"O Cinema do Bernardo" . Quinta 20 . O Milagre Segundo Salomé . 21h30 . Sede CCF

Entrevista a Mário Barroso

Com uma carreira extensa como director de fotografia e alguns apontamentos na realização como surgiu a vontade de realizar uma longa metragem para cinema?
Eu entrei para o IDHEC (Institut Des Hautes Etudes Cinématographiques) de Paris em 1973 e nessa altura nem sequer havia a vertente de direcção de fotografia: só existia o concurso de entrada  para realização. O meu objectivo nessa altura era fazer filmes e não ser director de fotografia. Acontece que os 32 membros da escola de cinema de Paris eram todos realizadores mas era exigido a cada um de nós a escolha duma especialização: montagem ou imagem... E apesar de não ter qualquer aspiração a director de fotografia quando o curso acabou, devido a uma série de acidentes, tive logo a oportunidade de ir fazer um filme para o Irão com essa função e assim comecei um trabalho que se revelava gratificante... Ainda tentei fazer vários filmes em Paris, escrevi argumentos, mandei para o C.N.C. e nada funcionou. Por isso era preciso continuar a trabalhar como director de fotografia mesmo que a vontade de realizar filmes tenha sempre existido. O problema era encontrar o produtor. Entretanto realizei algumas curtas metragens até que o António Cunha Telles me deu a oportunidade de realizar um telefilme para a SIC e foi a partir daí que o Paulo Branco acreditou que eu era capaz de fazer um filme e propôs produzir um dos meus projectos que acabou por ser o MILAGRE SEGUNDO SALOMÉ, que eu já tinha na cabeça há quinze anos...


Porquê adaptar o romance O Milagre Segundo Salomé de José Rodrigues Miguéis?
Depois de ter lido o livro tentei imediatamente comprar os direitos mesmo sem produtor ou alguém que avançasse dinheiro para o seu custo e por isso fui obrigado a recuar... De qualquer forma, nessa altura era um outro filme que eu tinha na cabeça. Aliás, a minha primeira ideia foi a de realizar uma série para televisão. Seria uma adaptação muito próxima do livro, respeitando a sua cronologia e começando com a Salomé e o Zambujeira (nome de Sertório Cerqueira  no romance) e a sua chegada a Lisboa muito jovens. O romance daria origem a uma série muito mais colada à realidade do livro do que o filme que acabei por fazer.
A adaptação é realmente notória no filme...
Tomando consciência que o custo de um projecto desses era incompatível com os nossos meios, no momento em que eu e o Carlos Saboga começámos a trabalhar na adaptação, já sabíamos que toda a reconstituição de época duma cidade – Lisboa – seria confrontada com os meios de produção que iríamos fatalmente ter e por isso seria preciso filmar mais interiores, reduzir imenso nas cenas de exteriores e centrar mais a história na Salomé, transformando-a numa personagem estranha que nós não saberíamos exactamente quem é, do princípio até ao fim, e sobre quem pairaria sempre uma dúvida: será só uma prostituta? Porque é que cada uma das pessoas que ela encontra a vê de forma diferente? Fomo-nos desta forma afastando do romance de José Rodrigues Miguéis o que culminou num final totalmente diferente do da obra... E talvez isto tenha acontecido porque de uma forma inconsciente, a partir do momento em que soube que iria fazer o filme, o livro tenha desaparecido. Porque o que me interessava era o filme e os seus personagens e assim deixei de me preocupar com a obra...
Foi difícil encontrar a Salomé?
Eu queria alguém que fosse relativamente “virgem” a nível profissional, sem ligações a qualquer personagem já existente. Vi muitas jovens actrizes e um dia apareceu-me a Ana Bandeira, que nunca tinha feito nada e que eu achei imediatamente muito bonita mas com uma beleza que tinha simultaneamente algo de popular... A Ana começou por aceitar fazer o filme mas, de repente e sem sabermos muito bem porquê, desistiu. Retomámos o trabalho de procura da protagonista durante um mês até que ela resolveu definitivamente aceitar e ainda bem que o fez...
Como foi a experiência da direcção de actores?
Eu fiz muitos filmes como director de fotografia e estive sempre muito próximo dos actores.. E quando era miúdo a minha grande paixão era ser actor. Infelizmente constatei muito rapidamente que não tinha grande talento para isso. Ainda fiz algumas coisas como actor, como por exemplo um filme de Manoel de Oliveira, mas sobretudo fiz muito teatro em jovem, cheguei a participar no festival mundial de teatro universitário com o grupo Cénico de Direito, em finais dos anos 60. Aliás, quando concorri à INSAS (escola de cinema de Bruxelas, antes de ir para o IDHEC) foi na categoria de mise-en-scène de teatro e não mise-en-scène de cinema, mas como na altura não dominava o francês muito bem, propuseram-me passar para a vertente de cinema, porque era uma linguagem mais universal... Havia ainda razões familiares para justificar esta proximidade, e mais particularmente uma tia minha por quem eu sentia uma admiração desmedida e que era uma grande actriz, iniciando-nos nesse mundo do teatro e nas peças do meu próprio colégio.
Portanto eu estive sempre muito ligado ao meio teatral, a grupos de poesia e aos actores. Uma das minhas grandes paixões era também ler Brecht, Piscator e tudo o que tivesse a ver com actores, a relação e a direcção. E depois, é tudo uma questão de perspectiva. A direcção de actores, para mim, é a invenção, na cumplicidade, de um personagem através dum actor.


Como encara a denúncia sobre o milagre/aparição de Fátima já presente no livro?
Eu sou ateu e não acredito, de facto, no milagre de Fátima, mas não era minha intenção fazer, em 2004, um filme anti-clerical, como é o livro, para denunciar a aparição de Fátima. Não quis apresentar o filme como uma tese anunciando: “o milagre de Fátima não aconteceu, o que aconteceu foi isto!”. Acho isso inadmissível. Há quem acredite que o milagre não teve lugar mas também não foi isto que aconteceu e esta história é puramente inventada, uma ficção que eu não posso defender como real. É por isso mesmo que o que mais me interessa é a existência de uma personagem que é diferente em função dos olhares de cada uma das pessoas que encontra: para as companheiras, ela é uma jovem prostituta; para o Gabriel, ela é a mulher dos sonhos dele; para o banqueiro, ela é a filha de um general da monarquia que está fazer aquele trabalho porque não tem outra maneira de sobreviver; e para o tenente Brás, uma espécie de homem iluminado, ela é algo de sagrado que ele quer salvar...
Acha que esta re-leitura de um dos mais importantes acontecimentos históricos do nosso país neste século pode chocar algumas pessoas?
É evidente que para um católico ortodoxo extremamente intolerante poderá parecer ofensivo mas a abordagem que eu fiz no filme não é particularmente polémica se as pessoas tiverem em consideração que isto é uma história inventada e que não tem como função denunciar coisíssima nenhuma. É uma visão do milagre... É um filme sobre a ilusão que para mim é uma falsa ilusão e que outros poderão tomar como verdadeira...


Qual é afinal o coração desta história?
É a história de amor. O clássico “rapaz encontra rapariga” que serve de base a todo o cinema. O dilema de Salomé, dividida entre um compromisso quase conjugal com Sertório e uma paixão por Gabriel, que ela não consegue controlar.
Gostaria de repetir a experiência de realizar?
Não só gostaria como espero em breve tentar... Não sei se vou ter essa oportunidade mas é evidente que se pudesse começava a filmar já amanhã...

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