SEDE. 5ªF. 21H30. ENTRADA LIVRE.
CERVEJA A 1 €.
Irreversível. Porque o tempo tudo destrói. Porque alguns actos são irreparáveis. Porque o homem é um animal. Porque o desejo de vingança é uma pulsão natural. Porque a maioria dos crimes fica impune. Porque a perda da pessoa amada destrói como um raio. Porque o amor é a fonte de vida. Porque as premonições não mudam o curso dos acontecimentos. Porque o tempo revela tudo. O pior é o melhor.
Uma jovem mulher, Alex (Monica Bellucci), é violada por um desconhecido num túnel. O seu companheiro, Marcus (Vicent Cassel), e o ex-namorado, Pierre (Albert Dupontel), resolvem fazer justiça pelas próprias mãos.
“Irréversible”, realizado por Gaspar Noé, foi apresentado na última edição do Festival de Cannes. Apesar de ter sido um dos ausentes do palmarés oficial, o filme ficará na história pelas reacções que provocou durante o certame: considerado o filme-choque do ano, amado e odiado pela crítica, não recomendável aos mais sensíveis...
Carimbado como "filme choque" em Cannes, mostra afinal um dos olhares mais pudicos sobre o casal. A única forma de ver algumas das suas cenas pode ser de olhos bem fechados. Mas ainda assim é possível tactear o intenso lirismo do filme. Nestas páginas desfilam os protagonistas de "Irreversível": Gaspar Noé, cineasta nostálgico dos filmes como "experiência de catarse", e o casal Vincent Cassel/Mónica Bellucci, que se sujeitaram à violação da privacidade.
É fácil estar contra um filme quando ainda antes de ele chegar já vem carimbado como "filme choque". Foi o que aconteceu no Festival de Cannes, quando parecia que havia uma "operação" em desenvolvimento.
Do estilo "golpe mediático": um casal de actores famosos (Vincent Cassel/Monica Bellucci), um realizador, Gaspar Noé (argentino a viver e trabalhar em Paris), com fama de "sulfuroso" (mas isso às vezes não é só uma forma de mascarar habilidade para o "marketing"?), jornais e revistas a gritarem "vem aí escândalo", vem aí cena de violação (de nove minutos, em plano sequência, sem truques) e as bilheteiras à espera. O título, tão afirmativo (e tão evidente) como um "slogan", preparava o pior: "Irreversível". Seria mesmo?
O "golpe" parecia confirmar-se aos primeiros minutos de filme: nem o matraquear obsessivo da muralha sonora concebida por Thomas Bangalter, dos Daft Punk, se sobrepôs ao barulho das cadeiras da sala que se esvaziava. Em Cannes forjou-se o mito do ódio de estimação.
As agências noticiosas foram atrás do "voyeurismo" e da "violência", relatando que os serviços locais de emergência tiveram que administrar oxigénio a cerca de 20 espectadores que desmaiaram durante a sessão da meia-noite.
Era o filme para odiar. Melhor: para ignorar. E foi o que fez a imprensa francesa, com dose considerável de soberba. "Foi uma atitude reaccionária. Não houve a mínina tentativa de tentar olhar para o filme". Quem fala (ao telefone, de Paris) é Gaspar Noé, o tal realizador com fama de provocador, que, afinal, mostra em "Irreversível" um dos olhares mais púdicos (isto é escrito sem propósito provocador) sobre o casal.
Sim, coloca o espectador em perigo, e há sequências em que é difícil manter os olhos abertos. Uma coisa e outra nascem de vontade de provocar, e do gosto de administrar uma fama de polémico de que ele já não se livra; ganhou-a com curtas-metragens e com a longa anterior, "Seul contre tous" (1998).
Pode considerar-se que o filme é o gesto inconsequente de um adolescente retardado. Mas também se pode apostar nisto: Gaspar Noé é um cinéfilo que, para além de amar "2001 Odisseia no Espaço", de Kubrick, ou "Un Chien Andalou", de Buñuel, quer devolver ao espectador uma "experiência de catarse" - "algo que ficou perdido", diz, nos libertários anos 70 . "Irreversível" pode ter nascido de um desafio adolescente. Mas como em tudo no filme, nada é tão simples e nada é tão certo. Mesmo de olhos fechados, que pode ser a única forma de ver algumas cenas, é possível tactear os corpos de "Irreversível": flutuam em bolhas de lirismo.
