Um bordel e Bonello: o habitual erotismo “mortífero”, que convoca referências artísticas e culturais, o romantismo “fin de siècle”, Bataille, a pintura.
“Apollonide” é o primeiro filme do francês Bertrand Bonello estreado em Portugal. Bonello (n. 1968) construiu na última década uma “reputação” que o conduziu a Cannes (em cuja competição oficial “Apollonide” foi estreado), através de filmes razoavelmente sulfurosos, polémicos q.b. (“Tiresia”, sobretudo, mas também “Cindy, the Doll is Mine”, uma curta com Asia Argento), por regra trabalhando um erotismo “mortífero”, para não dizer “pestilento”, convocado e fazendo convocar todo o tipo de chaves e referências artísticas e culturais, o romantismo “fin de siècle”, Bataille, Warhol... Diríamos que pode passar à história como um cineasta singular e importatnte ou apenas como um Borowczyk que caiu no goto (e no gosto) do “jour”. Qualquer dos dois destinos parece possível, e não será “Apollonide”, de resto um filme bastante linear e legível, mesmo bastante “pacífico”, a apressar uma decisão.
É um filme sobre um bordel parisiense do princípio do século XX, o tipo de coisa que nos chegou numa memória mitificada pela literatura, pela pintura, e também, embora forçosamente com outra contenção alusiva, pelo cinema francês das primeiras décadas do século passado. Bonello joga com isso tudo, especialmente a pintura: há muitos planos em que o espectador é convidado a ver o seu impressionismo, e quando Bonello divide o ecrã em dois, três ou quatro (uns quantos momentos em “split-screen”) não há dúvida, o espectador é posto a olhar para quadros. O bordel, de onde não se sai, e o mundo que entra por ele adentro (os homens que o frequentam, as candidatas a prostitutas) são obviamente uma coisa passada, regida por códigos extintos. A maneira como Bonello encena esse mundo e esses códigos tem um sentido do risco interessante: há elegância (mesmo o que é violento, física ou verbalmente, é mais elegante do que bruto) e há, senão felicidade, uma espécie de conforto, o conforto da “normalidade”, de um mundo em que a situação daquela casa e daquelas raparigas encaixa perfeitamente. Pode suscitar - daí o sentido do risco - uma ideia de nostalgia, não muito diferente (claro que “mutatis mutandis”) daquela com de vez em quando Sokurov parece filmar a Rússia imperial: um “paraíso perdido”, em suma. A questão “sociológica”, sendo importante (e particularmente no plano final, uma beira de estrada contemporânea: já não há bordéis, as prostitutas estão na rua e parecem mais tristes do que nunca), é resolvida mais pela poesia e pela alusão. O mundo avança por ali adentro: as doenças, o dinheiro (o senhorio quer aumentar a renda do bordel), as promessas por cumprir (aparentemente, nenhum homem fala a sério quando faz juras de amor a uma prostituta). Quanto mais o mundo avança, mais o bordel se revela como puro teatro (“social” e não só), mascarada cada vez maior até que um baile já pareça mais um “freak show”. Elipse, e o “teatro” transforma-se em “documentário”: é o tal plano final, contemporâneo e realista.
Filme inteligente, por vezes intrigante (a “mulher que ri”, personagem que carrega um mundo referencial), servido por um óptimo “ensemble” de actrizes e, por alguma razão, com vários realizadores no papel dos clientes (reconhecem-se Jacques Nolot, Xavier Beauvois, Pierre Léon...), “Apollonide” merece ser visto. Decidir Bonello fica, mais uma vez, adiado - o que deve ser mérito dele.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
"I am tired, I am weary,
I could sleep for a thousand years"
'Venus in Furs', Velvet Underground
Há uma pantera ameaçadora a esconder as garras nos sofás de veludo, a ourivesaria é fina, as peles são de cetim e, lá para a frente, as noites também, quando irrompe um velho hit dos Moody Blues. A cena é magnífica, as atrizes estão a esse nível, e o conjunto marca uma data na história do cinema francês recente. Contudo, não foi a anacrónica balada sixties ('Nights in White Satin') que mais nos intrigou. Foi uma frase - a primeira do filme - que se ouve da boca de Clotilde (Céline Sallette), uma das 'meninas', quando ela diz que "estou cansada, podia dormir mil anos". Mil dias podíamos ter demorado desde o último Festival de Cannes a descobrir de onde a frase vinha. Ela ressoava na cabeça sem se denunciar. Há poucos dias, na conversa telefónica que deu a entrevista das páginas anteriores, foi Bonello quem o confirmou: é um verso 'roubado' de 'Venus in Furs'.
