3ªf, 21h30, IPJ.
Importa reconhecer que a performance de Jean-Pierre e Luc Dardenne no Festival de Cannes é impressionante: por cinco vezes estiveram na secção competitiva, por cinco vezes saíram da Côte d’AZur com algum prémio.
Tudo começou em 1999, com Rosetta: e logo com a Palma de Ouro! Em 2002, O Filho valeu-lhes uma menção especial do Júri Ecuménico (único prémio não atribuído pelo júri oficial do certame). Regressaram em 2005, com A Criança: segunda Palma de Ouro! Em 2008, O Silêncio de Lorna arrebatou o prémio de argumento. Finalmente, já este ano, O Miúdo da Bicicleta recebeu o Grande Prémio do Júri (o segundo na hierarquia do palmarés oficial).
É, precisamente, O Miúdo da Bicicleta que agora chega ao mercado português. E o mínimo que se pode dizer é que os irmãos Dardenne se mantêm fiéis a si próprios: o seu cinema conserva a coerência de um realismo social enraizado numa observação metódica daquelas zonas da vida social em que todas as relações (familiares, amorosas, profissionais) parecem estar à beira da falência, arrastando as personagens para uma decomposição sem regresso.
Não é, por isso, um realismo abstracto. Os Dardenne filmam histórias profundamente ligadas ao quotidiano do seu pais (Bélgica), mas evitam cair em generalizações fáceis. Acima de tudo, interessa-lhes seguir personagens que se distinguem pela singularidade do seu trajecto e, não poucas vezes, pela brutalidade dos seus dramas. Lembremos a obstinação de Rosetta, no filme homónimo, tentando manter um emprego e escapar à teia da sua mãe alcoólica. Lembremos ainda o casal de jovens de A Criança que, num momento de desespero cego, admite a hipótese de vender o seu bebé.
Em O Miúdo da Bicicleta (titulo original: Le Gamin au Vélo), os Dardenne voltam a colocar em cena uma personagem profundamente comovente. O jovem Cyril (Thomas Daret) é alguém apanhado na teia de uma família precária: por um lado, vive num asilo, não concebendo sequer a ideia de que o pai o rejeitou: por outro lado, é-lhe impossível acreditar que o pai tenha vendido a sua preciosa bicicleta. O encontro acidental com Samantha (Cécile de France), uma jovem cabeleireira que o acompanha, abre-lhe horizontes inesperados: será que ela pode ser a figura materna que o irá proteger?
A arte dos Dardenne possui a aparente ligeireza de um documentário mas, de facto, trabalha todos os elementos com uma atenção e um rigor inexcedíveis. É um cinema de histórias particularíssimas que, pela humanismo do seu olhar, consegue possuir uma admirável dimensão universal.
.
João Lopes, Premiere
Quando os Dardenne filmam os pobres, não lhes arrancam o mundo. Há muito que os irmãos belgas perseguem o mesmo filão, as mesmas heranças, as mesmas histórias de pais e filhos, reais e simbólicos, em filiações sanguíneas ou afetivas. As personagens dos Dardenne, por seu lado, respondem-lhes: nunca baixam as orelhas. Não choram, não mamam, não fazem figura de coitadinhos como tantos que andam por aí. O miúdo desta bicicleta, Cyril (incrível Thomas Doret), é disso exemplo. As personagens dos Dardenne combatem. Para eles, o cinema é uma questão de luta. E de ponto de vista, porque a câmara de Jean-Pierre e Luc sabe como acompanhá-los sem os esmagar - é esse o seu maior triunfo.
O cinema contemporâneo tem uma dívida tremenda com os Dardenne. Quando Cannes os lançou, há 15 anos, com "A Promessa", o meio do cinema ainda não sabia como responder-lhes. Os irmãos já tinham um bom punhado de documentários antes dessa primeira ficção mas "A Promessa" foi muito mais longe: inaugurou um novo modelo de produção e um novo efeito de realismo. Inaugurou um cinema que funciona em todos os sentidos do termo. Casou o documentário e a ficção com uma seriedade sem limites e o casamento, que no cinema francófono só tinha um farol chamado Maurice Pialat, espalhou-se pelo planeta (veja-se o novo cinema chinês, veja-se o romeno...), num dos eixos cinematográficos mais produtivos dos últimos 20 anos.
