Esta é a ideia que escolhi explorar com Shotgun Stories (…). Tantas vezes na literatura, nos filmes, na política e na sociedade, a vingança, e, principalmente, a execução da vingança, é considerada um sucesso. Quer seja no preenchimento do seu voto em arruinar Danglar por parte de Edmund Dantes em O Conto de Monte Cristo ou na queda para a morte de Hans Gruhber em Die Hard, a euforia que sentimos enquanto espectadores a assistir ao vilão receber a sua destinada é inegável. Com Shotgun Stories eu queria trabalhar contra esta noção. Eu queria que a vingança fosse uma coisa estranha de precisar e uma causa não necessariamente defendida pelo espectador. A violência é uma tarefa pouco habitual para estas personagens, assim como o é para a maior parte das pessoas. A sua raiva e emoções são válidas, mas as suas reacções a essas emoções não são precisas. A minha esperança é que Shotgun Stories dê um retrato honesto de pessoas normais e trabalhadoras a responderem à dor e ao desgosto de coração que encontram, e que por vezes criam, nas suas próprias vidas.
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O truque era fazer com que o filme também se parecesse com o argumento. Gary Hawkins, um professor que tive e amigo que me ajudou em Shotgun Stories, disse que o trabalho dos realizadores de documentários era estruturar os seus filmes o mais aproximadamente dos filmes narrativos possível, mas que era o trabalho dos realizadores narrativos aportarem tanta realidade para os seus filmes como a encontrada nos documentários. Parece simples, mas a produção de filme narrativo não é particularmente dada ao realismo (especialmente quando feita em película).
O Sudeste do Arkansas é um lugar de combustão lenta. As pessoas deslocam-se em passos seguros num fundo de quintas vastas. Isto para mim significava um formato de 2:35. Significava filmar em quadro em vez de usar imensa câmara à mão. Significa pausas grávidas nos diálogos e não deixar pôr muita maquilhagem nas minhas actrizes. Significava que a câmara não se mexia, a não ser que fosse absolutamente necessário. Isto não é um filme que pudesse ser feito noutro sítio qualquer (…). O Arkansas é o filme.
Jeff Nichols
O Lugar é o Arkansas, uma pequena cidade rural em terra de fim do mundo, com paisagens largas e tédio a condizer, filmada em formato scope por dentro do qual o tempo se derrama e a sufocação cresce. Houve um tipo, anos atrás, alcoólico, que fez três filhos numa mulher com quem vivia, mas nem sequer se preocupou em lhes dar nomes de gente. A um chamou simplesmente Son, a outro Kid e, ao mais novo, Boy - e, depois, foi-se embora, deixando-os entregues a uma mulher odiosa (é Son quem o diz) que, por sinal, era a mãe. Entretanto fez uma cura, encontrou Jesus, reabilitou-se, pelo menos aos olhos da sociedade. Arranjou outra mulher, fez outros filhos, levou uma vida de homem crente e temente a Deus, assim o garante o oficiante religioso do seu funeral a que vão, sem serem convidados, Son, Kid e Boy. Son acaba a cuspir no caixão do pai desencadeando uma guerra fratricida com os seus meios-irmãos. A tragédia instala-se.
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A lógica do filme, em que a violência entre os dois grupos vai crescendo, parece conduzir a uma situação de last man standing, ou seja, de eliminação sucessiva de contendores até que só um subsista. E isto vai acontecendo movido pelo combustível da fatalidade, como se o motor, uma vez posto em marcha não mais se pudesse deter. Há qualquer coisa no ar - ou na terra, nos mosquitos ou, então, é o calor, a poeira que se desenha no sol posto - que alimenta a febre de não mais a paz ser possível. Não estou a fazer poesia barata, o que é relevante em "Histórias de Caçadeira" é precisamente a instalação desse clima que se cola à pele do espectador, como um visco que não sai, e que tanto provém dos planos fixos sobre a cidade desgostante, como da secura dos diálogos - veja-se a cena em que a mãe vai bater à porta dos filhos e dizer-lhes que o pai morreu - como se aquela gente pouco articulasse ou soubesse dizer. O filme não deixa, no entanto, que o manto negro da desesperança se cerre sobre os personagens, encontra uma porta de saída para eles, não digo uma via para a felicidade, essa estar-lhes-á sempre negada - mas que sabemos nós sobre a felicidade dos outros? Tomar umas cervejas no alpendre da casa, em silêncio, ao fim do dia, poderá ser uma aproximação?
"Histórias de Caçadeira" é um daqueles filmes independentes que poderiam ter ficado perdidos no limbo para onde vai a maior parte das produções que não encontram uma grande distribuidora para os fazer encontrar o caminho das salas. Esta fita onde Jeff Nichols se estreou com habilidade de autor completo (argumento e realização) acabou por encontrar o seu caminho através dos festivais (esteve em Berlim, em 2007) e chega-nos agora, um pouco atrasada, mas ainda a tempo de verificarmos que o outro cinema americano continua a ter motivos de interesse.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
IPJ_2ª F_25 JANEIRO _21H30
2 comentários:
Depois de Bug de William Friedkin e de Revolutionary Road onde rouba todas as cenas onde entra, este Histórias de Caçadeira volta a comprovar que Michael Shannon é uma das grandes revelações da década que passou.
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