparódia como consolo (e aviso: tudo isto só existe em cinema), os silêncios e as cores garridas em cenários de outro tempo já que o passado é o local favorito de Aki Kaurismäki e a sua câmara de filmar, que é de 1974 e pertenceu a Ingmar Bergman, "não gosta de arquitectura moderna".
Por isso teve de procurar muito em Le Havre, passar para lá da zona moderna da cidade da Normandia que foi bombardeada na II Guerra Mundial, e descobrir ruelas e recantos do passado que pudessem ser suficientemente artificiais como uma reconstituição em estúdio. Coisa pouca, umas porcarias, como diria um dos actores do filme, Jean-Pierre Darrossin, mas com elas Kaurismäki faz todo um mundo; o que faz dele o oposto de um político, que com o mundo só faz porcarias (ainda Darrossin). Uma questão de moral, portanto. Com realismo poético francês dos anos 30, René Clair e Carné, e ainda, e como sempre, o burlesco de Tati, e o marxismo, mais de Karl do que o dos irmãos, e estamos servidos.
André Wilms, que aqui se chama Marcel Marx, interpreta um homem com os olhos tristes da derrota mas um optimismo de outro mundo. Que, como todas as personagens do realizador, usa como uma máscara de dignidade. Deixou a vida de boémia (e Wilms fez para Aki, em 1992, La Vie de Bohème), os seus sonhos, arrumou os sapatos e remeteu-se aos sapatos dos outros. Ganha (mal) a vida como engraxador. A mulher, Arlety (que outro nome poderia ter Kati Outinen nas brumas de uma cidade portuária?), adoece, um cancro. No momento em que em Le Havre desembarca um miúdo, refugiado africano, que quer chegar a Londres.
Aki diz que não tem respostas para a "crise financeira, política e sobretudo moral que originou a sempre por resolver questão dos refugiados" na Europa. Le Havre não é filme de respostas e é seco como um carapau se se procura discussão de "tema do dia". Mas fala-nos de outras maneiras e por todos os lados, apesar de ser quase sempre mudo, e sempre para nos dizer que o mundo é feito ao contrário daquilo que o filme mostra, com os silêncios, com as cores e com os cenários e não só com os (poucos) diálogos dos actores. Que falam em francês, língua que Aki Kaurismäki não domina, mas isso nunca foi problema. Como Aki disse em português (tem casa e passa parte do ano num canto esquerdo da Europa): “Em Portugal costumamos dizer: "Posso ser burro, mas não sou estúpido."”
Em Cannes por estes dias são todos Aki. Le Havre foi um dos filmes mais aplaudidos do concurso.
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Vasco Câmara
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Com o dedo em riste com cuspo, Aki Kaurismaki sabe por onde anda o vento no terraço da Fundação de Serralves. Não tendo ainda investigado um espaço que desconhecia, continua a suspeitar do formato "arquitectura moderna". "Se calhar, sou uma dessas pessoas que resistem ao progresso."
Há 20 anos que o finlandês está entre nós. Chegou nos anos 80 a Viana do Castelo com um Cadillac de 1962 e cabelo comprido até ao rabo. Aceitaram-no. O país já não era a utopia que um amigo descobrira num interrail em 1971. Mas ainda era suficientemente antigo. "Agora é demasiado moderno."
Ainda aqui está. E ainda considera os portugueses "insondáveis". Por isso andou com pouca convicção pela costa portuguesa à procura de uma cidade portuária para rodar o seu filme - com pouca convicção por causa desse lado insondável e porque diz conhecer pouco cinema português. Parou na costa francesa, Le Havre. É esse o porto de abrigo. Para um miúdo africano que dá à costa e que Marcel Marx, ex-boémio, agora engraxador (é a conexão portuguesa) e em busca de redenção, vai conseguir safar no espaço europeu. E um porto de abrigo para o espectador: os tempos mudam, Aki continua com aquele fingimento de optimismo e de "happyend" quando a coisa está negra (assim vai a Europa, em tempos de crise financeira e moral), uma nobreza feroz.
Numa entrevista, disse que uma das ideias para a personagem interpretada por André Wilms foi um engraxador português.
Tinha a ideia de um homem que vê um rapaz na água e decide ajudá-lo. Mas não sabia que tipo de homem era: rico, pobre, classe média, operário - e, sendo assim, que tipo de operário? Demorei quase um ano a encontrar isso, porque hoje sou mais lento do que era e porque ao mesmo tempo estava à procura da cidade onde filmar. O Porto era perto [de onde vive, Viana do Castelo], não queria filmar no Porto porque, ao fim de vinte anos, ainda não sei o que está dentro da cabeça portuguesa...
... já disse que os portugueses eram "insondáveis"...
E não sei o que está dentro da cabeça portuguesa. E ninguém sabe. Alguém escreveu que vocês parecem muito calmos, mas dentro há um vulcão.
Poderia dizer-se isso dos finlandeses: insondáveis...
Pelo menos os "yankees" não são insondáveis, sabemos todos o que eles querem.
Como dizia, estava à procura da cidade para filmar, mas não conseguia deixar de escrever e tinha esta incógnita sobre este homem. E um dia encontrei um engraxador em Viana. Engraxei os sapatos, que já estavam brilhantes... Decidi que a personagem iria ser engraxador, obviamente. Ele pediu três euros, eu dei-lhe vinte. "Não, é demasiado", disse. "Não, não, é muito pouco", disse eu. Ele até tinha um cão, até roubei isso [para o filme].
A minha mulher exigiria que a personagem tivesse um cão, de qualquer maneira, até porque um dos nossos cães ainda não tinha sido actor. Ao terceiro dia de escrita de argumento, ela já estava a perguntar: "Há papel para o cão?". Respondi-lhe: "Já está escrito".
É o seu quarto filme com André Wilms... A personagem, MarceI Marx, é uma continuação do MarceI Marx de "La Vie de Bohème" [1992]? É como se a experiência que ele atravessa em "Le Havre", o encontro com o miúdo africano refugiado, lhe permitia uma expiação por pecados antigos... Não sei se "redenção" é palavra para si...