Condenados a fazer o mesmo filme, os Dardenne? Pas forcément. Quem passar os olhos pelo denso livro que o mais novo dos.irmãos, Luc, doutor em filosofia, publicou há uns tempos ("Au dos de nos images"), compreenderá que a arte dos Dardenne e a sua economia fina, embora escavem bem fundo, residem na humildade, na contração, na mecânica do que não é mostrado nem se exprime em voz alta - daí a sensação de que os filmes se repetem. Mas não repetem. Com este "miúdo", os Dardenne abrem o seu espaço a uma atriz da indústria - e Cécile de France é absolutamente notável na mãe adotiva de Cyril/Pitbull. Filmaram no verão, coisa rara, se não inédita. Com planos muito mais largos do que é habitual. Com a câmara, também pela primeira vez, à altura do olhar de uma criança, num sistema muito diferente de "Rosetta". Quem poderá ainda, pe¬rante este retrato incandescente da infância que até admitirá um raio de sol, dizer que os Dardenne se repetem?
Há críticas que saem assim, nas tintas para a story, mas com vontade de abraçar um todo e em força, como naquele plano, magnífico (talvez o mais forte de sempre dos belgas), em que Cyril, ele que só quer encontrar o pai, atira uma mulher desconhecida ao chão e descobre uma 'mãe': Samantha. "O Miúdo da Bicicleta" deixar-nos-á em suspenso alguns segundos com um milagre lá para o fim que tem a forma de uma ressurreição. Todos os filmes dos Dardenne são histórias de Abraão e Isaac, para voltarmos aos pais, aos filhos e - admitamos - a um cinema que professa com subtileza o seu cristianismo. Até que o perdão intolerável, sem qualquer palavra de consolo, sem qualquer gesto de condescendência, se possa tomar um perdão possível - e a história deste filme, afinal, é só esta.
.
Francisco Ferreira, Expresso
...O Miúdo da Bicicleta. E agora sem pedais, e agora sem mãos, e agora sem pai, e agora sem rumo... Último filme dos irmãos Dardenne: uma fábula infantil contada aos adultos.
Por mais voltas que dêem, por mais que pedalem, e já lá vão mais de quatro décadas de documentários, ficções e muitos prémios acumulados, Luc e Jean-Pierre Dardenne (incluídos no circulo restrito dos duplamente "palmeados, em Cannes) regressam sempre ao local do crime. Que, confessou Luc, o mais novo dos irmãos belgas, quando passou por Lisboa, em Novembro, no Lisbon & Estoril Film Festival, a apresentar O Rapaz da Bicicleta (Prémio Especial do Júri, em Cannes, estreia-se hoje, dia 22), é Seraing, um subúrbio industrial de Liéges: "A cidade da nossa infância". Uma pequena cidade de quatro mil habitantes, afectada por uma grande crise nos anos 70, deprimida pelo desemprego, depreciada pela marginalidade. Os irmãos Dardenne sempre fizeram um cinema militante e realista, socialmente comprometido, um pouco na mesma linha de Ken Loach ou Mike Leigh. "Gostamos de marginais, de filmar o ser humano em situações extremas", comenta Jean-Pierre. Mas logo acrescenta: "Bem, também gostamos de pessoas que vão ao cinema". Curiosamente, diz, "este é o nosso filme mais sereno e luminoso". Apesar de tratar de um filho a quem o pai lhe desaparece. Uma criança errante, um ser em tumulto, em permanente desassossego, mesmo dentro de casa ele nunca está parado, em perpétua fuga para a frente, porque não aceita o abandono do pai, que o depositou numa instituição. Resiste à rejeição, incansável, e pedala, pedala sempre - a bicicleta é o único meio de transporte que se move exclusivamente a esforço humano e jamais anda para trás. Apesar da inclemência do argumento (baseada numa história verídica de um menino japonês que não cessava de correr atrás do pai "abandonante"), este é o primeiro