Realização: Margarida Cardoso
Argumento: Cédric Basso e Margarida Cardoso
Baseado no Romance Homónimo de Lídia Jorge "A Costa dos
Murmúrios
Fotografia: Lisa Hagstrand
Montagem: Pedro Marques
Música Original: Bernardo Sassetti
Interpretação: Beatriz
Batarda, Filipe Duarte, Mónica Calle, Adriano Luz , Luís Sarmento
Origem: Portugal/França
Ano: 2004
Duraçâo:120’
SINOPSE
“Sim, é verdade, nesse tempo chamavam-me assim (...) Nesse
tempo Evita era eu (...)"
”Evita recorda e corrige uma história que já lhe pertenceu.”
No final dos anos 60, Evita chega a Moçambique para casar com
Luís, um estudante de matemática que ali cumpre o serviço militar. Evita
rapidamente se apercebe que Luís já não é o mesmo e que, perturbado pela
guerra, se transformou num triste imitador do seu capitão, Forza Leal. Os homens partem para uma grande operação militar no norte.
Evita fica sozinha e, no desespero de tentar compreender o que modificou Luís,
procura a companhia de Helena, a mulher de Forza Leal. Submissa e humilhada,
Helena é prisioneira na sua casa onde cumpre uma promessa. É ela quem revela o
lado negro de Luís... Perdida num mundo que não é o seu, Evita apercebe-se da
violência de um tempo colonial à beira do fim. Um tempo de guerra, de
perda e de culpa.
Margarida Cardoso anda no cinema há mais de vinte anos.
Começou anotadora de Lauro António, em 1983, numa série de televisão («Histórias
de Mulheres») e, a partir daí, encetou a tarimba da profissão em produções
portuguesas e estrangeiras rodadas entre nós. Demorou mais de urna década a
assinar o seu primeiro filme - uma curta-metragem (Dois Dragões, 1996).
«Trabalhar como anotadora e como assistente de realização torna-se
viciante", (...) “ Mas a certa altura comecei a ter dificuldades em
aceitar o que via fazer...» Decide, então, tornar-se realizadora. E se essa
primeira curta revelava, pelo menos, um olhar social com alguma argúcia e uma
«mão» com potencialidades, Entre Nós (outra curta, em 1999) deu-nos a certeza
que havia nela um olhar de cineasta. Mas foi no documentário que,
verdadeiramente, se firmou. "Cansei-me de ver a relação dos filmes com a
realidade completamente deturpada, em que o que conta é a eficácia do que se
está a dizer, mas o conteúdo não tem nada a ver com nada. Isso enjoou-me tanto
que a vocação pelo documentário foi quase natural”. Natal de 71 (2000), Com
Quase Nada (2000), co-realizado com Carlos Barroco, e Kuxa-Kanema (2002) são os
três documentários (todos sobre temas relacionados com África que afirmam o
nome de Margarida Cardoso. Natal de 71 revela, aliás, uma das coisas essenciais
que propiciaram a justeza de A Costa dos Murmúrios: o conhecimento da realidade
da "família militar” (como então se dizia), os ambientes de retaguarda, as
messes, o espírito vigente.
No arranque de A Costa dos Murmúrios pesa muito positivamente
a prática documentarística. Aquelas imagens de arquivo com á canção de Simone
de Oliveira por cima empurram-nos para a verdade de uma época e habilmente
mergulham-nos no início dos anos 70 em Moçambique colonial. De repente, nós
estamos lá - e até a maneira como Beatriz Batarda se funde nessas imagens tem
um peso de verdade que é muito raro no cinema português. "Fazer
documentários ajudou-me imenso a lidar com as matérias e, sobretudo, com a
ambiguidade das coisas, a não ter pânico, quando se esta a filmar, em saber se
o material serve para o que queremos dizer. No documentário sabemos que estamos a recolher pedras que vamos
metendo nos bolsos. A rodagem de A Costa dos Murmúrios decorreu de uma forma
muito distendida e foi a experiência do documentário que proporcionou isso.