Bem, é o mesmo homem. Tem o mesmo nome. Há um momento em que ele diz ao rapaz: "eu fui jovem em Paris..." e também que o "sucesso como escritor foi apenas artístico", ou seja, sem dinheiro. Claro que, sendo eu preguiçoso, ajudou-me a pensar que, tendo já esta personagem, só precisava de inventar o resto. Mas, sendo o mesmo homem, o que lhe aconteceu entre "La Vie de Bohème" e este filme eu não sei. O André [Wilms] não sabe. Há uma altura em que ele diz à proprietária do bar que a mulher o salvou quando ele estava na sarjeta. Obviamente ele bebia de mais e chegou ao desespero na sua tentativa de furar por entre as guerras dos editores. Na altura de "... Bohème" [argumento baseado em "Scènes de la vie de bohème" , de Henri Murger] sempre que pensava sobre actores e personagens, eles eram os Três Mosqueteiros e André sempre foi para mim Athos, alguém que no livro era aquele que mais pensava antes de agir.
Estando num país estrangeiro, com uma língua estrangeira e numa cidade estrangeira [Le Havre, França], foi importante ter alguma coisa [a que me ancorar]. De outra forma, ter-me-ia esquecido da personagem de "... Bohème" .
E gosto de me divertir quando escrevo. Pondo coisas para mim próprio. Para as pouco pessoas que viram "La Vie de Bohème" talvez possa ser interessante. Não sei. Desde que não prejudique a história. Como sou produtor de mim próprio... quem sabe, talvez alguém possa querer ver "La Vie de Bohème" e eu ganhe mais alguns escudos.
Há um molde para as personagens de Aki Kaurismaki? Há "actores à Aki Kaurismaki?" Isso já se reconhece antes de eles entrarem nos seus filmes ou tornam-se "actores de Kaurismaki" porque os transforma?
Parece que transformo os actores, porque os impeço de interpretarem - demasiado. Eu não deixo os meus actores gritarem, rirem-se ou correrem. Digo-lhes sempre: "Expressem tudo o que quiserem com a sobrancelha esquerda, mas é tudo". Dois dias depois, eles cansam-se e eu tenho o que quero.
O que é que viu em André Wilms, na primeira vez?
É como um clube para cavalheiros sem muitos membros. Conheci-o em Paris, não conhecia actores franceses. Um amigo perguntou-me se eu queria encontrar-me com ele. "É bom?" "Sim." "Tem um nariz comprido?". "Sim". "Ok, encontremo-nos". Encontrámo-nos num café, apertámos a mão e disse-lhe: "Está contratado". "Para quê?". "Vamos discutir isso agora". Foi ódio à primeira vista [risos].
Ele retribui: diz que não gosta de realizadores, a não ser de Aki Kaurismaki. Nova trilogia, esta, iniciada com "Le Havre" ...
... Digo sempre isso, que é uma trilogia. Talvez faça o filme seguinte, mas só daqui a cinco anos. Até lá, tenho uma curta a fazer para Guimarães [Capital da Cultura] e não farei mais nada depois porque tenho de cuidar do meu jardim.
Sou tão preguiçoso, só me apetece deitar e ler, que tenho de criar esse dispositivo da trilogia para me forçar.
O "happyend" em "Le Havre" é político? Está confortável com isso do "político"?
Conheço suficientemente os espectadores para saber que vão ao cinema para se entreterem. E não para receberem lições. Um filme político terá de ser um documentário. Introduzir as nossas opiniões numa ficção não funciona. Talvez só interesse a cem pessoas, aquelas que queiram mais alguma coisa [de um filme]. Se alguém me disser que o banco em que me sento é político, eu digo que é apenas um banco. Mas gentilmente tento, enquanto divirto as pessoas, que elas vejam que há este problema hoje no meio de nós, todos os dias e sempre, e que as pessoas que vemos nas ruas não estão a ser bem tratadas pela gloriosa Europa. Pelo contrário, estão a ser muito maltratadas pelos governos. E não acredito de forma alguma na conversa dos políticos. Porque é por isso que eles são políticos. Não compraria um carro novo a um político.
Mas quando faz um filme assim, como fábula, não é isso já político?
Sim, mas espero que de forma escondida.
Como se o filme nos estivesse permanentemente a acordar para o facto de que histórias como esta resolução, com milagrosos "happy end", só acontecem nos filmes.
Os milagres também acontecem na realidade... Diverte-me a ideia de que se qualquer filme pode ter um "happy end", que tal se houver dois?
A política é uma chatice, excepto para as pessoas que querem poder. E o poder e o dinheiro estão sempre de mãos dadas, o que toma a política a alto nível qualquer coisa de sujo. Não a política a nível municipal, que trata das nossas coisas comuns. Mas, quando chegamos ao topo, há sempre um compromisso entre o que deve ser feito e a lealdade para com as pessoas que deram dinheiro para essa subida ao poder.
O filme passa-se hoje...
Em 2007, porque se pode fumar nos cafés...
Mas podia ser um filme dos anos 30, francês. E na sua dimensão abstracta convoca, também, o Holocausto. Pensou nisso, em trabalhar uma certa intemporalidade que abrisse o filme a intromissões?
Sim, mas não é a minha função analisar isso. Pensei num tema, em locais para filmar, e escrevi tudo numa semana. Não sei o que meti na panela; certamente o meu subconsciente, tudo o que li e os filmes que vi. Mas não quero analisar excessivamente, sinto que estraga alguma coisa.
Mas é verdade que não acredito em filmes que não tenham nada a dizer. Não são cinema. São apenas "entertainment". O que é OK para os domingos de ressaca à tarde, por que não?
É um filme sobre refugiados, e claro que não falo apenas dos refugiados de hoje na Europa. São os refugiados em todo o lado e em geral. E a Europa na II Guerra estava cheia de refugiados... Não tinha pensado nisso até ter mencionado.
Por onde andou à procura de cidades, antes de escolher Le Havre?
Pela costa italiana, Sul de França, Espanha, costa portuguesa, mas passei por Lisboa sem parar. Não consigo filmar em Portugal.
Já conheço muitos filmes franceses, sei como é que os actores devem falar.
Devia ver filmes portugueses...