filme dos Dardenne rodado no Verão. Por outro lado, há menos interferência de objectos entre a câmara e as personagens, o que confere à acção maior fluência. Ao contrário do habitual despojamento artificioso, existe música, embora de uma forma muito comedida. Pequenas doses, apenas fragmentos, apontamentos musicais (da 5ª Sinfonia de Bethoveen), quase como uma bênção de afago ao miúdo em sofrimento e que dividem o filme em três partes, como numa fábula contemporânea: exposição, acção e resolução e aí a 5ª sinfonia inunda o ecrã. Tal como nos contos infantis há um miúdo (o concentradíssimo Thomas Doret de apenas 13 anos, escolhido de entre 150 crianças, e quase lhe vemos a respiração), insistentemente vestido de vermelho, e tudo de mau lhe acontece num recanto escuro da floresta. Depois há uma fada, muito pouco azul, nada sentimental - é apenas uma cabeleireira de bairro que se interessou pela criança abandonada, e por causa dele até abdica do namorado. Porque sim, os irmãos Dardenne nunca se detêm em explicações nem em teorizações piegas, preferem a elipse, e fazem o filme andar em frente. Talvez porque, numa ocasião, os destinos da mulher e do miúdo se encontraram num abraço que foi mais um aperto - isso bastou. E onde há uma fada, há sempre o contraponto, um lobo mau, que se oculta nos esconsos do arvoredo. Ou uma dupla de felinos que sustêm Pinóquio no seu caminho para a escola, portadores de tantos atrativos, contra os quais nem as fadas mais azuis conseguem competir.
.
Ana Margarida de Carvalho, Visão
ENTREVISTA COM JEAN-PIERRE E LUC DARDENNE
Qual a origem de O MIÚDO DA BICICLETA?
Luc: Tivemos essa história nas nossas cabeças durante muito tempo: uma mulher que ajuda um rapaz a emergir da violência que o mantém prisioneiro. A primeira imagem foi a deste rapaz, este ser em tumulto, suavizado graças a outro ser humano.
Jean-Pierre: Primeiro imaginámos Samantha como uma médica mas mudámos de opinião e decidimos que ela seria uma cabeleireira, instalada no seu bairro desde há bastante tempo.
Este é um filme muito comovente sem nunca cair em sentimentalismos.
Jean-Pierre: Graças a Deus!
Luc: Nunca quisemos que o público percebesse porque é que a Samantha se sentia arrastada por Cyril. Não queríamos explicações psicológicas. Não queríamos que o passado explicasse o presente. Quisemos que o público pensasse: “Ela está a fazer isto!”. E isto já é bastante.
Cyril está sempre em movimento. Ele é incansável.
Jean-Pierre: Sim, ele está muitas vezes na sua bicicleta… Este miúdo sem quaisquer laços corre atrás de amor sem o saber.
As relações entre pais e filhos destacam-se muitas vezes nos vossos filmes: “A Promessa”, “A Criança”, “O Filho”. Porquê?
Luc: Somos todos “filhos de” ou “filhas de”…
Jean-Pierre: A nossa sociedade glorifica o indivíduo. Talvez seja como uma reacção a este facto que regressamos tantas vezes à ideia de vínculo. Mesmo que nem sempre seja biológico, como acontece com Samantha e Cyril.
Apesar da violência da história de Cyril o filme tem um lado luminoso.
Jean-Pierre: Sim, procurámos encontrar alguma fluidez. Filmámos no Verão, o que é uma novidade para nós.
É difícil filmar a bondade?
Luc: Diante dela, a maldade é sempre mais entusiasmante (risos). Era muito importante não retratarmos uma bondade cliché, claro, mas sim mantermo-nos o mais próximos possível desta ideia de abertura e troca.
Jean-Pierre: Filmar uma personagem que tem os melhores sentimentos de outra pessoa no coração não sucede habitualmente connosco. Filmar no Verão ajudou-nos a dar ao filme alguma claridade e suavidade. E Cécile de France reúne estas qualidades naturalmente.
