uma nova versão baseada na banda sonora original d'“A Costa dos Murmúrios” de Margarida Cardoso
Entrevista a Margarida Cardoso
Quando nasceu a vontade de fazer este filme?
Li o romance da Lídia Jorge,
“A Costa dos Murmúrios”, no início dos anos 90 quando ainda não pensava em
realizar. O livro tocou-me por razões muito pessoais: tudo se passava em sítios
que eu conhecia, num ambiente em que eu vivera, o dos militares portugueses em
África e das suas famílias, durante a guerra colonial. Vivi em Moçambique entre
1965 e 1975, dos 2 aos 12 anos, em Lourenço Marques [hoje Maputo] e depois na
Beira já que o meu pai era militar, da Força Aérea.
Só voltei a Moçambique em 96
e sofri um choque ao deparar com uma sociedade destruída e tão difícil de
compreender, com um povo desfeito, sem dignidade nenhuma, uma dignidade que lhe
tinha sido tirada, roubada... A minha história pessoal está para sempre ligada àquela
terra, que foi afinal o local da minha infância, e penso que, por isso, é
difícil não querer, com toda a força, responder à pergunta “o que foi que
correu tão mal nisto tudo?”. Correu mal para todos, para os africanos, para os
portugueses, para todos os que sofreram com o absurdo que foi o colonialismo.
Este “absurdo” marcou muitas pessoas da minha idade e fez com que muitos de nós
ficássemos para sempre sem pertencer realmente a lugar nenhum. O meu percurso
mais íntimo está relacionado com factos históricos, com a guerra colonial, com
a revolução de 1974 em Portugal, com o regresso de África, acontecimentos que
marcaram e mudaram muitas vidas. Ainda hoje há coisas que me fazem chorar
imenso, sem saber porquê, como ver pessoas a fugir, imagens de refugiados,
gente a ter que sair das suas terras. Deixam-me desfeita. Acho que isso tem a
ver com esse período, com uma perda que não é só emocional, é geográfica
também. Em Moçambique, ainda por cima, a mudança foi dramática. Queres
revisitar o sítio onde colocaste fisicamente as tuas memórias mas nunca o
encontras... Parece que alguma coisa da tua vida ficou para sempre escondida,
nas pregas da História, e isso é um pouco angustiante. Acho que foi esta
necessidade de procura, que já está presente nos meus documentários anteriores,
que me fez adaptar “A Costa dos Murmúrios”. Percebi que aquilo que queria
procurar estava ali, naquele tempo e naquele lugar.
Em que medida é que a “Costa dos Murmúrios”, que não é uma
história tua, é uma história autobiográfica para ti?
No fundo é, mas só no
sentido em que são as minhas experiências pessoais, as minhas emoções e
recordações – muito mais que uma lealdade cega à adaptação do livro –, que me
serviram de referência para o filme. Por exemplo, agora quando vejo o filme parece--me
claro ser mais um filme sobre a violência do que sobre a guerra. Porque senti a
guerra, e ainda a sinto, como uma espécie de violência em ricochete, uma
violência em eco... O que chegava ao mundo a que eu pertencia, que era o mundo
das mulheres e das crianças, era uma violência quase “doméstica”, vinda neste
caso dos homens que tinham estado na guerra e que, ao voltar, exerciam essa
violência sobre tudo o que os rodeava, de uma forma inconsciente. A violência
sobre as mulheres era muito comum, por exemplo. Estava sempre latente,
sentia-se imenso e era algo muito ofensivo.
Outro exemplo da utilização
de referências pessoais está no facto de o filme ser tão fechado, tão interior.
De facto, sempre vivi mais nas cidades, muitas vezes apenas com a minha mãe e a
minha irmã e, sozinhas, não íamos propriamente passear para a savana... Fora as
praias, que eram na altura o local exterior de eleição para os passeios das
famílias, o resto parecia-me tudo muito interior, fechado, escuro. Era tudo
muito opressivo, pois também nessa altura começaram a morrer muitos militares
e, no hotel onde vivíamos, havia sempre um ambiente de morte. Lembro-me das
jovens viúvas a chorarem nos quartos escuros, consoladas por outras mulheres e
observadas por grupos de crianças incrédulas...
Os povos parecem ter formas diferentes de reagir aos períodos
traumáticos da sua história. Os americanos, em relação ao vietname, exploraram
desde o início esse tema cinematograficamente, como uma psicanálise pública, um
exorcismo nacional. Ao contrário, em Portugal, a guerra colonial sempre foi um
tema escondido, abafado, ignorado pelo cinema. Só muito recentemente esse
período histórico e a relação com as ex-colónias voltou aos ecrãs, quase sempre
tratado por uma geração mais nova, que consegue olhar para isso de outra forma.