E que tal um porno? É melhor começar pelo princípio. E no princípio, Gaspar Noé cruzou-se com um actor francês, Vincent Cassel, e propôs-lhe, a ele e à mulher, a italiana Monica Bellucci, que arriscassem "um porno, um filme sexualmente explícito, um filme que mostraria o que Tom Cruise e Nicole Kidman tinham falhado [com Kubrick, em 'Eyes Wide Shut']".
Vincent e Monica não arriscaram. "Propus então outra coisa", continua o incansável Gaspar, 39 anos. "'E se fizéssemos um filme de violação e vingança'? Um filme que mostrasse uma cena de violação como não tinha sido ainda mostrada, nem em 'Deliverance' [de John Boorman] ou 'Cães de Palha' [de Sam Peckinpah]?" - aqui é o adolescente Noé a falar, a lembrar-se do cinema dos anos 70 e a desmultiplicar-se em desafios.
Só com duas vedetas, e com um terceiro actor, Albert Dupontel (faz o amigo do casal, personagem que vai revelando uma inquietante ambiguidade - reparem na sua passividade...), lançou-se à improvisação. Sem argumento ("se tivesse, não conseguiria financiamentos"), mas com uma ideia fixa: inverter a estrutura narrativa, progredir do presente para o passado. Começar (de forma brutal) com uma cena de violência num clube nocturno (com o nome, também brutal, de "Rectum"); recuar, para outra cena de violência, num túnel vermelho, num plano sequência: a violação; finalmente, o apaziguamento, ao entrar pela vida íntima de um casal - onde já estava tudo, a destruição. "O tempo destrói tudo", diz uma legenda, como (mais uma vez) um "slogan".
Resumindo, descodificando: Monica Bellucci é violada; Vincent Cassel, o namorado, vinga-se. O filme começa com a vingança, depois segue a cena que supostamente lhe deu origem e a explica. Será mesmo assim?
Não. Ao virar do avesso a estrutura, personagens e acontecimentos libertam-se das relações de causa e efeito. A vingança deixa de ser a resposta a um crime; passa a ser algo de inescapável no caos irreversível. Monica, Vincent e Albert (um amigo do casal) são o trio perdido nessa voragem, e o filme capta a palpitação de perda. Bellucci verbalizou assim: "São três insectos perdidos no tempo". Pela forma como os planos balançam no indefinível, parecem perdidos no espaço (como em "2001...").
O espectador está perdido com eles, sem possibilidade de identificação. É isso que seduz num filme tantas vezes grandiloquente e óbvio: Noé utiliza um dispositivo programático ("o filme ao contrário") e, como uma batalha que parece perdida, luta para o transcender. A camisa de forças - como às vezes funciona a estrutura em "flashback" de "Memento", o filme de Chris Nolan com que "Irreversível" tem sido comparado - revela-se aqui possibilidade de libertação: atira "Irreversível" para os domínios mais inexplicáveis da experiência hipnótica dos sentidos (alguns críticos franceses fizeram o "mea culpa", e após terem ignorado o filme, conseguiram regressar a ele para reconhecerem "momentos de pura poesia").
"Se a estrutura fosse convencional, seria um filme banal, psicológico, em que havia um crime, e a vingança", propõe Noé. "E teria um final histérico. Mas a estrutura invertida permite que seja um filme sobre o tempo. Podia ser um típico filme de vingança dos anos 70, com Charles Bronson, mas assim deixa de haver uma relação de causa e efeito entre os actos. Até porque, se se reparar, a vingança acaba por ser feita sobre a pessoa errada, não sobre o violador".
"2001-Odisseia no Espaço", de Kubrick, é o filme favorito deste ex-assistente do argentino Fernando Solanas ("Tangos - O Exílio de Gardel" e "Sul"). Noé é um espectador voraz, capaz de colocar na lista das suas preferências o cinema de Tod Browning e o videoclip que Michel Gondry fez para os Daft Punk, "Around the World".
