Entrada livre
Ciclo "Grécia e Roma
não têm nada de antigo",
incluído no projeto Livros em Cadeia
(contextualizando a conferência de dia 23, também na sede,
da Drª Adriana Freire Nogueira sobre
"Grécia e Roma na 7ª Arte")
Ciclo "Grécia e Roma
não têm nada de antigo",
incluído no projeto Livros em Cadeia
(contextualizando a conferência de dia 23, também na sede,
da Drª Adriana Freire Nogueira sobre
"Grécia e Roma na 7ª Arte")
Adaptação livre da obra inacabada de Petrónio, «Satyricon» narra as aventuras vividas por dois jovens estudantes em plena Roma decadente, no séc. I da nossa era.
Nesta obra monumental, onde cada plano é uma espécie de delírio visual, Fellini esforça-se por nos fazer esquecer todos os nossos referenciais convencionais herdados da cultura cristã. Ele aborda a descrição da decadência romana com o olhar puro daquele que decidiu abstrair os dois mil anos de cultura. Uma tal ascese conduz a uma obra única, onde cada imagem surpreende e desconcerta, ao mesmo tempo que respeita os escritos de Petrónio. O filme de Fellini é bem o equivalente visual deste livro a que faltam numerosas páginas e cuja leitura faz nascer a evocação de textos complementares. É aí que Fellini dá mostras duma cultura refinada, na abordagem que faz deste antigo texto. Ele visualiza a célebre fábula da matrona hedonista. Refere-se ao «Jumento de Ouro» de Apuleio e às «Metamorfoses» de Ovídio.
Acima de tudo, este «Satyricon» é uma maravilhosa ilustração do espectáculo da decadência. E, a propósito, este filme retoma as mesmas linhas de força de «A Doce Vida» esse outro fresco da decadência. Exaltação do dinheiro, visão dum apocalipse cultural, arte tornada plágio. E também o enfraquecimento da mulher como objecto erótico. Orgias, crueldades, convite ao canibalismo. No seu conjunto isto é traduzido por uma profusão de movimentos que se adapta perfeitamente ao esplendor pictórico. Tornar-se-á óbvio que uma só visão não permite apreender todas as riquezas desta ilustração poética da decadência, desta extravagante loucura visual e literária.
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R. L. in «Image et Som», Set.-Out.70
Embora o romance não seja propriamente o género literário que mais costumamos associar à literatura da Antiguidade Clássica, é facto que teve uma voga enorme a partir do final do século 11 a.C., primeiro na literatura grega, de que se conservam cinco romances, e depois nas letras latinas, onde os maiores expoentes deste género foram Petrónio, autor do Satyricon, e Apuleio, que escreveu um romance conhecido pelos títulos Metamorfoses ou O Burro de Ouro. Todos estes romances, tanto os gregos como os latinos, ostentam, à excepção de um (Dáfnis e Cloe de Longo), as mesmíssimas características: viagens, raptos, naufrágios, piratas... todos os ingredientes, em suma, do romance de aventuras que, na Europa, a partir do século XVII, tanta popularidade teria e que desaguaria, alguns séculos mais tarde, nas histórias romanescas oferecidas ao mundo por uma cidade chamada Hollywood. É interessante notar, a este propósito, que pelo menos um dos romances antigos, As Etiópicas de Heliodoro, contém já uma antevisão assombrosa, no que respeita à questão da focalização narrativa, das técnicas propriamente cinematográficas: o romance abunda em "zooms", "travellings" e outras coisas no género, pelo que se recomenda a sua leitura a todo o cinéfilo interessado em descobrir a pré-história das técnicas narrativas da sétima arte. Todos os romances antigos fazem convergir as peripécias narradas num casal de jovens apaixonados, que os naufrágios, raptos e piratas separam durante a maior parte da narrativa, mas que se conseguem sempre juntar num "happy end" final, depois de terem resistido heroicamente a ataques rocambolescos à sua castidade.
Ora, o Satyricon de Petrónio é justamente uma sátira a este tipo de romance. Em vez do par habitual da menina de boas famílias, espectacularmente bonita, e do seu jovem apaixonado, também de uma grande família e incrivelmente bonito, Petrónio deu-nos, em substituição, um "ménage à trois" homossexual: dois estudantes de "retórica" (o que, em Roma, corresponderia aos nossos estudantes universitários), Encólpio e Ascilto, e o jovem cinaedus (expressão latina que denomina uma personagem do sub-mundo do erotismo, algures entre prostituto e "travesti"), por quem ambos estão apaixonados, chamado Gíton. O romance chegou até aos nossos dias num estado muito fragmentado, começando e terminando abruptamente com várias lacunas pelo meio, mas a história principal - em que Petrónio "encaixou" uma série de outras (a da Matrona de Éfeso é a mais célebre) - conta as desgraças que sucederam a Encólpio depois de ter sacrílegamente presenciado ritos em honra do deus Priapo, divindade que os antigos representavam, como se sabe, sob a forma de um gigantesco falo em erecção. O castigo de Encólpio é a impotência sexual, que, no filme de Fellini, só é ultra-passada quando o herói (ou anti-herói...) se une à maga Enótea (que lembra um pouco a grotesca Saraghina de Otto e Mezzo): no romance de Petrónio, nem isso lhe vale.