Porquê?
Acho que isso não se passa
apenas em Portugal, os franceses sofrem exactamente do mesmo problema... Os
americanos são assim, são capazes de encenar os seus dramas com grande
facilidade, são pragmáticos. Mas mesmo que alguns filmes sejam interessantes,
capazes de dúvida e reflexão, a maioria não reflecte nada sobre nada,
limitando-se a expor e representar a situação. Os americanos diferem de nós
porque não sentem culpa. Nós sentimo-la realmente. Não só a culpa do colonialismo,
também a culpa da incompreensão. Eu própria, que me sinto bem em África, sinto
que historicamente se passou algo indelével, que não há como apagar. Isso
reflecte-se na incompreensão daquela sociedade, dividida até hoje entre aqueles
que vivem nas cidades com um determinado nível cultural e económico e fora
delas toda uma gigantesca população cujo funcionamento social e cultural nos
escapa.
Para falar de África é
sempre preciso, primeiro, explicar África, o que é uma pena e muito redutor.
Quando queremos falar de África, tratar determinados assuntos, temos que lidar
sempre com a terrível culpa de não estar a fazer justiça a nada porque estamos
a falar de uma coisa que não é verdadeiramente África mas aquilo que nós
conseguimos perceber de África, que é muito pouco. A única maneira de lidar com
isso é sacudir essa culpa e pensar que se falarmos de sentimentos e emoções
universais, as nossas hipóteses de sermos injustos são mais reduzidas...
Em Portugal, não temos
grande tradição de expressão dramática nem facilidade em nos representarmos a
nós próprios, talvez pelas nossas características identitárias altamente
confusas. Após a revolução, a reflexão sobre o que se tinha passado a nível
colectivo era: “então foste para a
guerra matar o nosso irmão negro, devias era ter fugido para França...” Ora, a
maior parte das pessoas que tinham combatido em África vinham de meios muito
pobres, nem dinheiro tinham para comer e, provavelmente, nem sabiam para que
lado era França... Esta interpretação história culpabilizante fez com que
durante anos ninguém tenha conseguido falar sobre esse período histórico.
Agora, com o desenvolvimento
cultural do país mas, principalmente, com o tempo que sara muitas feridas,
começaram a surgir pessoas a falarem desse tempo, não tentando propriamente
reconstituir as coisas de uma forma global ou encontrar uma verdade absoluta
sobre coisas, mas através de reflexões mais íntimas e emotivas. E hoje
começa-se a criar uma aceitação desse imaginário colectivo. É composto de
várias pequenas coisas e cada uma delas é uma verdade.
Esta história da Evita que abre os olhos e descobre um noivo
que afinal é outro naquele contexto, não só ele como o mundo também é outro – a
cena em que evita chora na cama num plano de pernas para o ar, metáfora de um
mundo que também está de pernas para o ar – é um filme sobre a descoberta do
quê?
É sobretudo um filme sobre a violência de uma perda. A perda
da evita é sobretudo uma perda identitária, não saber quem é, ali. O filme
acabou por ser o percurso desta mulher que quer tentar perceber e vai cada vez
mais e mais longe. Não se aproxima de dentro, ela vai sendo sobretudo
influenciada por coisas que lhe são exteriores. E esse percurso acaba de uma
forma que não é conclusiva, aliás não queria e não gosto desse tipo de
resolução, num último movimento de libertação. Não se pode dizer que a morte do
luís, no final, seja conclusiva porque ele já estava morto antes. Quando ele
morre, ela diz em off “... Encontraram o corpo do alferes luís galex...” Que é
a alcunha de guerra de luís. Ele é, para ela, alguém que tinha desaparecido há
muito tempo ou que nunca lá tinha estado, aliás. Para mim, é a coisa mais
humana e lógica que existe. Talvez não haja uma solução, as coisas vão passando
e depois encontram-se outras, é só mais um percurso. Essencialmente, o que
achei importante foi a questão do regresso à história do personagem da evita.
Para mim, a evita é sobretudo um olho. Ela fala pouco aliás, não é activa,
assiste. Queria que ela fosse uma personagem intemporal, sem características
que associamos às mulheres dos anos 60, como a submissão por exemplo, podendo
ser qualquer uma de nós, hoje. É uma mistura do que foi e daquilo que é hoje,
ao relembrar isso. Por isso é importante que ela não se relacione
verdadeiramente com nada, nem com as mulheres do stella maris, nem com o
jornalista que pertence a mundo que ela não conhece e que até a repugna um
pouco, nem com o marido que também já está longe. O ser um personagem
intemporal representa também o nunca sabermos se ela está lá ou não. Há sempre
uma grande dúvida sobre os factos e sobre a sua própria capacidade de os
reconstituir, muito tempo depois.
