A extrema subtileza desta observação - Pasolini como autor «cândido» e não «cérebro ideológico» - poderá, muito provavelmente, alargar-se ao conjunto da obra de Pasolini. Apetece, pelo menos, aplicá-la a este Edipo Rei, objecto de uma secura formal absolutamente irredutível. Secura até, se quiserem, pelas paisagens agrestes do deserto de Marrocos onde a maior parte das sequências foram rodadas, mas sobretudo pela austeridade que o cineasta impõe: ao adaptar a tragédia de Sófocles, Pasolini prefere «secar» as suas ressonâncias culturais (vulgo adaptação-de-um-grande-clássico-do-património-da-humanidade) para privilegiar a sua «redução» à condição insólita - e, afinal, primordial - de tragédia de qualquer homem.
Esse processo começa (ou acaba) na própria figura que Pasolini escolheu para interpretar o seu Edipo: Franco Citti que é, por assim dizer, o contrário de uma personagem esmagada pelo conflito que a habita. Dir-se-ia que Citti compõe um Edipo completamente terreno, sem nenhuma interioridade que o resgate da tragédia em que mergulha. No limite, ele não cega quando arranca os olhos - esse é apenas o momento em que a castração do seu olhar «naturaliza» a cegueira que sempre o marcou.
Diz a Esfinge de Pasolini: «Há um enigma na tua vida». E Edipo responde: «Não quero saber, não quero saber», ao mesmo tempo que empurra a Esfinge para o abismo. Cruel ilusão: «Tudo isto é inútil porque o abismo está em ti», responde-lhe a Esfinge. Edipo Rei é o filme desse abismo onde o homem se revê incessantemente na sua vulnerabilidade de perguntas sempre renovadas e respostas sempre adiadas. E se é verdade que o final do filme pertence à faceta mais primária (diríamos, ainda, ingénua?) do cinema de Pasolini - Edipo deambulando pela Bolonha contemporânea, cidade natal do autor e praça forte do Partido Comunista Italiano - não é menos verdade que a ambição maior que nele se exprime é também a ambição de toda a prática cinematográfica de Pasolini: fazer um cinema que incessantemente se abata sobre a realidade imediata do próprio espectador.
Há, por tudo isso, como Glauber Rocha bem notou (in «Pasolini Cinéaste», número especial dos «Cahiers du Cinéma», 1981) uma aproximação pasoliniana entre Cristo e Edipo. E se O Evangelho Segundo São Mateus, que Pasolini rodara quatro anos antes, é uma matriz essencial da sua obra, outra será a que se condensa neste Édipo Rei.
O homem pasoliniano é sempre o Cristo-Edipo de que fala Glauber, um ser irremediável só, lutando contra o sem sentido da realidade. Sendo político, mesmo ingenuamente, por causa desse vazio insuperável do mundo.
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João Lopes, Expresso, 28/7/90
... é um filme que se situa pelo menos em quatro planos. A primeira parte é a das recordações de infância, ao mesmo tempo muito sintetizadas e muito ricas, depois há a parte fantasmagórica, que eu chamo alucinatória, e que me parece a melhor. Ela é totalmente inventada, pois não parti de nada conhecido, e deixei-me guiar pelo puro prazer da imaginação (...)
Depois vem a terceira parte, que é nem mais nem menos do que o Édipo» de Sófocles. (. ..) Fiz algumas reduções, mas não verdadeiras alterações. A única alteração importante, em relação a Sófocles, foi que no fim suprimi a intrusão das raparigas, porque no fundo modifiquei o próprio Édipo. E as raparigas não correspondiam ao meu Édipo, nem Antígona. Há assim, em relação ao texto, mais uma exclusão do que uma modificação. As palavras da Esfinge não existem no texto de Sófocles. São apenas mencionadas. Isto diz respeito a - I'antefatto» (os antecedentes). A Esfinge faz parte da mitologia, do que se lê nas enciclopédias ou nos manuais escolares, não no próprio texto. Nele não se precisa como, nem em que termos, Édipo encontrou a Esfinge. Fiz portanto uma modificação em relação à mitologia popular grega, não em relação a Sófocles, ao fazer da Esfinge, muito simplesmente, o inconsciente de Édipo: (...) Édipo só pode fazer amor com a mãe na condição de empurrar a Esfinge para o abismo, quer dizer, empurrá-la para o seu próprio inconsciente.