Para que serve esta introdução? Para falar do tempo. De um mundo fechado em que todos os dias se assemelham. Como o espaço é fechado, só o tempo permite uma escapatória. Talvez seja o tempo do desejo, e não é por acaso que a narrativa ressoa, precisamente, entre o passado e o presente, entre 1900 e os dias de hoje, entre a pintura de Manet e Degas e os versos de Lou Reed, com uma só missão: inventar um tempo próprio, genuíno, em que o sono é interdito. E, no princípio do filme, quem poderá dizer que quer dormir, entre cristais e champanhe, com segredos permanentes atrás das cortinas, sonhos de esmeradas que substituem sem fim a realidade?
Só que a realidade de "Apollonide" é outra. Quem espera encontrar aqui uma elegia de bordéis passados, uma queda para a nostalgia, um idílio perdido entre quatro paredes ou, simplesmente, a comodidade de um olhar voyeur descobre cedo que se enganou no filme. Bonello não perde tempo a sugerir-nos a tragédia pessoal de uma mulher que ganhou um sorriso criminoso e infame, Madeleine, dita "a judia" (papel incrível de Alice Barnole), embora só a revele por inteiro num choro final tão violento que não deve ter paralelo. Antes dessas lágrimas que ninguém esquecerá já se passou do conforto ao desconforto. Dos seios e dos corpetes, da sensualidade e dos corpos febris já se passou à desfiguração de um rosto. Das notas dos clientes já se passou às moedas das prostitutas (cada uma tem de comprar o seu perfume), às suas dívidas, que se adivinham eternas. Sentimos que o tempo de Bonello é frágil. Que o cineasta sabe bem o tema que tem nas mãos e que tudo fará para evitar sobre ele qualquer tipo de julgamento. "Apollonide" não julga, nem as mulheres, nem o seu drama, nem permite que o cinema o faça, apenas mostra "um mecanismo" (foi o realizador quem o disse) de movimentos de vida que parecem ter ficado suspensos - e ao tempo voltamos, esse derradeiro inquisidor.
O que é "Apollonide", para Bonello? Uma casa de trabalho. Uma casa de vida. Uma casa de luxos, de detalhes, de camaradagem, de concorrência, mas também de declínio e de sofrimento. Por fim, uma casa de terror que se conclui com um plano terrível, capta¬do num boulevard périphérique: estas Vénus em chamas podem até tornar-se mortais, mas nunca serão livres. Não tardamos muito a chegar à conclusão inevitável: "Apollonide', para Bonello, é o cinema. Aquele que soube casar a generosidade e a crueldade na textura do melodrama. Aquele que colocou o seu olhar à altura do destino e foi capaz de testemunhar, pelo ser humano, uma verdadeira paixão.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/1/12
Março de 1900, final da Belle Époque. Entramos no dia a dia das raparigas tristes e deprimidas que dão corpo a um requintado e melancólico bordel parisiense. Madeleine, Samira, Julie, Clotilde, Léa e Pauline são lideradas pela sua Madame, que gere a casa com elegância e um conjunto de regras rigoroso. Pauline é a última a entrar naquele espaço em decadência e a única que de lá sai, de livre vontade e sem ser para a morte.
Estamos perante um espetáculo cruel feito de jovens mulheres presas a uma vida sem saída. Elas são os servos da sua madame que lhes avança dinheiro para perfumes e vestidos luxuosos, mantendo-as em dívida para com ela. São as vítimas das doenças da sociedade e por isso punidas com sífilis, gravidez (razão pela qual se submetem a exames ginecológicos regulares com medo e trepidação) e encontros sexuais humilhantes.