O cartaz de "2001...", um dos objectos sobre o filme que colecciona, aparece em "Irreversível", que tem sido classificado de "kubrickiano" pela ambição totalitária e cósmica, pelo pessimismo - até pela forma como mistura Beethoven, Mahler e Thomas Bangalter (Daft Punk). Mas a referência "kubrickiana" será antes "Eyes Wide Shut"; passou algo, para este projecto, daquele desafio inicial feito a Cassel/Bellucci. "Irreversível" é um filme sobre as forças destruidoras no casal, é pesado, gongórico e, simultaneamente, evanescente e doentio - como uma valsa. E como Kubrick fez a Tom e Nicole, Noé joga com o voyeurismo do espectador. Mas o cineasta não é só manipulador: uma das coisas mais comoventes do filme, é, mais uma vez, a forma como Noé aceita sabotar o princípio formal que se impôs, disponibilizando-se para os pedaços de vida que os actores improvisam.
"Monica e Vincent são um casal, em França todos os conhecem e existe a curiosidade em vê-los nus ou na intimidade. Não posso dizer que isso não faça parte do filme, mas não joguei deliberadamente nisso. Na altura de 'Eyes Wide Shut' dizia-se que havia cenas escabrosas e, na verdade, não havia; o meu olhar também é pudico. É claro que os actores só fizeram o que queriam fazer. Todo o filme é improvisado, e eram eles que estabeleciam os limites, até onde é que queriam ir".
Aí, é impressionante o que faz Bellucci. Há que dizer que se sujeitou a uma operação perversa. Tem sido a "bimba" de serviço em algum cinema italiano, oferecendo uma sensualidade óbvia, conquistadora, para mostrar que nela vivem as divas italianas do passado. Ora, com "Irreversível" é isso que Noé castiga: não foi por que se sujeitou, na tal cena de violação de nove minutos, a uma imolação, que ganha o respeito e a serenidade de actriz?
"Foi ela que estabeceleu os limites, que decidiu o que podia ou não fazer", conta o realizador. "Monica é muito mais interessante como pessoa, do que os filmes até agora tinham mostrado. Dão-lhe sempre maquilhagem e guarda-roupa e diálogos parvos. Aqui, nem sequer tinha diálogos, só podia ser ela mesma. Teve mais colhões do que qualquer um de nós. O grande risco do filme foi o dela".
O risco também é o do espectador. "Ver um filme é uma experiência de catarse", diz Gaspar. "É por isso que as pessoas vão ao cinema, para terem uma experiência de catarse física ou sairem mais enriquecidas psicologicamente - é claro que como no meu filme as pessoas saem a meio, essa experiência pode ficar interrompida (risos). Os espectadores já viram tudo, e já não acreditam em nada, já sabem que tudo é artifício. A cena de violação foi filmada num plano sequência, e é isso que perturba: dá a ilusão de que não há truques. Mas não, todo o cinema é artifício. De qualquer forma, é interessante que, pelo menos em França, os espectadores que mais acharam a cena insuportável tivessem sido homens; foram eles que saíram. Se calhar foram obrigados a confrontar-se com fantasmas, os que ainda povoam as relações entre homem e mulher. Há dias ia na rua e vi um miúdo a meter-se com uma mulher, um miúdo normal; de repente parecia que estava ali em potência o violador do filme. Dito isto não estou a querer dizer que 'Irreversível' é um filme feminista".
Nem é preciso chegar a isso. Basta dizer que, no meio do barulho mediático, do barulho sonoro e visual, o que fica deste filme não é violação, não é o "choque". É o apaziguamento, o silêncio - quase que apetece dizer, sem truques.
.CERVEJA A 1 €.
Irreversível. Porque o tempo tudo destrói. Porque alguns actos são irreparáveis. Porque o homem é um animal. Porque o desejo de vingança é uma pulsão natural. Porque a maioria dos crimes fica impune. Porque a perda da pessoa amada destrói como um raio. Porque o amor é a fonte de vida. Porque as premonições não mudam o curso dos acontecimentos. Porque o tempo revela tudo. O pior é o melhor.