É pouco habitual trabalharem com actores conhecidos.
Luc: Nada foi programado. Nunca escrevemos com um actor específico em mente. Mal terminámos o argumento começámos a pensar em actrizes e em Cécile em primeiro lugar. Com ela sabíamos que evitaríamos toda a psicologia… que o seu corpo e rosto seriam suficientes. Entregámos-lhe o argumento e ela aceitou logo. Ela fez-nos algumas perguntas relativamente às motivações da sua personagem. Dissemos-lhe que a Samantha estava ali, e ponto final. Ela acreditou em nós.
Ela parece ter redescoberto o seu sotaque belga…
Jean-Pierre: Sim! Fomos muito cuidadosos com o sotaque. Não queríamos o efeito “chegou a actriz francesa!”. A Cécile é belga, não nos esqueçamos disto. Ela cresceu não muito longe da região onde o filme se desenrola mas o seu sotaque é ligeiro e não quisemos exagerá-lo.
Como encontraram Thomas Doret, o rapaz que interpreta Cyril e que está quase sempre no ecrã?
Jean-Pierre: Com o método habitual quando se procuram actores daquela idade: pusemos um anúncio nos jornais e depois organizámos um casting com centenas de crianças. Thomas apareceu no primeiro dia, foi o quinto que vimos e chamou logo a atenção.
Luc: Desde o início ficámos impressionados com a expressão dos seus olhos, com o seu ar teimoso, o seu aspecto concentrado…
Jean-Pierre: Ele tinha também uma capacidade admirável para aprender os diálogos… e ele tinha muitos. Desde os primeiros testes sentimos que ele era a personagem. Ele tinha um entendimento intuitivo do seu papel. Algo imediatamente preciso e pungente, sem nunca choramingar.
Luc: Ele foi o único a estar de forma consistente durante as 6 semanas de ensaios. Ele tornou-se um líder! Sabia todas as cenas de cor ainda antes de o termos chamado. E quando se enganava ficava verdadeiramente chateado. O Thomas é cinturão castanho no Karate! Isso ajuda-o na concentração e com a memória.
Em O MIÚDO DA BICICLETA temos a cidade mas também a floresta que a rodeia…
Luc: Imaginámos um triângulo geográfico para este filme: a cidade, a floresta e o posto de combustível. A floresta é, para Cyril, um local de atracções perigosas, o local onde ele pode aprender a ser um pequeno criminoso. A cidade encarna o passado com o seu pai e o presente com a Samantha. O posto de combustível é um espaço de transição, onde o enredo sofre muitas reviravoltas.
Jean-Pierre: Quisemos construir o filme como uma espécie de conto de fadas, com vilões que fazem com que o miúdo perca as suas ilusões, e com Samantha, que surge quase como uma fada-madrinha. Durante pouco tempo, chegámos mesmo a pensar dar o título “Um Conto de Fadas dos nossos dias” ao filme.
Pela primeira vez usam música, ainda que com moderação…
Luc: É muito raro nos nossos filmes e hesitámos durante muito tempo. Num conto de fadas é necessário haver um desenvolvimento com emoções e novos começos. Pareceu-nos que a música, em certos momentos, pode funcionar como uma carícia tranquilizadora para Cyril.
Estão de regresso a Cannes, onde já conquistaram duas Palmas de Ouro (por “Rosetta”, em 1999, e “A Criança”, em 2005). O que significa para vocês o Festival?
Jean-Pierre: É muito importante mostrarmos os nossos filmes aqui. É muito agradável voltarmos cá, de cada vez. Adoramos a onda de adrenalina que apenas existe em Cannes.
Luc: O nosso cinema deve muito ao festival. A nossa história continua aqui, uma história feliz até agora…
.
Dossier imprensa
Importa reconhecer que a performance de Jean-Pierre e Luc Dardenne no Festival de Cannes é impressionante: por cinco vezes estiveram na secção competitiva, por cinco vezes saíram da Côte d’AZur com algum prémio.