L’apollonide é um clube de cavalheiros que se encontram para conversar, beber e fumar e onde o relacionamento social é tão importante quanto o sexual. Os homens são retratados como fracos e o sexo é mais sobre a realização das suas fantasias do que sobre o ato. A sua passagem pela casa constitui uma fuga a um mundo em mudança. Não passam de almas perdidas, transportando uma imagem de decadência entediada.
O filme interessa-se por mostrar a dinâmica das raparigas como um grupo, e entre elas e os seus clientes (os regulares, os casuais). Não existe propriamente um personagem principal. Depois de ser vítima de um fetichismo erótico doentio e perverso, Madeleine deixa de se encontrar com homens e passa a tratar da cozinha e da roupa, até ser convocada para aparecer como uma aberração numa soirée de sexo libertino. Destaca-se um pouco mais pela violência a que é exposta, mas nem por isso aparece em mais cenas. As outras, excetuando Pauline - que tem uma aparição mais curta, mas de extrema importância - são intercambiáveis e formam quase um só personagem.
É fora de grades, na única cena ao ar livre, que acontece um momento singular de verdadeira alegria. Com uma inocência desinibida, as raparigas podem ser elas próprias e não o brinquedo dos seus opressores.
A fotografia é lúgubre, sensual e fascinante. Rico em texturas, dá-nos os contornos da ansiedade e tragédia destas grandes odaliscas. A lírica da câmara e dos figurinos cria uma claustrofobia exuberante, uma espécie de gaiola dourada onde as prostitutas da alta-classe vivem. Há claras alusões à pintura de Manet, Renoir e Toulouse-Lautrec, tanto na pose e nos detalhes técnicos, como nos figurinos e iluminação.
A inesperada utilização de música moderna em várias cenas cruciais (The Moody Blues – Nights in White Satin ou Lee Moses – Bad Girl) pinta não só um retrato triste do fim de uma época, como relata uma tragédia contemporânea.
Os bordéis estavam em declínio e L’apollonide encontra-se à beira da falência, desde que as mulheres começaram a prostituir-se na rua. Nas cenas finais, trespassa a sensação de um paraíso perdido, não sem se derramar sangue, sem se queimar a pele e presenciar a morte.
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Inês Monteiro, www.c7nema.net
LITERATURA DE BORDEL
Não há sombra de erotismo, antes de uma violência consentida e uma esperança enganada, que Bertrand não fecha no seu tempo. Elabora-o antes de forma a transportá-lo implicitamente para a atualidade, dando-lhe um ar de tese inacabada ou mera curiosidade sobre a 'mais velha profissão do mundo'. Ou apenas um fascínio sobre esta personagem sem tempo nem espaço a que se pode chamar: a prostituta.
Em Histórias de Cabaret, um excelente mas pouco valorizado filme de Abel Ferrara, fecham-nos nos meandros de um clube de strip-tease em decadência, numa cintura claustrofóbica que mostra a teia de relações num microcosmos com códigos próprios que é, simultaneamente, profissional e familiar. Em Apollonide - Memórias de um Bordel, enclausura-nos num bordel parisiense da passagem do século (do XIX para o XX). As últimas são prostitutas, as primeiras apenas dançarinas, ambas vivem do seu corpo e da sua juventude, umas são francesas do século XIX, outras americanas do século XXI. Mas a maior diferença talvez seja mesmo que Abel Ferrara é o realizador independente italo-americano (que até começou pelo cinema pornográfico) enquanto Bertrand é um realizador francês fascinado por Eric Rohmer e Alain Resnais. E isso tudo muda.
Em primeiro lugar, porque há uma intelectualização do discurso. A Bertrand não interessa ser fiel ao retrato de uma prostituta francesa de há 100 anos, usa esse pretexto para a criação de um ambiente, um universo próprio, realista apenas em alguns momentos. Isto apesar de se dar ao trabalho de reconstituir pormenores de época, como os jogos de salão, a decoração, os produtos de higiene, o guarda-roupa. Mas com um despudor semelhante ao de Sofia Copolla, em Maria Antonieta, usa música americana dos anos 60 num ambiente de Belle Époque, cria prostitutas com erudição, apreciadoras de poesia e que chegam mesmo a ler ensaios sobre si próprias (que as ofendem). Nada disto é particularmente perturbante, porque o realizador consegue o mais importante: criar um ambiente específico e faz com que tudo ganhe uma lógica interna naquele universo particular. E talvez assim o expanda, aproximando-nos das personagens, dando-lhes um estatuto universal e intemporal.