Vejo sempre que posso. O meu português não é muito bom. Vi "Aniki Bobó" [Manoel de Oliveira]. E "Maria do Mar" [Leitão de Barros]. E filmes de Pedro Costa. E João César Monteiro. Mas não posso dizer que conheço o cinema português.
É curioso que fale em Pedro Costa. Em "Colossal Youth", ele colocou as personagens, uma delas, Ventura, num museu, como se erigisse um pedestal de dignidade. A sequência, no seu filme, em que se abre o contentor com refugiados lá dentro contraria as expectativas supostamente "realistas" - nada a ver com pessoas mal vestidas, nada a ver com sujidade... Não é por acaso que as filma assim.
Quando escrevi, havia alguns mortos na cena. Mas perguntei a mim próprio: "Porquê?" E fintei a lógica. Eles estão a ir para uma nova vida, levam as suas melhores roupas vestidas. Os povos africanos são sempre muito limpos. E passei por cima do problema de estarem dentro do contentor há duas semanas. Vamos mostrá-los tão orgulhosos como os africanos são.
Para contrariar uma figuração...
Fui contra o "realismo maltrapilho", livrei-me do naturalismo, do realismo que toda a gente agora tenta. Contra Victor Hugo. Não todo, mas o dos "Miseráveis” ...
Por que é que escolheu o Havre?
Por preguiça, era mais fácil filmar em França. Falo algo de francês, percebo o que eles dizem. E gostei porque, durante a II Guerra, Le Havre foi totalmente bombardeada pelos aliados - não pelos alemães -, numa manobra de diversão para fintarem a invasão que preparavam. As pessoas ainda não esqueceram isso. Mesmo as que não tinham nascido. É gente orgulhosa, que não gosta especialmente do centro do poder, Paris. Senti logo isso. E tem uma luz espantosa, uma luz branca. Muitos pintores foram para lá pintar. Gostei, e não sou um grande visualista. Mas gosto da luz. E é uma cidade boa para produzir filmes - é o produtor em mim que fala - porque a largura das ruas, ruas do pós-guerra, é suficiente para os camiões com equipamento eléctrico...
As pessoas disseram-me que era a cidade mais chata do mundo, que era cinzenta e feia, que ninguém ia lá. Pois eu vou. Ninguém vai lá por acaso ou de passagem, é preciso querer ir lá. E se era uma cidade suficientemente boa para Marcel Carné ["Le Quai des Brumes"] e Jean Vigo ["L'Atalante"], é boa para mim.
E, tal como outros espaços dos seus filmes, recusa-se a dizer "hoje".
A arquitectura moderna desagrada-me intensamente...
É sempre uma luta contra o tempo quando filmo. Os "caterpillars" estão invariavelmente atrás de mim. Estão sempre a querer demolir a área em que estou a filmar. Temos sempre que lhes pagar para nos darem uma semana mais de rodagem antes da demolição total. Tem sido sempre assim na minha vida. Tudo o que filmo não existe depois. Deve ser por alguma coisa de que gosto.
Como filmar em cubos modernos, que é o que se chama hoje arquitectura? E é um erro pedir a arquitectos que façam cubos nos sítios em que há chuva. Deviam fazer um telhado. Deve haver problemas aqui com a água. Mas não tive tempo ainda de investigar, isto não parece assim tão mau... Quando as pessoas têm algum dinheiro fazem as suas casas como cubos, cheias de pormenores, mas acabam por não se enquadrar na área... e não parecem muito funcionais.
Tudo nos seus filmes remete para um mundo que acabou ou está à beira de acabar.
Se calhar, sou uma dessas pessoas que resistem ao progresso. Também não gosto de carros modernos, acho-os feios. Para mim, as coisas poderiam ter acabo em 1962, ou com a invenção da de penicilina - e digo 1962 porque o meu Cadillac é de 1962.
Foi por isso que escolheu viver em Portugal, há 20 anos, porque era um país que parecia viver no passado?
Quando vim para cá, em 1989, era de facto um país que vivia no passado. Agora é demasiado moderno. Para além dos táxis, o meu era o único carro em Viana do Castelo. E era um Cadillac de 1962. Tinha cabelo até à cintura, 30 anos, as pessoas perguntavam: "O que é aquilo?". Mas eram gentis, e aceitaram-me.
Claro que o progresso traz coisas boas, mas traz também o consumismo. Para quê ir ao supermercado e encontrar seis mil tipos de iogurte se cinco ou seis chegam? Tenho pena de não ter estado aqui em 1971. Um dos meus amigos veio cá em interrail, passou por Viana do Castelo, adorou Portugal, e viu coisas que nunca vi. Antes dos anos 80, pouca coisa tinha mudado aqui em 300 anos. Na Finlândia, o progresso começou nos anos 60 e foi lento. Aqui começou nos anos 80 e foi rápido.
Há coisas semelhantes entre portugueses e finlandeses?
Sim. Nós temos a melancolia, vocês têm a saudade. A melancolia finlandesa é quase a saudade portuguesa, mas não totalmente. Só os portugueses podem saber o que é. Ontem estive a tomar café. Dois homens estavam em pé, a olhar para o mar. Num deles consegui ver nos olhos a saudade. Durante meia hora. Depois voltaram ao trabalho. Acho que era saudade. O máximo que consegui chegar dela. Conheciam-se, claro. Não se falaram praticamente. Dois metros de distância entre eles.
Podia ser um filme de Aki Kaurismaki.
Os meus filmes agora estão cheios de diálogos.
A propósito: na relação entre a personagem de Wilms e da mulher, há um protocolo, o respeito pelo espaço do outro.
É muito finlandês. Gosto, em França, que a equipa parta para o almoço de¬pois de se beijar, depois regresse e todos se beijem outra vez. Mas fico embaraçado. Beijam-se de manhã, ao almoço, à noite... Os finlandeses têm problemas em dizer "olá" de manhã. Deve dar uma média de 180 beijos, ou seja, tira 4 minutos ao tempo de trabalho. Contando com o regresso, tira oito minutos...
É mais do que contabilidade: há coisas que acha que não deve filmar.
Claro, os finlandeses também beijam as mulheres. Mas não em público. O cinema é uma coisa pública, lá no grande ecrã. As coisas privadas devem manter-se privadas. Estou a falar do cinema real, que se mantém fora do sexo e da violência. Foi assim que fizeram Buñuel e Renoir, sou da velha escola.