O livro contém dois relatos.
O primeiro é um conto curto chamado “Os Gafanhotos” e a segunda parte é “A
Costa dos Murmúrios”, na qual acabei por me concentrar. São muito diferentes. O
primeiro tem um registo quase onírico, é uma visão da história muito
misteriosa, e o outro é a sua explicação, num tom mais realista. É uma
revisitação do primeiro livro, de um ponto de vista actual, de alguém que está
a olhar para aqueles factos à distância, a ponto de já não se reconhecer a si
própria. Quando comecei a construir a linha narrativa do filme, fui obrigada a
fazer uma escolha já que o tom de um e outro eram incompatíveis, caso não fosse
explícito existirem duas narrações diferentes. Assim, “Os Gafanhotos” ficaram
apenas na voz off da personagem de Evita, que fala com um interlocutor
invisível, que se crê ser o autor da história da qual ela era a protagonista.
A guerra, vista por esta perspectiva, é também uma
demonstração de como não há guerras assépticas que se passam num determinado
sítio, afinal invadindo tudo em redor, contaminando toda a gente?
Claro que contaminam tudo e
todos e num raio temporal muito grande. A questão da guerra é estranha para
mim, porque não a vejo senão ligada à questão humana. No fundo, o que me custa
mais é a infalibilidade dessa característica humana. A guerra é sempre absurda.
Nessa época, apesar de tudo eram conduzidas por ideologias, hoje cada vez mais
os verdadeiros interesses se tornam difíceis de identificar. Mas a natureza
mais profunda da guerra parece não se despegar de nós de maneira nenhuma.
O personagem da Helena é um negativo de Evita levado às
últimas consequência?
Na realidade, eles são todos
os mesmos personagens. Foi sempre a minha ideia, desde o início. Tanto Evita
como o seu marido, o Luís, são figuras passivas. E há dois personagens activos,
Helena e Forza Leal. Luís e Evita são afinal as suas sombras e é esta última,
uma sombra, que nos leva através desse percurso. Se Evita não fosse pura e
simplesmente a representação de qualquer coisa, seria igual a Helena. Como
personagem, Helena é exagerada, com um dramatismo intrínseco, nem sabemos bem
se estará um pouco louca... Mas quando Evita olha para Helena, vê-se a si
própria, vê o que não quer ser. Helena tenta mostrar a Evita a evidência das
suas similitudes, tenta colar-se a ela, arrastá-la para um local sinistro...
Luís e Jaime Forza Leal são também a mesma pessoa. Forza Leal é o interior de
Luís, e de Luís só resta uma espécie de corpo sem alma, um recipiente vazio.
A fotografia é belíssima: o filme começa absolutamente claro,
etéreo, livre, no espaço aberto do terraço, e depois vai escurecendo, pesando,
fechando-se até chegar àquele cubículo, lugar de morte. Como foi o processo de
trabalho, filmando em HD?
Tudo foi muito pensado e
preparado, todo a evolução visual do filme, a nível de luz, dos décors, etc.
Claro que numa pequena produção cheia de contingências económicas é difícil ser
perfeito e manter essas premissas, mas acho que se conseguiu. A ideia foi
sempre começar com um ambiente mais caloroso, mais claro, mais aberto ir parar
a algo muito mais claustrofóbico. Entre o escrever, montar a produção e o
filmar, este filme demorou quatro anos. Tivemos três meses de preparação antes
da rodagem e sete semanas de filmagens, das quais três em Moçambique. Grande
parte da preparação foi passada a falar com a Ana Vaz, responsável pela
direcção de arte, e com a Lisa Hagstrand, que fez a fotografia.
A opção do HD foi
determinada exclusivamente pela vontade de me libertar das restrições de
película. Nunca tinha filmado em HD e a Lisa também não, por isso foi uma
aprendizagem para ambas. Durante os ensaios, eu fazia a câmara e a Lisa ia
iluminando tendo como referência o monitor, pois o visor da câmara é a preto e
branco e, na realidade, confesso que não se vê grande coisa... Depois, na
altura de filmar, trocávamos de posição. Eu ficava no monitor e ela operava a
câmara.
No início, pensei que o filme terminaria com Evita, após
reconhecer o cadáver do marido, caminhando pela praia. Mas era necessário que o
filme acabasse fechado, daí a noite, os planos de janelas. Já acabei outros
filmes assim, para mim as janelas são uma imagem muito simbólica: são coisas que
se passam para lá de nós e que vemos assim... É uma sombra que passa, uma luz
que se acende, outra que se apaga. Sabemos que existem “outros” mas a nossa
capacidade de nos aproximarmos de qualquer coisa mais íntima é limitada.
Porque, afinal, a verdadeira compreensão do outro é sempre impossível.
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