Como muitos filmes do género, ao contrário do que se possa esperar, Apollonide - Memórias de um Bordel é um drama anti-erótico. Porque apesar de estar repleto de mulheres nuas e cenas de sexo há uma certa frigidez que o atravessa. Não há sombra de erotismo, antes de uma violência consentida e uma esperança enganada, que Bertrand não fecha no seu tempo. Elabora antes de forma a transportá-lo implicitamente para a atualidade, dando-lhe um ar de tese inacabada ou mera curiosidade sobre a 'mais velha profissão do mundo'. Ou apenas um fascínio sobre esta personagem sem tempo nem espaço a que se pode chamar: a prostituta.
Entre a busca do prazer e a crueldade, domina, por um lado, a ideia de prisão debochada. Por outro há um empolamento sádico, através da história bárbara da 'mulher que ri' e sobretudo no seu enquadramento social. Num filme de muitas personagens, com o peso bem dividido, ela acaba por ser central, focando-nos nos seus sonhos/pesadelos de forma recorrente. Mas é a prostituta, assim em geral, que acaba por ser o verdadeiro protagonista.
Bertrand de forma nada sistemática usa alguns elementos de experimentação, como o ecrã dividido, o anacronismo musical ou mesmo a viagem no tempo. E também alguns bons pormenores, como a pantera que ajuda a criar o ambiente ou os filhos da dona do bordel que intensificam a toada familiar. As atrizes são eficazes em papéis difíceis pela sua ambiguidade. O filme, que não é moralista, talvez nos corrompa. Depende da sua própria habilidade de nos acolher no Lupanar. Quem não conseguir entrar, fica mesmo de fora.
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Manuel Halpern, Visão
À CONVERSA COM BERTRAND BONELLO E LAURE ADLER
ORIGEM
LAURE ADLER: Como surgiu o desejo de fazer um filme sobre esses espaços que em tempos se chamavam lupanares?
BERTRAND BONELLO: Há dez anos quis fazer um filme sobre a reabertura de bordéis na actualidade. Depois desisti. Após filmar “De la Guerre”, o meu filme anterior, quis fazer um filme com um grupo de raparigas, com a dinâmica de um grupo. Foi o meu colega Josée Deshaies, que é também o meu director de Fotografia, que me sugeriu regressar à ideia dos bordéis mas sob uma perspectiva histórica. Comecei assim a pesquisar sobre este tema e encontrei o teu livro. Interessa-me o aspecto de mundo fechado. Onde quer que haja um mundo fechado, pode criar-se uma ficção, um mundo para o cinema. Cabia-me então trabalhar entre factos e ficção, entre a crónica e a narrativa. A representação da prostituta chegou-nos sempre através do olhar dos homens: a maioria pintores ou escritores, que iam a bordéis e que depois iam para casa para trabalhar num quadro ou num livro. O ponto de vista da prostituta foi sempre muito difícil de encontrar.
LA: Elas escapam-nos! É exactamente isso.
BB: Há algo de profundamente misterioso nelas, e é por causa disso que elas têm sido uma figura recorrente na escrita de ficção desde o início da história da Arte. O primeiro filme com uma prostituta foi feito em 1900; o que só mostra que elas se tornaram personagens assim que o cinema foi inventado.
O BORDEL
LA: Representas de forma admirável o facto de o bordel ter sido um espaço para socializar, uma vez que antes de subir para os quartos, as pessoas esperavam, falavam e bebiam.
BB: Alguns homens nem sequer subiam para os quartos; vinham apenas tomar uma bebida.