E Ingmar Bergman?
É um caso especial. Falemos, antes, de Dreyer. Nem deixava os actores olharem uns para os outros. Senta¬dos ao lado um do outro e a olharem em frente. Nos meus filmes ao menos eu deixo os meus casais olharem-se.
Falei em Bergman porque filma com a câmara de Ingmar Bergman...
Já filmei vinte filmes com essa câmara, e Bergman aparentemente filmou apenas três. Comprei-a depois de "Fanny e AIexander", quando ele vendeu as suas coisas. É a minha câmara agora, que Bergman reste em paz.
Por que é que o considera especial?
Quem diz que gosto de Bergman?
Acho que gosta.
Gosto muito até "Through a Glass DarkIy" (1961). Depois disso não gosto especialmente.
Nem de "Lágrimas e Suspiros"?
Não, demasiado artístico. Gosto quando ele conta histórias, por exemplo "Morangos Silvestres". Fez muitas obras-primas. Admiro-o mais do que o amo.
Se tem a câmara dele não tem a câmara de outros realizadores.
Gostaria de ter a câmara de Raoul Walsh, mas era um homem do estúdio, não tinha câmara própria. Apesar de ter filmado os meus últimos 15 filmes com a câmara de Bergman, acho que nada passou dele; através da câmara, para os meus filmes. Era também a câmara de Sven Nykvist. É uma bela câmara.
O que está a filmar para Guimarães?
Ainda não tenho argumento. Guimarães produz cinco filmes de 15 minutos cada, Godard, Oliveira, Victor Erice, Pedro Costa e eu. Há um tema, "Memória da pedra", mas somos livres e de qualquer forma tudo o que se filmar numa cidade portuguesa terá sempre a ver com pedra.
Que filmes vê?
Não diga nada a ninguém, mas a última vez que comprei bilhete para um cinema foi em 1986, para um filme de Rohmer, "A Mulher do Aviador". Depois mudei para o campo e não havia cinema. Nesses dias fazia filmes rapidamente, três por ano. À noite estava tão cansado que não aguentava ir ao cinema. E era um fumador invetera¬do, não podia fumar na sala. Hoje tenho uma sala em casa e avanço para trás. Neste momento, estou entre Griffith e Méliès.
Viu "O Artista", supostamente um filme mudo?
Não, não vi. Ouvi falar. Sim, "supostamente". Por que é que devia ver? Já fiz o meu filme mudo ["Juha"]. Daqui a dez anos, talvez o veja. Quando toda a gente está a ir ver um filme, acho que deve haver algo errado. Há excepções. “Voando Sobre um Ninho de Cucos” ainda é um bom filme. Vamos aguentar uns cinco anos a ver se [“O Artista”] ainda é bom. Mas avanço para trás, 100 anos. Prefiro qualquer filme de Laurel e Hardy a tudo o que se fez em Hollywood depois
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Vasco Câmara, Público, 17/2/12
Fartas de acabar os filmes feitas num oito, as personagens de Aki Kaurismäki passam à acção. Era assim, feito num oito, que tínhamos deixado o último protagonista de Kaurismäki, o Koistinen de “Luzes no Crepúsculo”, filme final de uma designada “trilogia dos perdedores”. Em “Le Havre” começa outra trilogia, ainda e sempre o modo de funcionamento preferido de Kaurismäki, que (em princípio) nos levará a várias cidades portuárias - depois deste começo nortenho, a ideia é seguir para sul. Para além da mudança de ambiente (longe de Helsínquia e da Finlândia), que não é inédita em Kaurismäki e lhe permite abrir o discurso (em “Le Havre” é evidente que ele fala da Europa, a dele, a nossa, a que todos os dias nos encanta), a julgar por este primeiro momento da nova trilogia a grande novidade a esta: a “kaurismakilândia” (segundo a imbatível expressão de Peter von Bagh), feita de excluídos e de párias com pouco dinheiro nos bolsos mas muita nobreza no carácter, “strikes back”.
Conheçam, portanto, o casal Marcel (André Wilms) e Arletty Marx (Kati Outinen). Têm nomes fabulosos, na justaposição do apelido de Karl a nomes próprios que reenviam para o cinema francês, popular e até “proletário”, dos anos imediatamente antes e depois da II Guerra (também há um Dr. Becker, interpretado por Pierre Ètaix), sendo óbvio que, depois de anos a inventar Jeans Gabins finlandeses (Matti Pellonpaa, Marko Peltola - ambos prematuramente mortos), Kaurismäki encontra em Wilms um Jean Gabin francês. Que vem, aliás, de um filme com 20 anos (“La Vie de Bohème”), retomando a mesma personagem, agora “assentada” no Havre, numa vida que não deixa de ser de “boémia” (uns biscates, muito bar, muito álcool, muita música) embora numa escala mais modesta. Está Marcel Marx na pacatez da sua existência quando dois acontecimentos, praticamente simultâneos, o vão desinquietar e obrigar a tomar medidas: cruza-se com um miudo africano, Idrissa, e o seu cão (como em “Luzes no Crepúsculo”, mas aí o miudo africano e o cão eram apenas testemunhas, testemunhas da miséria da vida numa sociedade moderna, “evoluída”), e a mulher adoece gravemente. Entre as visitas ao hospital - o pudor daquela relação, a história dos vestidos e dos presentes, é uma coisa fantástica - Marcel decide-se a ajudar o jovem Idrissa a escapar à sanha das brigadas anti-imigração clandesita e a cruzar a Mancha, para ir ter com a família imigrante em Inglaterra. E, basicamente, é isto.