Tudo começou em 1999, com Rosetta: e logo com a Palma de Ouro! Em 2002, O Filho valeu-lhes uma menção especial do Júri Ecuménico (único prémio não atribuído pelo júri oficial do certame). Regressaram em 2005, com A Criança: segunda Palma de Ouro! Em 2008, O Silêncio de Lorna arrebatou o prémio de argumento. Finalmente, já este ano, O Miúdo da Bicicleta recebeu o Grande Prémio do Júri (o segundo na hierarquia do palmarés oficial).
É, precisamente, O Miúdo da Bicicleta que agora chega ao mercado português. E o mínimo que se pode dizer é que os irmãos Dardenne se mantêm fiéis a si próprios: o seu cinema conserva a coerência de um realismo social enraizado numa observação metódica daquelas zonas da vida social em que todas as relações (familiares, amorosas, profissionais) parecem estar à beira da falência, arrastando as personagens para uma decomposição sem regresso.
Não é, por isso, um realismo abstracto. Os Dardenne filmam histórias profundamente ligadas ao quotidiano do seu pais (Bélgica), mas evitam cair em generalizações fáceis. Acima de tudo, interessa-lhes seguir personagens que se distinguem pela singularidade do seu trajecto e, não poucas vezes, pela brutalidade dos seus dramas. Lembremos a obstinação de Rosetta, no filme homónimo, tentando manter um emprego e escapar à teia da sua mãe alcoólica. Lembremos ainda o casal de jovens de A Criança que, num momento de desespero cego, admite a hipótese de vender o seu bebé.
Em O Miúdo da Bicicleta (titulo original: Le Gamin au Vélo), os Dardenne voltam a colocar em cena uma personagem profundamente comovente. O jovem Cyril (Thomas Daret) é alguém apanhado na teia de uma família precária: por um lado, vive num asilo, não concebendo sequer a ideia de que o pai o rejeitou: por outro lado, é-lhe impossível acreditar que o pai tenha vendido a sua preciosa bicicleta. O encontro acidental com Samantha (Cécile de France), uma jovem cabeleireira que o acompanha, abre-lhe horizontes inesperados: será que ela pode ser a figura materna que o irá proteger?
A arte dos Dardenne possui a aparente ligeireza de um documentário mas, de facto, trabalha todos os elementos com uma atenção e um rigor inexcedíveis. É um cinema de histórias particularíssimas que, pela humanismo do seu olhar, consegue possuir uma admirável dimensão universal.
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João Lopes, Premiere
Quando os Dardenne filmam os pobres, não lhes arrancam o mundo. Há muito que os irmãos belgas perseguem o mesmo filão, as mesmas heranças, as mesmas histórias de pais e filhos, reais e simbólicos, em filiações sanguíneas ou afetivas. As personagens dos Dardenne, por seu lado, respondem-lhes: nunca baixam as orelhas. Não choram, não mamam, não fazem figura de coitadinhos como tantos que andam por aí. O miúdo desta bicicleta, Cyril (incrível Thomas Doret), é disso exemplo. As personagens dos Dardenne combatem. Para eles, o cinema é uma questão de luta. E de ponto de vista, porque a câmara de Jean-Pierre e Luc sabe como acompanhá-los sem os esmagar - é esse o seu maior triunfo.
O cinema contemporâneo tem uma dívida tremenda com os Dardenne. Quando Cannes os lançou, há 15 anos, com "A Promessa", o meio do cinema ainda não sabia como responder-lhes. Os irmãos já tinham um bom punhado de documentários antes dessa primeira ficção mas "A Promessa" foi muito mais longe: inaugurou um novo modelo de produção e um novo efeito de realismo. Inaugurou um cinema que funciona em todos os sentidos do termo. Casou o documentário e a ficção com uma seriedade sem limites e o casamento, que no cinema francófono só tinha um farol chamado Maurice Pialat, espalhou-se pelo planeta (veja-se o novo cinema chinês, veja-se o romeno...), num dos eixos cinematográficos mais produtivos dos últimos 20 anos.