Uma jovem mulher, Alex (Monica Bellucci), é violada por um desconhecido num túnel. O seu companheiro, Marcus (Vicent Cassel), e o ex-namorado, Pierre (Albert Dupontel), resolvem fazer justiça pelas próprias mãos.
“Irréversible”, realizado por Gaspar Noé, foi apresentado na última edição do Festival de Cannes. Apesar de ter sido um dos ausentes do palmarés oficial, o filme ficará na história pelas reacções que provocou durante o certame: considerado o filme-choque do ano, amado e odiado pela crítica, não recomendável aos mais sensíveis...
Carimbado como "filme choque" em Cannes, mostra afinal um dos olhares mais pudicos sobre o casal. A única forma de ver algumas das suas cenas pode ser de olhos bem fechados. Mas ainda assim é possível tactear o intenso lirismo do filme. Nestas páginas desfilam os protagonistas de "Irreversível": Gaspar Noé, cineasta nostálgico dos filmes como "experiência de catarse", e o casal Vincent Cassel/Mónica Bellucci, que se sujeitaram à violação da privacidade.
É fácil estar contra um filme quando ainda antes de ele chegar já vem carimbado como "filme choque". Foi o que aconteceu no Festival de Cannes, quando parecia que havia uma "operação" em desenvolvimento.
Do estilo "golpe mediático": um casal de actores famosos (Vincent Cassel/Monica Bellucci), um realizador, Gaspar Noé (argentino a viver e trabalhar em Paris), com fama de "sulfuroso" (mas isso às vezes não é só uma forma de mascarar habilidade para o "marketing"?), jornais e revistas a gritarem "vem aí escândalo", vem aí cena de violação (de nove minutos, em plano sequência, sem truques) e as bilheteiras à espera. O título, tão afirmativo (e tão evidente) como um "slogan", preparava o pior: "Irreversível". Seria mesmo?
O "golpe" parecia confirmar-se aos primeiros minutos de filme: nem o matraquear obsessivo da muralha sonora concebida por Thomas Bangalter, dos Daft Punk, se sobrepôs ao barulho das cadeiras da sala que se esvaziava. Em Cannes forjou-se o mito do ódio de estimação.
As agências noticiosas foram atrás do "voyeurismo" e da "violência", relatando que os serviços locais de emergência tiveram que administrar oxigénio a cerca de 20 espectadores que desmaiaram durante a sessão da meia-noite.
Era o filme para odiar. Melhor: para ignorar. E foi o que fez a imprensa francesa, com dose considerável de soberba. "Foi uma atitude reaccionária. Não houve a mínina tentativa de tentar olhar para o filme". Quem fala (ao telefone, de Paris) é Gaspar Noé, o tal realizador com fama de provocador, que, afinal, mostra em "Irreversível" um dos olhares mais púdicos (isto é escrito sem propósito provocador) sobre o casal.
Sim, coloca o espectador em perigo, e há sequências em que é difícil manter os olhos abertos. Uma coisa e outra nascem de vontade de provocar, e do gosto de administrar uma fama de polémico de que ele já não se livra; ganhou-a com curtas-metragens e com a longa anterior, "Seul contre tous" (1998).
Pode considerar-se que o filme é o gesto inconsequente de um adolescente retardado. Mas também se pode apostar nisto: Gaspar Noé é um cinéfilo que, para além de amar "2001 Odisseia no Espaço", de Kubrick, ou "Un Chien Andalou", de Buñuel, quer devolver ao espectador uma "experiência de catarse" - "algo que ficou perdido", diz, nos libertários anos 70 . "Irreversível" pode ter nascido de um desafio adolescente. Mas como em tudo no filme, nada é tão simples e nada é tão certo. Mesmo de olhos fechados, que pode ser a única forma de ver algumas cenas, é possível tactear os corpos de "Irreversível": flutuam em bolhas de lirismo.
E que tal um porno? É melhor começar pelo princípio. E no princípio, Gaspar Noé cruzou-se com um actor francês, Vincent Cassel, e propôs-lhe, a ele e à mulher, a italiana Monica Bellucci, que arriscassem "um porno, um filme sexualmente explícito, um filme que mostraria o que Tom Cruise e Nicole Kidman tinham falhado [com Kubrick, em 'Eyes Wide Shut']".