Porque quando filmo eu sei que está lá qualquer coisa, porque dentro das coisas
existem muitas coisas e as matérias podem-se manipular de uma maneira muito
simples, na montagem. A ficção tem uma vantagem, tudo é muito mais controlado,
tenho pelo menos a certeza que as pessoas não se vão embora no momento em que
as estou a filmar - e pode-se guardar um lado de imprevisto que me agrada
muito».
As filmagens em África foram reduzidas, «apenas três semanas,
só os exteriores. Até as cenas do terraço são feitas cá». Mas a
ilusão/reconstituição é perfeita, os pormenores de época são extremamente
cuidados, ao nível do guarda-roupa, dos penteados e das decorações – A Costa
dos Murmúrios não parece ter sido feito com o orçamento espartano que teve.
Margarida Cardoso viveu em Moçambique, exactamente na época
que o filme retrata, filha de um oficial da Força Aérea que ali fez a guerra.
«Quando li o romance da Lídia Jorge senti um grande choque emocional. A memória
da minha infância é confusa, mas recheada de coisas fortíssimas, como a guerra,
o peso que sentia quando o meu pai ia para o Norte, a solidão da sua ausência,
e quando li o livro, isso estava lá tudo. Faz parte da minha essência que eu
tento compreender e sobre a qual tenho vontade de falar».
A selecção dos actores foi uma aposta interessante. «Aquela
gente, eu conheço-a. São pessoas de uma classe média, sem 'glamour', com muitos
defeitos. Na escolha dos actores tive isso muito presente. No princípio quem
estava indigitado para interpretar o bárbaro Forza Leal era Rogério Samora.
Depois, quando se verificou ser impossível e ele saiu do projecto, a realizador
tentou “libertar a cabeça de modelos físicos pré-concebidos e pensar num actor,
não em termos de rosto, mas em termo de carácter psicológico». Adriano Luz
revelou-se ganhador em todos os tabuleiros. A escolha de Mónica Calle foi mais
óbvia: “Eu acho que a Mónica contém em si toda aquela inquietação da Helena de
Tróia, mas não foi fácil para ela fazer a personagem”. O intérprete para o
papel de Luís é que se revelou mais complicado. «Fiz um 'casting' com vários
actores, porque temos, em Portugal, um problema grave: mulheres há muitas, mas
homens não, principalmente naquela faixa etária. Nos vinte e tal anos, os
homens não parecem homens, não parecem ter maturidade suficiente. Aliás havia
uma cena - que depois cortei na montagem - em que o Luís tirava a Evita da
banheira e pensei muito que precisava de um actor que fizesse isso com vigor: o
Filipe Duarte pareceu-me ser o único capaz de tirar a Beatriz Batarda da
banheira... (risos) personagem, para mais, muito difícil, extremamente passivo,
ambíguo. Eu dei-lhe uma única indicação de fundo: 'Tu não estás cá'. Porque ele
está 'morto', desde o princípio. Morreu dele próprio». Filipe Duarte consegue,
de facto, dar-nos a sensação de uma alma que se partiu, algures.
Beatriz Batarda é, pelo seu lado, congénita ao filme:
«Escolhi-a no momento em que vi o Peixe Lua. Sofri, aliás, bastante, porque
houve um momento em que a, agenda dela parecia tornar impossível que viesse
filmar - e eu, se isso acontecesse, acho que desistiria mesmo da fita. Tinha-me
fixado nela tão completamente que, se não pudesse, tudo se desmoronava na minha
cabeça».
África parece ter-se tornado um «motivo» na filmografia de
Margarida Cardoso. Para continuar? «Se calhar.. Para o passado já dei, como se
costuma dizer. Mas interessa-me falar do presente, porque em África há o
problema das sociedades impossíveis. No filme está mostrado que ou eram eles ou
nós que morríamos. Mas mesmo agora, as pessoas continuam numa guerra surda e as
coisas não se resolvem de maneira nenhuma. Na construção daquela sociedade
houve qualquer coisa que correu mal - e não se sabe muito bem identificar o que
é. Era disso que eu gostava de falar num filme próximo».
Jorge Leitão Ramos, Expresso, 27/11/04
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