... a coisa que mais me inspirou em Sófocles: o contraste entre a total inocência e a obrigação de saber.
Em Itália, as pessoas criticaram-me por não ter feito de Édipo um inte¬lectual, porque toda a gente em Itália imagina Édipo como um intelectual, mas eu acho que isto é um erro, porque a vocação de um intelectual é descobrir coisas; assim que um intelectual vê qualquer coisa que não funciona, por vocação começa a analisá-la. Enquanto que Édipo é exac¬tamente o oposto: é a pessoa que não quer olhar para as coisas, como todas as pessoas inocentes, aqueles que vivem as suas vidas como vítimas da vida e das suas próprias emoções.
O epílogo é aquilo a que Freud chama a «sublimação». Depois de se ter cegado a si próprio, Édipo reentra na sociedade através da sublimação das suas faltas.
Uma das formas de sublimação é a poesia.
Édipo toca flauta. O que significa, metaforicamente, que ele é um poeta. Primeiro toca para a burguesia, e toca a velha música japonesa conotada com o Oráculo - música ancestral, privada, confessional, música que poderia ser definida numa palavra como decadente: uma espécie de evocação do primitivo, das suas origens; depois descontente da burguesia, vai-se embora e toca a sua flauta (i. e. vai-se embora e age como um poeta) para os trabalhadores, e toca uma ária que era uma das canções da Resistência: era uma canção folclórica russa que alguns soldados italianos aprenderam na Rússia e que era cantada durante a Resistência como uma canção revolucionária.
A diferença profunda entre Édipo e os meus outros filmes, é que ele é autobiográfico, enquanto os outros não o eram ou eram pouco. Ou pelo menos eram-no quase inconscientemente, indirectamente.
Em Édipo, eu conto a história do meu próprio complexo de Édipo. O rapazinho do Prolog, sou eu, o seu pai é o meu pai, antigo oficial da infantaria, e a mãe, uma professora, é a minha própria mãe. Conto a minha vida, mitificada, evidentemente, tornada épica pela lenda de Édipo. Mas sendo o mais autobiográfico dos meus filmes, Édipo é aquele que considero com mais objectividade e distanciação, porque se é verdade que conto uma experiência pessoal, é uma experiência terminada e que praticamente já não me interessa.
Interessa-me no entanto como elemento de conhecimento, de reflexão, de contemplação. (...) Enquanto nos meus filmes precedentes, enfrentava problemas violentamente vivos -em mim, aqui, trato um assunto que se afastou de mim. Isto talvez dê ao meu filme um maior «esteticismo»,'mas também, espero, um recuo humorístico que existia menos nos outros. (...)
O trágico existe, a despeito de tudo, porque a razão mais profunda, quer do esteticismo quer do humorismo, é o terror da morte. (...)
O objecto da investigação de Freud já não me interessa muito, tal como já não me interessa muito o objecto da investigação de Marx. Já não estou de todo envolvido no magma que faz de Édipo um objecto de análise freudiana e marxista. É verdade que, no fim do filme, Freud parece vencer Marx. E Édipo vai perder-se no abrigo verde de choupos e água onde se criara. Mas mais que Freud é o Édipo em Calona a sugerir uma tal ideia: ou, pelo menos, na fusão arbitrária entre a sugestão freudiana e a de Sófocles, esta última vence-a. (...)
Quanto ao carácter gnoseológico, disse que o filme é uma alucinação, um «estado onírico» e penso que nada pode ser mais gnoseológico do que um sonho.
Pier Paolo Pasolini in Ciclo Pasolini Anos 60 (João Bénard da Costa, dir.), Fundação Calouste Gulbenkian
Título Original: Edipo Re
Realização: Pier Paolo Pasolini
Argumento: Pier Paolo Pasolini, baseado na peça homónima de Sófocles
Direcção de Fotografia: Giuseppe Ruzzolini
Montagem: Nino Baragli
Interpretação: Silvana Mangano (Jocasta), Franco Citti (Édipo), Carmelo Bene (Creonte),
Alida Valli (Mérope), Julian Beck (Tirésias)
Origem: Itália
Ano: 1967
Duração: 104'
projeto financiado por
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