Mas “isto” sucede num mundo que Kaurismäki pinta em tons idealizados. É a pequena comunidade, o “bairro”, solidário e caloroso por uma questão de princípios e valores, uma espécie de “bolsa” que existe na fronteira com a sua própria mitologia (também, obviamente, um mitologia de cinema: é por aí que Kaurismäki reencontra o cinema francês clássico). A chegada de Idrissa pressupõe a chegada de outros sinais de “modernidade” e, sobretudo, de outros valores incompreensíveis e inaceitáveis - como Idrissa, antes de ser outra coisa qualquer (um imigrante clandestino, por exemplo), é um ser humano, não é surpresa que todo o bairro se mobilize para o ajudar a fugir (como, e há uma cena que praticamente o explicita, num filme de Melville sobre a Resistência). Recorrendo às manigâncias mais extraordinárias, como um “concerto de beneficência” para angariação de fundos, ocasião para o “come back” de Little Bob, um inacreditável rocker local (aparentemente autêntico). À riqueza das personagens que estão do lado certo contrapõe Kaurismäki a silhueta simples dos opositores: Jean-Pierre Léaud, o delator, que aparece meio cambaleante e faz lembrar o “Cordelier” de Renoir, e os polícias que perseguem Idrissa, filmados sempre em bando, a correrem de um lado para o outro (uma espécie de Keystone Cops em estilo Sarkozy). E depois, a personagem ambígua do inspector Monet (Jean-Pierre Darroussin), vestido de negro como um vilão de western ingénuo, mas finalmente merecedor da humanidade que Kaurismäki lhe reconhece (a cena do ananás, no bar, é prodigiosa).
Neste mundo “de cinema” - a fotografia de Timo Salminen faz o milagre habitual: recupera uma luz de estúdio, totalmente em desuso, a aplica-a mesmo às cenas de exteriores - o cinema ainda pode mais do que a vida. É o mais optimista dos filmes de Kaurismäki em muitos anos, mesmo se, por todas, se trata de um optimismo “de fábula”. Há, portanto, lugar para o milagre. E depois do milagre vem o “tempo das cerejas” (como os tangos de Olavi Viirta e de Gardel, um velho favorito da “juke box” de Kaurismäki), e o “plano-ozu” que nunca falta num filme de Kaurismäki: uma cerejeira enquadrada, em leve contra-picado, contra chaminés e cabos eléctricos. É tão belo que dá vontade de chorar. E se não houver cerejeiras no Havre, tanto melhor.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
O cinema de Aki Kaurismäki é uma máscara de optimismo que nos avisa que o mundo não é como nos filmes. Mas teremos sempre os filmes.
Há 20 anos, Aki lembra-se, ainda se podia fumar numa sala de conferência de imprensa do Festival de Cannes. Hoje já não, e foi precisa uma pantomima digna de Chaplin para lhe tirar o cigarro da boca. Acendeu um, tirou outro... "Os tempos mudaram, eu é que continuo na mesma." Por isso é que Le Havre é um porto de abrigo, porque há coisas que não mudam nos filmes do cineasta finlandês: aquele fingimento de optimismo e de happy end quando a coisa está negra, a autoparódia como consolo (e aviso: tudo isto só existe em cinema), os silêncios e as cores garridas em cenários de outro tempo já que o passado é o local favorito de Aki Kaurismäki e a sua câmara de filmar, que é de 1974 e pertenceu a Ingmar Bergman, "não gosta de arquitectura moderna".
Por isso teve de procurar muito em Le Havre, passar para lá da zona moderna da cidade da Normandia que foi bombardeada na II Guerra Mundial, e descobrir ruelas e recantos do passado que pudessem ser suficientemente artificiais como uma reconstituição em estúdio. Coisa pouca, umas porcarias, como diria um dos actores do filme, Jean-Pierre Darrossin, mas com elas Kaurismäki faz todo um mundo; o que faz dele o oposto de um político, que com o mundo só faz porcarias (ainda Darrossin). Uma questão de moral, portanto. Com realismo poético francês dos anos 30, René Clair e Carné, e ainda, e como sempre, o burlesco de Tati, e o marxismo, mais de Karl do que o dos irmãos, e estamos servidos.
André Wilms, que aqui se chama Marcel Marx, interpreta um homem com os olhos tristes da derrota mas um optimismo de outro mundo. Que, como todas as personagens do realizador, usa como uma máscara de dignidade. Deixou a vida de boémia (e Wilms fez para Aki, em 1992, La Vie de Bohème), os seus sonhos, arrumou os sapatos e remeteu-se aos sapatos dos outros. Ganha (mal) a vida como engraxador. A mulher, Arlety (que outro nome poderia ter Kati Outinen nas brumas de uma cidade portuária?), adoece, um cancro. No momento em que em Le Havre desembarca um miúdo, refugiado africano, que quer chegar a Londres.
Aki diz que não tem respostas para a "crise financeira, política e sobretudo moral que originou a sempre por resolver questão dos refugiados" na Europa. Le Havre não é filme de respostas e é seco como um carapau se se procura discussão de "tema do dia". Mas fala-nos de outras maneiras e por todos os lados, apesar de ser quase sempre mudo, e sempre para nos dizer que o mundo é feito ao contrário daquilo que o filme mostra, com os silêncios, com as cores e com os cenários e não só com os (poucos) diálogos dos actores. Que falam em francês, língua que Aki Kaurismäki não domina, mas isso nunca foi problema. Como Aki disse em português (tem casa e passa parte do ano num canto esquerdo da Europa): “Em Portugal costumamos dizer: "Posso ser burro, mas não sou estúpido."”
Em Cannes por estes dias são todos Aki. Le Havre foi um dos filmes mais aplaudidos do concurso.
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Vasco Câmara
ENTREVISTA AO REALIZADOR
Com o dedo em riste com cuspo, Aki Kaurismaki sabe por onde anda o vento no terraço da Fundação de Serralves. Não tendo ainda investigado um espaço que desconhecia, continua a suspeitar do formato "arquitectura moderna". "Se calhar, sou uma dessas pessoas que resistem ao progresso."
Há 20 anos que o finlandês está entre nós. Chegou nos anos 80 a Viana do Castelo com um Cadillac de 1962 e cabelo comprido até ao rabo. Aceitaram-no. O país já não era a utopia que um amigo descobrira num interrail em 1971. Mas ainda era suficientemente antigo. "Agora é demasiado moderno."