Sobre a pessoa do próprio Petrónio, continua a pairar a dúvida. O mais provável é que tenha sido a figura do mesmo nome, que aparece na obra historiográfica de Tácito: misto de Oscar Wilde e do Duc des Esseintes do romance À Rebours de Huysmans, este Petrónio foi o arbiter elegantiae do imperador Nero, ou seja, a figura na corte do imperador capaz de inventar as diversões mais sofisticadas para deliciar o augusto psicopata. Acabou por se encontrar em maus lençóis, tendo de recorrer ao suicídio (tal como Séneca e Lucano, outros escritores e intelectuais contemporâneos). Até a morte de Petrónio foi romanesca: mais ou menos indeciso, cortou e ligou as veias uma série de vezes, sempre ao som de música e de leituras de poemas escabrosos, até que, finalmente, se decidiu pela morte. Chegou-se a aventar a hipótese de o Satyricon ter sido ditado por Petrónio entre as veias abertas e as ligaduras, mas já Voltaire classificou essa ideia de totalmente absurda. Não deixa, contudo, de ser pitoresca e, de certo modo, adequada ao autor do Satyricon.
E com isto tudo, mal se falou do filme intitulado Fellini-Satyricon. Mas também me parece que o enquadramento do filme na tradição literária antiga é absolutamente fundamental para a compreensão do mesmo: apesar de ter incluído o seu nome no título do filme, Fellini-Satyricon é, na sua maior parte, uma adaptação para o cinema do romance de Petrónio. E com esta afirmação, podemos agora debruçar-nos no que Fellini trouxe de novo ao original latino. Pondo de parte questões de pormenor como o facto, por exemplo, de Ascilto não morrer no original, temos pelo menos quatro sequências totalmente originais no Satyricon de Fellini: a dos suicídios do jovem César (Nero?) e do casal estóico. Haverá qualquer relação entre estes suicídios e o de Petrónio árbitro? Boa pergunta, que só Fellini estaria apto a responder. A sequência em que Encólpio tem de enfrentar o Minotauro também não foi escrita por Petrónio; e a do Hermafrodita também não: mas ao contrário do que sucede com a inclusão dos suicídios, o Minotauro e o Hermafrodita confirmam o carácter grotesco e caricatural, presente desde o início do filme, que falseia totalmente o romance original. Claro que isto não é uma apreciação negativa: o cineasta não tem obrigação nenhuma de "respeitar" seja o que for; mas para quem conhece o dito original, o facto de Fellini ter optado por uma interpretação tão... felliniana, digamos assim (no sentido de ser disforme, grotesca, aberrantemente barroca), não deixa de fazer uma certa pena, pois, em Petrónio, a beleza e fuga cidade da vida, o prazer e o deboche, o amor e o cinismo fundem-se numa poesia subtilmente perfumada que oblitera, por completo, o cheiro da putrefacção dos corpos (ou melhor, talvez, dos espíritos), que, bem ou mal, predomina no filme de Fellini: basta referir que o romance de Petrónio termina com a leitura do testamento de Eumolpo, onde se diz que só quem comer o cadáver do defunto poderá herdar os seus bens, seguido de elipse (ou lacuna), ao passo que, no filme de Fellini, temos mesmo à nossa frente uma agradável cena de antropofagia. Mas, diga-se a verdade, o último plano do filme, depois de a voz "off' sugerir que Encólpio encontrou um novo amante, quando vemos as personagens de Fellini transmudadas em frescos fragmentados junto a um mar "inteiramente azul" (Sophia de M.B.A.), só muito dificilmente fecharia melhor um filme baseado nos fragmentos mais preciosos da história do género romanesco.
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Frederico Lourenço, Federico Fellini – As Folhas da Cinemateca
Realização: Federico Fellini
Argumento: Federico Fellini, Bernardino Zapponi e Brunello Rondi, a partir do romance Satyricon de Petrónio
Direcção de Fotografia: Giuseppe Rotunno
Música: Nino Rota
Montagem: Ruggero Mastroianni
Interpretação: Martin Poller, Hiram Keller, Salco Randone, Max Born, Fanfulla, Mario Romagnoli, Capucine (
Origem: Itália
Ano: 1969
Duração: 128’
projeto financiado por
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