Condenados a fazer o mesmo filme, os Dardenne? Pas forcément. Quem passar os olhos pelo denso livro que o mais novo dos.irmãos, Luc, doutor em filosofia, publicou há uns tempos ("Au dos de nos images"), compreenderá que a arte dos Dardenne e a sua economia fina, embora escavem bem fundo, residem na humildade, na contração, na mecânica do que não é mostrado nem se exprime em voz alta - daí a sensação de que os filmes se repetem. Mas não repetem. Com este "miúdo", os Dardenne abrem o seu espaço a uma atriz da indústria - e Cécile de France é absolutamente notável na mãe adotiva de Cyril/Pitbull. Filmaram no verão, coisa rara, se não inédita. Com planos muito mais largos do que é habitual. Com a câmara, também pela primeira vez, à altura do olhar de uma criança, num sistema muito diferente de "Rosetta". Quem poderá ainda, pe¬rante este retrato incandescente da infância que até admitirá um raio de sol, dizer que os Dardenne se repetem?
Há críticas que saem assim, nas tintas para a story, mas com vontade de abraçar um todo e em força, como naquele plano, magnífico (talvez o mais forte de sempre dos belgas), em que Cyril, ele que só quer encontrar o pai, atira uma mulher desconhecida ao chão e descobre uma 'mãe': Samantha. "O Miúdo da Bicicleta" deixar-nos-á em suspenso alguns segundos com um milagre lá para o fim que tem a forma de uma ressurreição. Todos os filmes dos Dardenne são histórias de Abraão e Isaac, para voltarmos aos pais, aos filhos e - admitamos - a um cinema que professa com subtileza o seu cristianismo. Até que o perdão intolerável, sem qualquer palavra de consolo, sem qualquer gesto de condescendência, se possa tomar um perdão possível - e a história deste filme, afinal, é só esta.
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Francisco Ferreira, Expresso
...O Miúdo da Bicicleta. E agora sem pedais, e agora sem mãos, e agora sem pai, e agora sem rumo... Último filme dos irmãos Dardenne: uma fábula infantil contada aos adultos.
Por mais voltas que dêem, por mais que pedalem, e já lá vão mais de quatro décadas de documentários, ficções e muitos prémios acumulados, Luc e Jean-Pierre Dardenne (incluídos no circulo restrito dos duplamente "palmeados, em Cannes) regressam sempre ao local do crime. Que, confessou Luc, o mais novo dos irmãos belgas, quando passou por Lisboa, em Novembro, no Lisbon & Estoril Film Festival, a apresentar O Rapaz da Bicicleta (Prémio Especial do Júri, em Cannes, estreia-se hoje, dia 22), é Seraing, um subúrbio industrial de Liéges: "A cidade da nossa infância". Uma pequena cidade de quatro mil habitantes, afectada por uma grande crise nos anos 70, deprimida pelo desemprego, depreciada pela marginalidade. Os irmãos Dardenne sempre fizeram um cinema militante e realista, socialmente comprometido, um pouco na mesma linha de Ken Loach ou Mike Leigh. "Gostamos de marginais, de filmar o ser humano em situações extremas", comenta Jean-Pierre. Mas logo acrescenta: "Bem, também gostamos de pessoas que vão ao cinema". Curiosamente, diz, "este é o nosso filme mais sereno e luminoso". Apesar de tratar de um filho a quem o pai lhe desaparece. Uma criança errante, um ser em tumulto, em permanente desassossego, mesmo dentro de casa ele nunca está parado, em perpétua fuga para a frente, porque não aceita o abandono do pai, que o depositou numa instituição. Resiste à rejeição, incansável, e pedala, pedala sempre - a bicicleta é o único meio de transporte que se move exclusivamente a esforço humano e jamais anda para trás. Apesar da inclemência do argumento (baseada numa história verídica de um menino japonês que não cessava de correr atrás do pai "abandonante"), este é o primeiro filme dos