Ainda aqui está. E ainda considera os portugueses "insondáveis". Por isso andou com pouca convicção pela costa portuguesa à procura de uma cidade portuária para rodar o seu filme - com pouca convicção por causa desse lado insondável e porque diz conhecer pouco cinema português. Parou na costa francesa, Le Havre. É esse o porto de abrigo. Para um miúdo africano que dá à costa e que Marcel Marx, ex-boémio, agora engraxador (é a conexão portuguesa) e em busca de redenção, vai conseguir safar no espaço europeu. E um porto de abrigo para o espectador: os tempos mudam, Aki continua com aquele fingimento de optimismo e de "happyend" quando a coisa está negra (assim vai a Europa, em tempos de crise financeira e moral), uma nobreza feroz.
Numa entrevista, disse que uma das ideias para a personagem interpretada por André Wilms foi um engraxador português.
Tinha a ideia de um homem que vê um rapaz na água e decide ajudá-lo. Mas não sabia que tipo de homem era: rico, pobre, classe média, operário - e, sendo assim, que tipo de operário? Demorei quase um ano a encontrar isso, porque hoje sou mais lento do que era e porque ao mesmo tempo estava à procura da cidade onde filmar. O Porto era perto [de onde vive, Viana do Castelo], não queria filmar no Porto porque, ao fim de vinte anos, ainda não sei o que está dentro da cabeça portuguesa...
... já disse que os portugueses eram "insondáveis"...
E não sei o que está dentro da cabeça portuguesa. E ninguém sabe. Alguém escreveu que vocês parecem muito calmos, mas dentro há um vulcão.
Poderia dizer-se isso dos finlandeses: insondáveis...
Pelo menos os "yankees" não são insondáveis, sabemos todos o que eles querem.
Como dizia, estava à procura da cidade para filmar, mas não conseguia deixar de escrever e tinha esta incógnita sobre este homem. E um dia encontrei um engraxador em Viana. Engraxei os sapatos, que já estavam brilhantes... Decidi que a personagem iria ser engraxador, obviamente. Ele pediu três euros, eu dei-lhe vinte. "Não, é demasiado", disse. "Não, não, é muito pouco", disse eu. Ele até tinha um cão, até roubei isso [para o filme].
A minha mulher exigiria que a personagem tivesse um cão, de qualquer maneira, até porque um dos nossos cães ainda não tinha sido actor. Ao terceiro dia de escrita de argumento, ela já estava a perguntar: "Há papel para o cão?". Respondi-lhe: "Já está escrito".
É o seu quarto filme com André Wilms... A personagem, MarceI Marx, é uma continuação do MarceI Marx de "La Vie de Bohème" [1992]? É como se a experiência que ele atravessa em "Le Havre", o encontro com o miúdo africano refugiado, lhe permitia uma expiação por pecados antigos... Não sei se "redenção" é palavra para si...
Bem, é o mesmo homem. Tem o mesmo nome. Há um momento em que ele diz ao rapaz: "eu fui jovem em Paris..." e também que o "sucesso como escritor foi apenas artístico", ou seja, sem dinheiro. Claro que, sendo eu preguiçoso, ajudou-me a pensar que, tendo já esta personagem, só precisava de inventar o resto. Mas, sendo o mesmo homem, o que lhe aconteceu entre "La Vie de Bohème" e este filme eu não sei. O André [Wilms] não sabe. Há uma altura em que ele diz à proprietária do bar que a mulher o salvou quando ele estava na sarjeta. Obviamente ele bebia de mais e chegou ao desespero na sua tentativa de furar por entre as guerras dos editores. Na altura de "... Bohème" [argumento baseado em "Scènes de la vie de bohème" , de Henri Murger] sempre que pensava sobre actores e personagens, eles eram os Três Mosqueteiros e André sempre foi para mim Athos, alguém que no livro era aquele que mais pensava antes de agir.
Estando num país estrangeiro, com uma língua estrangeira e numa cidade estrangeira [Le Havre, França], foi importante ter alguma coisa [a que me ancorar]. De outra forma, ter-me-ia esquecido da personagem de "... Bohème" .
E gosto de me divertir quando escrevo. Pondo coisas para mim próprio. Para as pouco pessoas que viram "La Vie de Bohème" talvez possa ser interessante. Não sei. Desde que não prejudique a história. Como sou produtor de mim próprio... quem sabe, talvez alguém possa querer ver "La Vie de Bohème" e eu ganhe mais alguns escudos.
Há um molde para as personagens de Aki Kaurismaki? Há "actores à Aki Kaurismaki?" Isso já se reconhece antes de eles entrarem nos seus filmes ou tornam-se "actores de Kaurismaki" porque os transforma?
Parece que transformo os actores, porque os impeço de interpretarem - demasiado. Eu não deixo os meus actores gritarem, rirem-se ou correrem. Digo-lhes sempre: "Expressem tudo o que quiserem com a sobrancelha esquerda, mas é tudo". Dois dias depois, eles cansam-se e eu tenho o que quero.
O que é que viu em André Wilms, na primeira vez?
É como um clube para cavalheiros sem muitos membros. Conheci-o em Paris, não conhecia actores franceses. Um amigo perguntou-me se eu queria encontrar-me com ele. "É bom?" "Sim." "Tem um nariz comprido?". "Sim". "Ok, encontremo-nos". Encontrámo-nos num café, apertámos a mão e disse-lhe: "Está contratado". "Para quê?". "Vamos discutir isso agora". Foi ódio à primeira vista [risos].
Ele retribui: diz que não gosta de realizadores, a não ser de Aki Kaurismaki. Nova trilogia, esta, iniciada com "Le Havre" ...
... Digo sempre isso, que é uma trilogia. Talvez faça o filme seguinte, mas só daqui a cinco anos. Até lá, tenho uma curta a fazer para Guimarães [Capital da Cultura] e não farei mais nada depois porque tenho de cuidar do meu jardim.
Sou tão preguiçoso, só me apetece deitar e ler, que tenho de criar esse dispositivo da trilogia para me forçar.
O "happyend" em "Le Havre" é político? Está confortável com isso do "político"?
