PROGRAMAÇÃO _ JANEIRO 2010 _ IPJ _ 21H30
Dia 11
HOME – LAR DOCE LAR, Ursula Meier
Suíça/ França/ Bélgica, 2008, 95’
Primeira longa-metragem para cinema de Ursula Meier. "Home - Lar Doce Lar" é um dos mais insólitos e provocantes filmes franceses dos últimos anos. As primeiras imagens provocam logo uma sensação de estranheza: pai e filho jogam sobre o asfalto do que a seguir percebemos ser uma auto-estrada. Mas não circula um único carro por ali, excepto o dessa família. Por inconformismo ou por outras razões, aquela família afastou-se do mundo, vivendo numa casa que se ergue no fim dessa auto-estrada que foi deixada incompleta. Os três filhos do casal adaptam-se de forma diferente à situação. Mas, se eles procuraram fugir do mundo, este acaba por apanhá-los. Ao fim de algum anos, a auto-estrada é reaberta acabando por formar barreiras intransponíveis, e a vida de todos transforma-se radicalmente. O pode ser visto como um espécie de metáfora do mundo de hoje. Uma obra estranha, fortemente dramática, com um grupo de actores soberbos.
Manuel Cintra Ferreira, Expresso
A pequena casa da pradaria contra a estrada vilã, barulhenta e poluidora: a metáfora é transparente e os confrontos estão bem enredados, mas o melhor de Home está noutro lugar. Como o combate livre por um jovem atleta em Dês Épaules Solides, aqui joga-se primeiro com o interior. Porque o fluxo de carros vai perturbar o equilíbrio desta família. Incapaz de renunciar a sua própria ilha, a família Robinson agarra-se de tal forma ao asfalto, que chega a perder a razão. A mise en scéne conjuga maravilhosamente com a actividade inexorável da narração, a câmara ao ombro e a montagem contrastante nas primeiras sequências criam espaço a uma realização mais estática e comedida. A escala de planos como composição de imagens (uma paisagem, depois uma janela que desenha um quadro dentro de um quadro) a significar o isolamento mortífero das personagens. E a soberba fotografia assinada por Agnés Godard, uma fiel directora de fotografia de Claire Denis, cristalizando a descida até ao inferno: as paisagens iluminadas e as cores fortes ao início sucumbem à negrura insondável da escuridão. Urusula Meier dá uma grande atenção à banda sonora. Barulho de motor e o crepitar não são mais do que ecos de um mundo exterior ruidoso, que se opõe à tranquilidade do ambiente que envolve esta casa.
E a música – de clássica a heavy metal, passando por Django Reinhardt e Dean Martin – assumem um papel dramático essencial neste ecletismo jubiloso. Encontra-se de novo o gosto pela mistura de tons neste filme, do drama ao cómico ou poético, que é feito livrando-se das marcas como as referências cinematográficas – que não impede de pensar em Week-end de Jean-Luc Godard ou o Septième de Michael Haneke. Com este belíssimo filme de autor, com perfeita mestria que é radical sem ser austera, Ursula Meier traz um cunho precioso ao espaço do cinema!
Mathieu Lower, Le Courrier
Dia 18
AS PRAIAS DE AGNÈS, Agnès Varda
França, 2008, 110’
Ei-la, a autobiografia de Agnès Varda, relato da sua vida, em seu nome e feita pelo seu próprio punho. Varda, que se estreou como realizadora há cinquenta e cinco anos, tem agora oitenta e um anos cheios de energia e de memórias. A primeira coisa maravilhosa de "As Praias de Agnès" é a maneira como ela põe a energia ao serviço das memórias, a maneira como o filme mergulha na evocação e na nostalgia sem ficar cativo delas, permanecendo sempre vitalista.