Dardenne rodado no Verão. Por outro lado, há menos interferência de objectos entre a câmara e as personagens, o que confere à acção maior fluência. Ao contrário do habitual despojamento artificioso, existe música, embora de uma forma muito comedida. Pequenas doses, apenas fragmentos, apontamentos musicais (da 5ª Sinfonia de Bethoveen), quase como uma bênção de afago ao miúdo em sofrimento e que dividem o filme em três partes, como numa fábula contemporânea: exposição, acção e resolução e aí a 5ª sinfonia inunda o ecrã. Tal como nos contos infantis há um miúdo (o concentradíssimo Thomas Doret de apenas 13 anos, escolhido de entre 150 crianças, e quase lhe vemos a respiração), insistentemente vestido de vermelho, e tudo de mau lhe acontece num recanto escuro da floresta. Depois há uma fada, muito pouco azul, nada sentimental - é apenas uma cabeleireira de bairro que se interessou pela criança abandonada, e por causa dele até abdica do namorado. Porque sim, os irmãos Dardenne nunca se detêm em explicações nem em teorizações piegas, preferem a elipse, e fazem o filme andar em frente. Talvez porque, numa ocasião, os destinos da mulher e do miúdo se encontraram num abraço que foi mais um aperto - isso bastou. E onde há uma fada, há sempre o contraponto, um lobo mau, que se oculta nos esconsos do arvoredo. Ou uma dupla de felinos que sustêm Pinóquio no seu caminho para a escola, portadores de tantos atrativos, contra os quais nem as fadas mais azuis conseguem competir.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
ENTREVISTA COM JEAN-PIERRE E LUC DARDENNE
Qual a origem de O MIÚDO DA BICICLETA?
Luc: Tivemos essa história nas nossas cabeças durante muito tempo: uma mulher que ajuda um rapaz a emergir da violência que o mantém prisioneiro. A primeira imagem foi a deste rapaz, este ser em tumulto, suavizado graças a outro ser humano.
Jean-Pierre: Primeiro imaginámos Samantha como uma médica mas mudámos de opinião e decidimos que ela seria uma cabeleireira, instalada no seu bairro desde há bastante tempo.
Este é um filme muito comovente sem nunca cair em sentimentalismos.
Jean-Pierre: Graças a Deus!
Luc: Nunca quisemos que o público percebesse porque é que a Samantha se sentia arrastada por Cyril. Não queríamos explicações psicológicas. Não queríamos que o passado explicasse o presente. Quisemos que o público pensasse: “Ela está a fazer isto!”. E isto já é bastante.
Cyril está sempre em movimento. Ele é incansável.
Jean-Pierre: Sim, ele está muitas vezes na sua bicicleta… Este miúdo sem quaisquer laços corre atrás de amor sem o saber.
As relações entre pais e filhos destacam-se muitas vezes nos vossos filmes: “A Promessa”, “A Criança”, “O Filho”. Porquê?
Luc: Somos todos “filhos de” ou “filhas de”…
Jean-Pierre: A nossa sociedade glorifica o indivíduo. Talvez seja como uma reacção a este facto que regressamos tantas vezes à ideia de vínculo. Mesmo que nem sempre seja biológico, como acontece com Samantha e Cyril.
Apesar da violência da história de Cyril o filme tem um lado luminoso.
Jean-Pierre: Sim, procurámos encontrar alguma fluidez. Filmámos no Verão, o que é uma novidade para nós.
É difícil filmar a bondade?
Luc: Diante dela, a maldade é sempre mais entusiasmante (risos). Era muito importante não retratarmos uma bondade cliché, claro, mas sim mantermo-nos o mais próximos possível desta ideia de abertura e troca.
Jean-Pierre: Filmar uma personagem que tem os melhores sentimentos de outra pessoa no coração não sucede habitualmente connosco. Filmar no Verão ajudou-nos a dar ao filme alguma claridade e suavidade. E Cécile de France reúne estas qualidades naturalmente.
É pouco habitual trabalharem com actores conhecidos.