LA: Aquilo que é mais interessante no filme é o papel específico do primeiro andar e do rés-do-chão. O último é um espaço sumptuoso, um cenário bonito para salientar a beleza das jovens mulheres que lá se encontram para saciar os apetites sexuais da burguesia. Mas o bordel é ao mesmo tempo uma prisão. No primeiro andar elas vivem uma vida estéril enquanto que no rés-do-chão elas têm de interpretar o seu papel. Como conseguiste levar-nos numa viagem – que é ao mesmo tempo real e onírica – por este espaço fechado do bordel?
BB: Tentei dividir o espaço em três partes: os salões, os quartos e aquilo a que chamo de cozinha. Quis manter este balanço, sem estabelecer prioridades. Conseguimos filmar tudo num décor. Desta forma, num só plano, seguimos do sótão, onde elas dormem, para o bem mais luxuoso corredor que leva até aos quartos onde elas trabalham. Quis mostrar que isto coexistia, que elas estavam a uma porta de distância de vestirem uma simples camisa de noite ou um magnífico vestido com jóias de sonho. É um filme sobre contrastes.
VER E SER VISTO
LA: Uma personagem enigmática, a quem acontece algo terrível, começa e termina o filme. Tal como é habitual nos teus filmes, chegámos à questão do “ver e ser visto”.
BB: Está também relacionado com o corpo e com a mente, na medida em que um afecta o outro. Isto está registado para sempre através dos filmes do Cronenberg porque ele fala sempre disto: a forma como a relação com o corpo vai influenciar a mente. Por vezes levando à loucura. Voltando à personagem que mencionaste; enquanto escrevia o argumento, tive sonhos durante duas ou três noites de seguida com “O Homem Que Ri”, a adaptação de um romance de Victor Hugo, feita nos anos 1920. Pensei então em criar a Mulher que ri.
LA: O filme é uma história dentro de uma história para o cinema.
BB: O meu director de Fotografia acredita que todos os meus filmes são assim. Na verdade, é possível que a personagem interpretada pela Noémie Lvovsky seja eu, o realizador, dirigindo este bordel; ela cria os cenários, ela pede dinheiro ao prefeito da mesma forma que eu o pedi ao CNC… e talvez seja possível considerar que a sua clientela é o meu público.
LA: Então também não será por acaso, acredito, que as personagens principais, tais como a madame do bordel ou os principais clientes, sejam interpretados por realizadores.
BB: Apercebi-me disso apenas mais tarde. Foi um pouco por acaso. Por uma razão: acho que todos estes realizadores são bons actores. Todos de uma vez, estávamos todos numa sala e percebemos que éramos 10! Porquê tantos realizadores? Não sei; talvez seja a minha forma de falar sobre cinema.
RAPARIGAS, UM CORPO COLECTIVO
LA: O que é fascinante é que as raparigas são vistas pela madame, uma mulher e uma patroa, que controla as suas fronteiras. No final, os homens são de certa forma os escravos das raparigas; as raparigas conquistam os seus clientes.
BB: Sim, acredito absolutamente nisso. A dureza nasce da própria casa, do cárcere e das condições de vida. Com o meu director de Fotografia, decidimos filmar apenas as raparigas. Por vezes os homens são vistos por trás ou as cabeças são cortadas do plano. Existem, por isso mesmo, poucos campos/contra campos; ficamos com as raparigas e mesmo quando nos viramos é uma rapariga que está no plano também.
LA: E quando há um grande plano de um homem, ele está de máscara.
BB: Exactamente, e isso reforça a impressão de que a prostituta está acima do cliente. Disse às actrizes: “Tenham atenção, eu quero 12 raparigas inteligentes.” Era muito importante para mim: elas não estão a ser enganadas, elas são mulheres fortes.
LA: De qualquer forma, elas são dignas, muito irreverentes e insolentes e muito luminosas; elas sabem quem são. Elas são ao mesmo tempo escravas que vão lutar pela abolição da escravatura. Sabem que podem morrer do seu trabalho. Uma delas consegue escapar, é importante que uma delas o tenha feito, porque esse não tem de ser o destino de uma prostituta.
BB: Ela consegue sair porque o faz cedo. É de facto uma questão de tempo. Um ano depois as dívidas delas são pesadas demais para saírem. Não tem de ser o seu destino mas precisa de ser esclarecido. Uma clareza que surge no filme através de uma rapariga muito jovem que chega ao bordel, rapidamente se apercebe da situação e parte antes que seja tarde demais.