Evidentemente, preservando o direito à emoção - o equilíbrio do filme também se joga assim, naqueles "buracos" por onde subitamente Varda se parece afundar (como numa sequência numa exposição de fotografias em que a realizadora parece ficar esmagada pelas imagens de tantos amigos mortos) para logo a seguir reemergir nalgum "sketch" burlesco (a cena com os escritórios da sua produtora, a Cine-Tamariz, "transplantados" para o meio da rua, por exemplo). Ao mesmo tempo, e se é de "emoção" que se trata, o centramento de "As Praias" na primeira pessoa não impede que o filme - e que "a primeira pessoa" - esteja permanentemente voltada para os outros, numa saudação, melancólica, algumas vezes elegíaca, aos lugares que lhe foram caros, aos amigos e aos amores (especialmente tocante, por todas as razões, o segmento que evoca e, para todos os efeitos, visita Jacques Demy).
Filmar uma vida é filmar um património, não é outro o credo de Agnès Varda. Um património onde cabem, quase num mesmo plano, memórias, objectos, lugares, e ainda "memórias de memórias" ou memórias transformadas em "objectos" - todas as fotografias, todos os excertos dos seus próprios filmes antigos que Varda que vai incluindo. Mais do que o filme de "bricoleuse" que obviamente é, pegando em múltiplos registos e em múltiplos materiais de natureza diferente, "As Praias de Agnès" é um filme de "coleccionadora". O filme em que ela abre as portas do seu museu privado conduzindo o espectador numa visita guiada, por entre peças que valem tanto por si mesmas como pelos fios que as ligam a outras peças. De vez em quando, um "intermezzo" ligeiro, anódino, gratuito, vem pontuar a visita - sem momentos destes, parece dizer Varda, a vida não tinha graça nenhuma. E é preciso guardá-los, talvez porque nunca se saiba quando chega o "corte" derradeiro: o abrupto final de "As Praias" é uma espécie de prenúncio, de despedida discreta, majestosa e enxuta. Mas enquanto não chega o fim da história, celebrem-se as alegrias e as tristezas, os amores perdidos e os amores eternos. Chamem-lhe uma "lição de vida".
Luís Miguel Oliveira, Público
Dia 25
HISTÓRIAS DE CAÇADEIRA, Jeff Nichols
EUA, 2007, 92’
Boa notícia! O jovem cinema independente ainda mexe. Aqui está Shotgun Stories de Jeff Nichols, um jovem do Arkansas que acaba de sair da Universidade de Cinema. Mas para um novato do ano, Nichols já possui um sentido muito seguro do quadro, da narrativa, dos mitos fundadores do seu país e, sobretudo, uma paciência e calma de velho sábio do cinema: este espectacular Shotgun Stories poderia estar assinado por John Ford, um Ford amanhecido do espírito lo-fi dos novos cantadores americanos da country desencantada, tipo Mark Linkous ou Will Oldham (que, lá está, entrava em Old Joy).
Uma banda de White Trash volta a tocar a eterna tragédia dos Atridas, com a imensidão desertada pela justiça, a lei, a civilização, onde os conflitos ainda se retratam a tiros de espingarda. Nichols filma esta história de western com precisão e sobriedade, evitando os efeitos espectaculares, preservando-se tanto da heroificação como da estigmatização das suas personagens, respeitando as razões de cada um e dando o necessário de tempo a tempo.
Um dos irmãos, por exemplo, que rejeita a engrenagem da violência, ocupa a vida a treinar os miúdos no basket ou a arranjar o rádio do carro. Para pegar numa metáfora pictórica, há neste filme um excelente equilíbrio entre o traço (do argumento, da dramaturgia conflitual) e a matéria (a vida que decorre, a relação intensa com o tempo, com a paisagem, com os locais).
Há sobretudo em Nichols uma ausência de ego autorístico, de rapto das personagens ou dos espectadores, uma colocação dele mesmo à disposição do serviço da história, das personagens e dos locais filmados que denota uma espantosa inteligência de cinema, uma confiança renovada nos meios mais despojados desta arte agora velha. Criança do Texas, Nichols escolheu a câmara em vez da carabina e serve-se dela judiciosamente, disparando sobretudo menos rápido que a sua sombra. O seu filme é a primeira e maravilhosa salva de cinema do ano novo. Yeepee, isto recomeça bem.
Serge Kaganski, Les Inrockuptibles
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