Conheço suficientemente os espectadores para saber que vão ao cinema para se entreterem. E não para receberem lições. Um filme político terá de ser um documentário. Introduzir as nossas opiniões numa ficção não funciona. Talvez só interesse a cem pessoas, aquelas que queiram mais alguma coisa [de um filme]. Se alguém me disser que o banco em que me sento é político, eu digo que é apenas um banco. Mas gentilmente tento, enquanto divirto as pessoas, que elas vejam que há este problema hoje no meio de nós, todos os dias e sempre, e que as pessoas que vemos nas ruas não estão a ser bem tratadas pela gloriosa Europa. Pelo contrário, estão a ser muito maltratadas pelos governos. E não acredito de forma alguma na conversa dos políticos. Porque é por isso que eles são políticos. Não compraria um carro novo a um político.
Mas quando faz um filme assim, como fábula, não é isso já político?
Sim, mas espero que de forma escondida.
Como se o filme nos estivesse permanentemente a acordar para o facto de que histórias como esta resolução, com milagrosos "happy end", só acontecem nos filmes.
Os milagres também acontecem na realidade... Diverte-me a ideia de que se qualquer filme pode ter um "happy end", que tal se houver dois?
A política é uma chatice, excepto para as pessoas que querem poder. E o poder e o dinheiro estão sempre de mãos dadas, o que toma a política a alto nível qualquer coisa de sujo. Não a política a nível municipal, que trata das nossas coisas comuns. Mas, quando chegamos ao topo, há sempre um compromisso entre o que deve ser feito e a lealdade para com as pessoas que deram dinheiro para essa subida ao poder.
O filme passa-se hoje...
Em 2007, porque se pode fumar nos cafés...
Mas podia ser um filme dos anos 30, francês. E na sua dimensão abstracta convoca, também, o Holocausto. Pensou nisso, em trabalhar uma certa intemporalidade que abrisse o filme a intromissões?
Sim, mas não é a minha função analisar isso. Pensei num tema, em locais para filmar, e escrevi tudo numa semana. Não sei o que meti na panela; certamente o meu subconsciente, tudo o que li e os filmes que vi. Mas não quero analisar excessivamente, sinto que estraga alguma coisa.
Mas é verdade que não acredito em filmes que não tenham nada a dizer. Não são cinema. São apenas "entertainment". O que é OK para os domingos de ressaca à tarde, por que não?
É um filme sobre refugiados, e claro que não falo apenas dos refugiados de hoje na Europa. São os refugiados em todo o lado e em geral. E a Europa na II Guerra estava cheia de refugiados... Não tinha pensado nisso até ter mencionado.
Por onde andou à procura de cidades, antes de escolher Le Havre?
Pela costa italiana, Sul de França, Espanha, costa portuguesa, mas passei por Lisboa sem parar. Não consigo filmar em Portugal.
Já conheço muitos filmes franceses, sei como é que os actores devem falar.
Devia ver filmes portugueses...
Vejo sempre que posso. O meu português não é muito bom. Vi "Aniki Bobó" [Manoel de Oliveira]. E "Maria do Mar" [Leitão de Barros]. E filmes de Pedro Costa. E João César Monteiro. Mas não posso dizer que conheço o cinema português.
É curioso que fale em Pedro Costa. Em "Colossal Youth", ele colocou as personagens, uma delas, Ventura, num museu, como se erigisse um pedestal de dignidade. A sequência, no seu filme, em que se abre o contentor com refugiados lá dentro contraria as expectativas supostamente "realistas" - nada a ver com pessoas mal vestidas, nada a ver com sujidade... Não é por acaso que as filma assim.
Quando escrevi, havia alguns mortos na cena. Mas perguntei a mim próprio: "Porquê?" E fintei a lógica. Eles estão a ir para uma nova vida, levam as suas melhores roupas vestidas. Os povos africanos são sempre muito limpos. E passei por cima do problema de estarem dentro do contentor há duas semanas. Vamos mostrá-los tão orgulhosos como os africanos são.
Para contrariar uma figuração...
Fui contra o "realismo maltrapilho", livrei-me do naturalismo, do realismo que toda a gente agora tenta. Contra Victor Hugo. Não todo, mas o dos "Miseráveis” ...
Por que é que escolheu o Havre?
Por preguiça, era mais fácil filmar em França. Falo algo de francês, percebo o que eles dizem. E gostei porque, durante a II Guerra, Le Havre foi totalmente bombardeada pelos aliados - não pelos alemães -, numa manobra de diversão para fintarem a invasão que preparavam. As pessoas ainda não esqueceram isso. Mesmo as que não tinham nascido. É gente orgulhosa, que não gosta especialmente do centro do poder, Paris. Senti logo isso. E tem uma luz espantosa, uma luz branca. Muitos pintores foram para lá pintar. Gostei, e não sou um grande visualista. Mas gosto da luz. E é uma cidade boa para produzir filmes - é o produtor em mim que fala - porque a largura das ruas, ruas do pós-guerra, é suficiente para os camiões com equipamento eléctrico...
As pessoas disseram-me que era a cidade mais chata do mundo, que era cinzenta e feia, que ninguém ia lá. Pois eu vou. Ninguém vai lá por acaso ou de passagem, é preciso querer ir lá. E se era uma cidade suficientemente boa para Marcel Carné ["Le Quai des Brumes"] e Jean Vigo ["L'Atalante"], é boa para mim.
E, tal como outros espaços dos seus filmes, recusa-se a dizer "hoje".
A arquitectura moderna desagrada-me intensamente...
É sempre uma luta contra o tempo quando filmo. Os "caterpillars" estão invariavelmente atrás de mim. Estão sempre a querer demolir a área em que estou a filmar. Temos sempre que lhes pagar para nos darem uma semana mais de rodagem antes da demolição total. Tem sido sempre assim na minha vida. Tudo o que filmo não existe depois. Deve ser por alguma coisa de que gosto.
Como filmar em cubos modernos, que é o que se chama hoje arquitectura? E é um erro pedir a arquitectos que façam cubos nos sítios em que há chuva. Deviam fazer um telhado. Deve haver problemas aqui com a água. Mas não tive tempo ainda de investigar, isto não parece assim tão mau... Quando as pessoas têm algum dinheiro fazem as suas casas como cubos, cheias de pormenores, mas acabam por não se enquadrar na área... e não parecem muito funcionais.
Tudo nos seus filmes remete para um mundo que acabou ou está à beira de acabar.