LA: Parece saída de um quadro de Renoir.
BA: O cabelo dela, a pele, o corpo, sim. É muito difícil encontrar raparigas que sejam assim hoje em dia.
LA: Como escolheu as actrizes?
BB: Foi um processo longo. Durou quase nove meses. Primeiro tivemos de encontrar raparigas que corporificassem uma ideia de modernidade, para não enfatizar o aspecto da reconstituição, mas ainda assim capazes de viajar no tempo até 1900. Tinha uma ideia de mistura, actrizes profissionais e amadoras, bem como uma mistura de experiências. Ao mesmo tempo, esta mescla e esta diversidade tinha de levar à consistência de um grupo. Elas tinham de trabalhar em conjunto, numa sinergia. Estava muito mais obcecado com a ideia de formar um grupo do que ter uma protagonista. Ainda assim, e acima de tudo, acho que a escolha foi direccionada pelo facto de cada uma das actrizes, enquanto pessoa, ser interessante. Às vezes não sabemos bem porquê mas uma rapariga entra na sala e tu pensas: é ela. Mesmo antes de teres feito testes de imagem.
LA: É um corpo colectivo.
BB: Era muito importante para mim não fazer um filme coral, com personagens e figurantes. Quis tratar os seis papéis principais e os restantes da mesma maneira. Esforcei-me da mesma forma para as escolher e dirigir.
LA: Todas as actrizes do filme parecem modelos de quadros de Manet, Monet e Courbet. É por isso que as quiseste fora do espaço da casa para respirar, em todos os sentidos do termo?
BB: Era importante levar o espectador para o exterior para que se sinta melhor a atmosfera de prisão que se sente no bordel.
LA: E mostra também a inocência das raparigas, porque elas estão completamente rodeadas por esta natureza protectora.
BB: Disse-lhes: “Esqueçam as prostitutas, sejam mulheres jovens.” Algo entre a alegria e a inocência passou para a cena.
DESEJOS E FANTASIAS
LA: Podes achar isto surpreendente mas para mim este é um filme sobre caras. Ainda que o corpo seja um tema importante no filme, a questão da face mantém-se recorrente, quase assombrante.
BB: Em relação aos corpos, pensei muito no seguinte: o que deveria ser mostrado nas cenas dos quartos? Quis evitar as clássicas cenas de sexo e também, mais uma vez, mostrar as coisas do ponto de vista delas. É por isso que as caras se impuseram por si só.
LA: Arranjaste formas de filmar o desejo dos clientes sem mostrar relações sexuais. É um filme muito casto.
BB: Muito modesto. Procurei cenas quase teatrais e fetichistas. Quase ao estilo de Buñuel. Há pouca nudez porque assim está mais próximo da realidade; elas tinham roupas bastante fendidas. Os homens também não se despiam muito, demorava demasiado tempo. As pessoas faziam amor vestidas. Assim aquilo que vemos mais são as fantasias que os homens queriam ver realizadas: “Quero uma gueixa…, quero uma boneca…” As fantasias revelam tanto sobre o sexo quanto corpos a simularem um acto em frente à câmara. Isto pode por vezes ser visto como um olhar pervertido mas existem também jogos, como a banheira cheia de champanhe, por exemplo.
LA: É também um filme de um pintor.
BB: Olhámos para muitas pinturas, o enquadramento, a composição, a cor, as poses…
LA: Manet, Monet, Renoir?
BB: Entre outros, e existem muitos outros, não tão bons; ainda assim tudo foi interessante para mim. No que toca ao período de tempo, estou mais ligado a detalhes específicos do que à ideia mais abrangente de reconstituição.
LA: É um filme sobre fantasia e isso é particularmente difícil de representar. Uma sequência repete-se de forma insistente; a sequência interpretada por Louis-Do de Lencquesaing que insiste em olhar – um pouco como Courbet – para o interior da vagina de uma mulher. O teu filme fala igualmente acerca da ligação inseparável entre prostituição e maternidade.