Luc: Nada foi programado. Nunca escrevemos com um actor específico em mente. Mal terminámos o argumento começámos a pensar em actrizes e em Cécile em primeiro lugar. Com ela sabíamos que evitaríamos toda a psicologia… que o seu corpo e rosto seriam suficientes. Entregámos-lhe o argumento e ela aceitou logo. Ela fez-nos algumas perguntas relativamente às motivações da sua personagem. Dissemos-lhe que a Samantha estava ali, e ponto final. Ela acreditou em nós.
Ela parece ter redescoberto o seu sotaque belga…
Jean-Pierre: Sim! Fomos muito cuidadosos com o sotaque. Não queríamos o efeito “chegou a actriz francesa!”. A Cécile é belga, não nos esqueçamos disto. Ela cresceu não muito longe da região onde o filme se desenrola mas o seu sotaque é ligeiro e não quisemos exagerá-lo.
Como encontraram Thomas Doret, o rapaz que interpreta Cyril e que está quase sempre no ecrã?
Jean-Pierre: Com o método habitual quando se procuram actores daquela idade: pusemos um anúncio nos jornais e depois organizámos um casting com centenas de crianças. Thomas apareceu no primeiro dia, foi o quinto que vimos e chamou logo a atenção.
Luc: Desde o início ficámos impressionados com a expressão dos seus olhos, com o seu ar teimoso, o seu aspecto concentrado…
Jean-Pierre: Ele tinha também uma capacidade admirável para aprender os diálogos… e ele tinha muitos. Desde os primeiros testes sentimos que ele era a personagem. Ele tinha um entendimento intuitivo do seu papel. Algo imediatamente preciso e pungente, sem nunca choramingar.
Luc: Ele foi o único a estar de forma consistente durante as 6 semanas de ensaios. Ele tornou-se um líder! Sabia todas as cenas de cor ainda antes de o termos chamado. E quando se enganava ficava verdadeiramente chateado. O Thomas é cinturão castanho no Karate! Isso ajuda-o na concentração e com a memória.
Em O MIÚDO DA BICICLETA temos a cidade mas também a floresta que a rodeia…
Luc: Imaginámos um triângulo geográfico para este filme: a cidade, a floresta e o posto de combustível. A floresta é, para Cyril, um local de atracções perigosas, o local onde ele pode aprender a ser um pequeno criminoso. A cidade encarna o passado com o seu pai e o presente com a Samantha. O posto de combustível é um espaço de transição, onde o enredo sofre muitas reviravoltas.
Jean-Pierre: Quisemos construir o filme como uma espécie de conto de fadas, com vilões que fazem com que o miúdo perca as suas ilusões, e com Samantha, que surge quase como uma fada-madrinha. Durante pouco tempo, chegámos mesmo a pensar dar o título “Um Conto de Fadas dos nossos dias” ao filme.
Pela primeira vez usam música, ainda que com moderação…
Luc: É muito raro nos nossos filmes e hesitámos durante muito tempo. Num conto de fadas é necessário haver um desenvolvimento com emoções e novos começos. Pareceu-nos que a música, em certos momentos, pode funcionar como uma carícia tranquilizadora para Cyril.
Estão de regresso a Cannes, onde já conquistaram duas Palmas de Ouro (por “Rosetta”, em 1999, e “A Criança”, em 2005). O que significa para vocês o Festival?
Jean-Pierre: É muito importante mostrarmos os nossos filmes aqui. É muito agradável voltarmos cá, de cada vez. Adoramos a onda de adrenalina que apenas existe em Cannes.
Luc: O nosso cinema deve muito ao festival. A nossa história continua aqui, uma história feliz até agora…
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Dossier imprensa
Realização e Argumento: Jean-Pierre e Luc Dardenne
Fotografia: Alain Marcoen
Montagem: Marie-Hélène Dozo
Interpretação: Cécile de France, Thomas Doret, Jérémie Renier, Egon Di Mateo, Olivier Gourmet
Origem: Bélgica/ França/ Itália
Ano: 2011
Duração: 87’
Sócios 2€ // Estudantes 3,5€ // Restantes 4€
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