Há filmes inclassificáveis, puras manifestações de engenho e amor. Amor pelo cinema e amor pelos outros. Os filmes de Agnès Varda fazem parte deste grupo restrito e privilegiado. Sejamos claros. Os privilegiados somos nós, espectadores, cinéfilos ou não, que entramos no reino fabuloso do imaginário de Agnès, povoado por praias que se espalham pelos seus filmes, seu lugar de eleição. Todo o seu cinema é um diário pessoal, por vezes intercalado (como todos os diários) por 'narrativas'. Mas mesmo estas, filmes como "Duas Horas na Vida de Uma Mulher", "A Felicidade", "Sem Eira nem Beira", surgem como reflexões da realizadora sobre pessoas, sobre a vida, o amor e a morte.
Morte que conhece bem e também sabe filmar: a do seu marido, o grande Jacques Demy, o homem das "Donzelas de Rochefort", que Varda celebra em "Jacquot de Nantes" e recorda em planos desse filme inscritos neste e imagens que são como que recriações do seu imaginário.
"As Praias de Agnès" é uma espécie de 'visita guiada', conduzida pela própria realizadora, num comentário simples e singelo, pela sua vida e obra, por amigos, conhecidos amigos e amantes, por lugares estranhos que visitou ao longo dos anos, por Cuba com um Fidel que fotografa em pose de vedeta de cinema, aproximando-se de outros 'daguerreótipos' (que foi título de um dos seus filmes mais pessoais), por Hollywood e um inesperado encontro com um Harrison Ford de quem poderia ter sido a madrinha de estreia, evocação de um tempo de lutas (insólita, com um ar de pequena traquina nos seus 80 anos de vida, em 'manifs' feministas), reencontros no tempo com as imagens de Gérard Philipe, Catherine Deneuve, Philippe Noiret, Corinne Marchand e tantos outros ("como eram jovens e belos", comenta Agnès).
Digressão ao longo da sua obra a que não faltam pitorescos pormenores, no que se refere ao seu filme de estreia, "La Pointe Courte", com a realizadora revisitando os lugares de filmagens e reencontrando os jovens que filmou, agora com os rostos feitos mapas do tempo e da vida. O encontro com Demy, o amor da sua vida, e que acompanha a Hollywood quando Hollywood chamou Demy. Varda aproveita a visita para fazer os seus documentários mais polémicos, entre eles um sobre os Black Panthers. E o filme que a deu a conhecer e fez dela uma das figuras mais importantes do que se chamou Nouvelle Vague: "Cléo de 5 à 7/Duas Horas da Vida de Uma Mulher". Tanto mais! Tanto mar!
História de uma vida e história do cinema, "As Praias de Agnès" é também uma lição de fazer cinema, que a realizadora expõe sem pudor e com traços de fantasia (a entrevista com Godard, entre outras cenas quase surrealistas). Um daqueles objectos insólitos tão raros que quando surgem nos ofuscam com o seu brilho. Uma pura jóia do cinema.
Manuel Cintra Ferreira, Expresso
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2ª FEIRA - 18 DE JANEIRO - IPJ - 21H30
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