BB: Sim. Ele diz: “Quero ver o interior do teu sexo para poder pintar a tua cara.” Como se fosse aí que pudesse ver a alma. Será que elas eram maternais? Um pouco, provavelmente. Olho para todos estes homens como seres um pouco perdidos. Por exemplo, gosto do momento em que a personagem do Louis-Do já não consegue mais obrigar-se a ir para casa.
A MÚSICA DAS ALMAS, UM FILME CONTEMPORÂNEO
LA: Colocas música contemporânea a meio e no final do filme. Serve para mostrar a contemporaneidade do tema? Ou para mostrar que não é um filme de época?
BB: Aquilo que me preocupa, nos filmes de época, é o aspecto de reconstituição. Quando estava a escrever o filme, ouvi muita desta música soul dos anos 60 e a soul dos cantores negros americanos sempre me trouxe de volta às raparigas. Quando uma delas morre, elas começam a cantar uma música americana da escravatura à volta dela. Não temos de usar um quarteto de cordas só porque estamos em 1900. Não foi apenas para modernizar a ideia; é apenas porque estas mulheres evocam-me esta música. Talvez esteja relacionado com a escravatura.
LA: Com as novas leis e propostas de lei para pôr os clientes a pagar impostos, acabas por estar em sintonia com as notícias da actualidade. Os bordéis voltam a ser falados e o teu filme termina precisamente com o plano de uma prostituta a trabalhar numa rua nos dias de hoje.
BB: Sim, Porte de la Chapelle. No final, uma das raparigas pergunta a outra: “O que vais fazer agora?” e a outra responde “eu não sei.” 100 anos depois, ela continua a fazer a mesma coisa. Para mim, era a ideia de destino ficcional, umas conseguem escapar enquanto outras vão ser prostitutas para toda a sua vida. Achei interessante falar do destino de uma mulher que nunca escapará embora sonhe muito com essa fuga.
De Mizoguchi a Max Ophüls, de Godard a Hou Hsiao-Hsien, foram muitos os cineastas que visitaram a mais velha profissão do mundo. Desta vez, quem presta homenagem à 'mulher pública' é o francês Bertrand Bonello. O seu opus 5, magnífico, mergulha numa maison close na passagem do século XIX para o XX. É um filme sobre o desejo, o feminino e o cinema. Recheado de máscaras e espelhos num tempo que se esvai entre os dedos, fatalmente atraído pela ordem do destino, "Apollonide - Memórias de Um Bordel", sensação do último Festival de Cannes, apresenta-nos ainda um elenco estupendo de jovens atrizes que vão deixar marca no cinema francês. Realizou e assinou o argumento de "Apollonide -Memórias de Um Bordel". Além disso, é também produtor. Todos os filmes que fez desde a sua estrela na longa-metragem, em 1998, com "Quelque Chose d'Organique", têm-se revelado projetos muito pessoais. "Apollonide" é talvez o mais pessoal de todos. Qual foi o clique, a primeira ideia de base que o inspirou?
À partida, pensei apenas em fazer um filme com jovens mulheres. Não tinha ainda uma estrutura exata nem havia chegado à questão da prostituição. Recuperei depois um velho guião que tinha na gaveta sobre as maisons closes. Pensei então num trabalho histórico sobre aquelas casas de passe parisienses do século XIX. Em simultâneo, queria tentar fazer um filme assumidamente francês, que se instalasse no coração do país. Pensei que, graças a isso, "Apollonide" me poderia dar uma escapatória. Contudo, não foi isso que aconteceu. Tornou-se no meu filme mais íntimo.
Há em "Apollonide" um jogo de invenção importante com o tempo. Que de resto é bem marcado, desde o início, na passagem do "crepúsculo do século XIX" à "alvorada do século XX". Mas, embora os elementos do filme de época estejam lá, não é num filme de época que nos sentimos.