Vincent e Monica não arriscaram. "Propus então outra coisa", continua o incansável Gaspar, 39 anos. "'E se fizéssemos um filme de violação e vingança'? Um filme que mostrasse uma cena de violação como não tinha sido ainda mostrada, nem em 'Deliverance' [de John Boorman] ou 'Cães de Palha' [de Sam Peckinpah]?" - aqui é o adolescente Noé a falar, a lembrar-se do cinema dos anos 70 e a desmultiplicar-se em desafios.
Só com duas vedetas, e com um terceiro actor, Albert Dupontel (faz o amigo do casal, personagem que vai revelando uma inquietante ambiguidade - reparem na sua passividade...), lançou-se à improvisação. Sem argumento ("se tivesse, não conseguiria financiamentos"), mas com uma ideia fixa: inverter a estrutura narrativa, progredir do presente para o passado. Começar (de forma brutal) com uma cena de violência num clube nocturno (com o nome, também brutal, de "Rectum"); recuar, para outra cena de violência, num túnel vermelho, num plano sequência: a violação; finalmente, o apaziguamento, ao entrar pela vida íntima de um casal - onde já estava tudo, a destruição. "O tempo destrói tudo", diz uma legenda, como (mais uma vez) um "slogan".
Resumindo, descodificando: Monica Bellucci é violada; Vincent Cassel, o namorado, vinga-se. O filme começa com a vingança, depois segue a cena que supostamente lhe deu origem e a explica. Será mesmo assim?
Não. Ao virar do avesso a estrutura, personagens e acontecimentos libertam-se das relações de causa e efeito. A vingança deixa de ser a resposta a um crime; passa a ser algo de inescapável no caos irreversível. Monica, Vincent e Albert (um amigo do casal) são o trio perdido nessa voragem, e o filme capta a palpitação de perda. Bellucci verbalizou assim: "São três insectos perdidos no tempo". Pela forma como os planos balançam no indefinível, parecem perdidos no espaço (como em "2001...").
O espectador está perdido com eles, sem possibilidade de identificação. É isso que seduz num filme tantas vezes grandiloquente e óbvio: Noé utiliza um dispositivo programático ("o filme ao contrário") e, como uma batalha que parece perdida, luta para o transcender. A camisa de forças - como às vezes funciona a estrutura em "flashback" de "Memento", o filme de Chris Nolan com que "Irreversível" tem sido comparado - revela-se aqui possibilidade de libertação: atira "Irreversível" para os domínios mais inexplicáveis da experiência hipnótica dos sentidos (alguns críticos franceses fizeram o "mea culpa", e após terem ignorado o filme, conseguiram regressar a ele para reconhecerem "momentos de pura poesia").
"Se a estrutura fosse convencional, seria um filme banal, psicológico, em que havia um crime, e a vingança", propõe Noé. "E teria um final histérico. Mas a estrutura invertida permite que seja um filme sobre o tempo. Podia ser um típico filme de vingança dos anos 70, com Charles Bronson, mas assim deixa de haver uma relação de causa e efeito entre os actos. Até porque, se se reparar, a vingança acaba por ser feita sobre a pessoa errada, não sobre o violador".
"2001-Odisseia no Espaço", de Kubrick, é o filme favorito deste ex-assistente do argentino Fernando Solanas ("Tangos - O Exílio de Gardel" e "Sul"). Noé é um espectador voraz, capaz de colocar na lista das suas preferências o cinema de Tod Browning e o videoclip que Michel Gondry fez para os Daft Punk, "Around the World".
O cartaz de "2001...", um dos objectos sobre o filme que colecciona, aparece em "Irreversível", que tem sido classificado de "kubrickiano" pela ambição totalitária e cósmica, pelo pessimismo - até pela forma como mistura Beethoven, Mahler e Thomas Bangalter (Daft Punk). Mas a referência "kubrickiana" será antes "Eyes Wide Shut"; passou algo, para este projecto, daquele desafio inicial feito a Cassel/Bellucci. "Irreversível" é um filme sobre as forças destruidoras no casal, é pesado, gongórico e, simultaneamente, evanescente e doentio - como uma valsa. E como Kubrick fez a Tom e Nicole, Noé joga com o voyeurismo do espectador. Mas o cineasta não é só manipulador: uma das coisas mais comoventes do filme, é, mais uma vez, a forma como Noé aceita sabotar o princípio formal que se impôs, disponibilizando-se para os pedaços de vida que os actores improvisam.