Se calhar, sou uma dessas pessoas que resistem ao progresso. Também não gosto de carros modernos, acho-os feios. Para mim, as coisas poderiam ter acabo em 1962, ou com a invenção da de penicilina - e digo 1962 porque o meu Cadillac é de 1962.
Foi por isso que escolheu viver em Portugal, há 20 anos, porque era um país que parecia viver no passado?
Quando vim para cá, em 1989, era de facto um país que vivia no passado. Agora é demasiado moderno. Para além dos táxis, o meu era o único carro em Viana do Castelo. E era um Cadillac de 1962. Tinha cabelo até à cintura, 30 anos, as pessoas perguntavam: "O que é aquilo?". Mas eram gentis, e aceitaram-me.
Claro que o progresso traz coisas boas, mas traz também o consumismo. Para quê ir ao supermercado e encontrar seis mil tipos de iogurte se cinco ou seis chegam? Tenho pena de não ter estado aqui em 1971. Um dos meus amigos veio cá em interrail, passou por Viana do Castelo, adorou Portugal, e viu coisas que nunca vi. Antes dos anos 80, pouca coisa tinha mudado aqui em 300 anos. Na Finlândia, o progresso começou nos anos 60 e foi lento. Aqui começou nos anos 80 e foi rápido.
Há coisas semelhantes entre portugueses e finlandeses?
Sim. Nós temos a melancolia, vocês têm a saudade. A melancolia finlandesa é quase a saudade portuguesa, mas não totalmente. Só os portugueses podem saber o que é. Ontem estive a tomar café. Dois homens estavam em pé, a olhar para o mar. Num deles consegui ver nos olhos a saudade. Durante meia hora. Depois voltaram ao trabalho. Acho que era saudade. O máximo que consegui chegar dela. Conheciam-se, claro. Não se falaram praticamente. Dois metros de distância entre eles.
Podia ser um filme de Aki Kaurismaki.
Os meus filmes agora estão cheios de diálogos.
A propósito: na relação entre a personagem de Wilms e da mulher, há um protocolo, o respeito pelo espaço do outro.
É muito finlandês. Gosto, em França, que a equipa parta para o almoço de¬pois de se beijar, depois regresse e todos se beijem outra vez. Mas fico embaraçado. Beijam-se de manhã, ao almoço, à noite... Os finlandeses têm problemas em dizer "olá" de manhã. Deve dar uma média de 180 beijos, ou seja, tira 4 minutos ao tempo de trabalho. Contando com o regresso, tira oito minutos...
É mais do que contabilidade: há coisas que acha que não deve filmar.
Claro, os finlandeses também beijam as mulheres. Mas não em público. O cinema é uma coisa pública, lá no grande ecrã. As coisas privadas devem manter-se privadas. Estou a falar do cinema real, que se mantém fora do sexo e da violência. Foi assim que fizeram Buñuel e Renoir, sou da velha escola.
E Ingmar Bergman?
É um caso especial. Falemos, antes, de Dreyer. Nem deixava os actores olharem uns para os outros. Senta¬dos ao lado um do outro e a olharem em frente. Nos meus filmes ao menos eu deixo os meus casais olharem-se.
Falei em Bergman porque filma com a câmara de Ingmar Bergman...
Já filmei vinte filmes com essa câmara, e Bergman aparentemente filmou apenas três. Comprei-a depois de "Fanny e AIexander", quando ele vendeu as suas coisas. É a minha câmara agora, que Bergman reste em paz.
Por que é que o considera especial?
Quem diz que gosto de Bergman?
Acho que gosta.
Gosto muito até "Through a Glass DarkIy" (1961). Depois disso não gosto especialmente.
Nem de "Lágrimas e Suspiros"?
Não, demasiado artístico. Gosto quando ele conta histórias, por exemplo "Morangos Silvestres". Fez muitas obras-primas. Admiro-o mais do que o amo.
Se tem a câmara dele não tem a câmara de outros realizadores.
Gostaria de ter a câmara de Raoul Walsh, mas era um homem do estúdio, não tinha câmara própria. Apesar de ter filmado os meus últimos 15 filmes com a câmara de Bergman, acho que nada passou dele; através da câmara, para os meus filmes. Era também a câmara de Sven Nykvist. É uma bela câmara.
O que está a filmar para Guimarães?
Ainda não tenho argumento. Guimarães produz cinco filmes de 15 minutos cada, Godard, Oliveira, Victor Erice, Pedro Costa e eu. Há um tema, "Memória da pedra", mas somos livres e de qualquer forma tudo o que se filmar numa cidade portuguesa terá sempre a ver com pedra.
Que filmes vê?
Não diga nada a ninguém, mas a última vez que comprei bilhete para um cinema foi em 1986, para um filme de Rohmer, "A Mulher do Aviador". Depois mudei para o campo e não havia cinema. Nesses dias fazia filmes rapidamente, três por ano. À noite estava tão cansado que não aguentava ir ao cinema. E era um fumador invetera¬do, não podia fumar na sala. Hoje tenho uma sala em casa e avanço para trás. Neste momento, estou entre Griffith e Méliès.
Viu "O Artista", supostamente um filme mudo?
Não, não vi. Ouvi falar. Sim, "supostamente". Por que é que devia ver? Já fiz o meu filme mudo ["Juha"]. Daqui a dez anos, talvez o veja. Quando toda a gente está a ir ver um filme, acho que deve haver algo errado. Há excepções. “Voando Sobre um Ninho de Cucos” ainda é um bom filme. Vamos aguentar uns cinco anos a ver se [“O Artista”] ainda é bom. Mas avanço para trás, 100 anos. Prefiro qualquer filme de Laurel e Hardy a tudo o que se fez em Hollywood depois
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Vasco Câmara, Público, 17/2/12
Argumento e Realização: Aki Kaurismäki
Fotografia: Timo Salminem
Montagem: Timo Linnasalo
Interpretação: André Wilms, Kati Outinen, Jean-Pierre Darroussin, Blondin Miguel, Elina Salo, Evelyne Didi,
Quoc-Dung Nguyen, Laika, François Monnié, Pierre Étaix, Little Bob, Jean-Pierre Léaud
Origem: Finlândia/França/Alemanha
Ano: 2011
Duração: 93’
Sócios 2€ // Estudantes 3,5€ // Restantes 4€
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