"Monica e Vincent são um casal, em França todos os conhecem e existe a curiosidade em vê-los nus ou na intimidade. Não posso dizer que isso não faça parte do filme, mas não joguei deliberadamente nisso. Na altura de 'Eyes Wide Shut' dizia-se que havia cenas escabrosas e, na verdade, não havia; o meu olhar também é pudico. É claro que os actores só fizeram o que queriam fazer. Todo o filme é improvisado, e eram eles que estabeleciam os limites, até onde é que queriam ir".
Aí, é impressionante o que faz Bellucci. Há que dizer que se sujeitou a uma operação perversa. Tem sido a "bimba" de serviço em algum cinema italiano, oferecendo uma sensualidade óbvia, conquistadora, para mostrar que nela vivem as divas italianas do passado. Ora, com "Irreversível" é isso que Noé castiga: não foi por que se sujeitou, na tal cena de violação de nove minutos, a uma imolação, que ganha o respeito e a serenidade de actriz?
"Foi ela que estabeceleu os limites, que decidiu o que podia ou não fazer", conta o realizador. "Monica é muito mais interessante como pessoa, do que os filmes até agora tinham mostrado. Dão-lhe sempre maquilhagem e guarda-roupa e diálogos parvos. Aqui, nem sequer tinha diálogos, só podia ser ela mesma. Teve mais colhões do que qualquer um de nós. O grande risco do filme foi o dela".
O risco também é o do espectador. "Ver um filme é uma experiência de catarse", diz Gaspar. "É por isso que as pessoas vão ao cinema, para terem uma experiência de catarse física ou sairem mais enriquecidas psicologicamente - é claro que como no meu filme as pessoas saem a meio, essa experiência pode ficar interrompida (risos). Os espectadores já viram tudo, e já não acreditam em nada, já sabem que tudo é artifício. A cena de violação foi filmada num plano sequência, e é isso que perturba: dá a ilusão de que não há truques. Mas não, todo o cinema é artifício. De qualquer forma, é interessante que, pelo menos em França, os espectadores que mais acharam a cena insuportável tivessem sido homens; foram eles que saíram. Se calhar foram obrigados a confrontar-se com fantasmas, os que ainda povoam as relações entre homem e mulher. Há dias ia na rua e vi um miúdo a meter-se com uma mulher, um miúdo normal; de repente parecia que estava ali em potência o violador do filme. Dito isto não estou a querer dizer que 'Irreversível' é um filme feminista".
Nem é preciso chegar a isso. Basta dizer que, no meio do barulho mediático, do barulho sonoro e visual, o que fica deste filme não é violação, não é o "choque". É o apaziguamento, o silêncio - quase que apetece dizer, sem truques.
Vasco Câmara, Público
(link na imagem)
Realização: Gaspar Noé
Argumento: Gaspar Noé
Música: Thomas Bangalter
Fotografia: Benoît Debje e Gaspar Noé
Montagem: Gaspar Noé
Interpretação: Monica Bellucci (Alex), Vincent Cassel (Marcus), Albert Dupontel (Pierre), Philippe Nahon (Philippe),
Jo Prestia (Le Tenia), Stéphane Drouot (Stéphane), Jean-Louis Costes (gay morto no bar),
Mourad Khima (Mourad)
Origem: França
Ano: 2002
Duração: 95’
Argumento: Gaspar Noé
Música: Thomas Bangalter
Fotografia: Benoît Debje e Gaspar Noé
Montagem: Gaspar Noé
Interpretação: Monica Bellucci (Alex), Vincent Cassel (Marcus), Albert Dupontel (Pierre), Philippe Nahon (Philippe),
Jo Prestia (Le Tenia), Stéphane Drouot (Stéphane), Jean-Louis Costes (gay morto no bar),
Mourad Khima (Mourad)
Origem: França
Ano: 2002
Duração: 95’
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