Tentei inscrever "Apollonide" no passado e ao mesmo tempo quis dar-lhe uma ressonância moderna para que tivéssemos a impressão de um tempo presente. Um filme de época é algo que me mete medo. Mas o tempo traz também outra coisa em "Apollonide": um ponto de fuga. O filme foi rodado num huis dos. Num espaço sem espaço. Foi preciso encontrar no tempo uma forma de respiração. Ou seja, tentei encontrar o espaço no tempo, se assim quiser. Durante a escrita do argumento, e depois da montagem, esta ideia tornou-se uma obsessão com uma fórmula: registar o quotidiano que passa e simultaneamente criar a sensação de que a noção de tempo se perdeu. Este foi um dos maiores desafios da mise en scène. Dentro de um bordel, os dias confundem-se com as noites.
Mas há um momento de exteriores em que as prostitutas saem, numa passagem renoiriana, para uma partie de campagne...
É uma passagem histórica que está bem documentada: as raparigas dos bordéis tinham o hábito de saírem uma vez por mês num passeio pelo campo. Decidi incluir esse momento. A saída reforça ainda mais a condição em que elas viviam e a sua reclusão.
Na pesquisa histórica que efetuou, foi fácil encontrar elementos sobre as casas de passe? O filme é abundante em detalhes: ficamos a conhecer o momento em que as raparigas comem, quando dormem, como se penteiam, como se lavam, as roupas e objetos que usam na profissão...
Consultei alguns livros, sobretudo ensaios como "La Vie quotidienne dans les maisons doses de 1830 à 1930", de Laure Adler, uma jornalista que investigou e inventariou detalhadamente o quotidiano e o funcionamento da prostituição no século XIX. Consegui depois aceder aos arquivos da polícia daquele tempo. São documentos apaixonantes que nos revelam o destino de muitas raparigas como aquelas. Tive acesso a cartas e a diários íntimos da época, e, como é óbvio, não falta literatura e pintura sobre o tema. Mas nunca procurei histórias. É certo que o filme acrescenta a tudo isto sonhos, o romanesco, mas eu precisava de ser exato nos detalhes. Só com esse rigor, até quase podermos sentir o peso dos objetos, consegue um filme de época dar uma sensação de realidade, de algo que é contemporâneo.
O elenco feminino é um triunfo absoluto, sentimos que as atrizes conseguiram criar uma espécie de família entre elas...
Foi o que tentámos fazer: gerar um grupo. O casting foi muito longo. Um dos princípios de seleção foi o de adivinhar quem melhor se adaptaria a esse grupo. As atrizes foram logo informadas de que não haveria papéis principais ou qualquer outra hierarquia. Foi como preparar um bouquet com flores muito diferentes, mas harmonioso. A solidariedade do quadro coletivo começou, de facto, no casting.
Disse que os seus filmes "são cerebrais", que a ficção se passa sempre a um nível Interior. Poderia desenvolver esta ideia, um pouco vaga, a propósito de "Apollonide"?
O que eu quis dizer é que os décors deste filme, os décors da maison close, são como uma sala de cinema. Um local em que se entra, sem janelas, sem comunicação com o exterior... e depois fecha-se a porta. Os clientes que frequentam o bordel vão lá para quê? Para escaparem à realidade. O bordel pode então funcionar como um cérebro autónomo, que permite deambulações geográficas e mentais. Como o cinema.
De todas as personagens, Madeleine, "a Judia" interpretada pela estreante Alice Barnole, aquela a quem rasgaram a boca deixando-lhe um sorriso trágico, assume um poder que lança e conclui a ficção. Ela é a coluna vertebral do filme?
Sim. Não costumo ser permeável a sonhos, mas a Madeleine vem do sonho de um filme que vi em criança chamado "O Homem Que Ri", feito em 1928 por Paul Leni. Pensei depois: "Porque não tentar fazer uma versão feminina? Uma mulher que ri?" A personagem vem daí. Abriu-me pistas para a ficção e para o seu lado mais afetivo. Sou sensível a tudo o que pode desfigurar um rosto humano, e quando esse rosto é o de uma prostituta abre necessariamente uma dimensão suplementar ao drama.
Os clientes que frequentam o bordel são especiais. Muitos são cineastas. Encontramos Jacques Nolot, Xavier Beauvois, Pierre Léon, Damien Odoul, Vlncent Dieutre... Noémie Lvovsky, a proprietária do bordel, é também cineasta. Tal como Pascale Ferran, que lê um texto...
Foi um pouco por acaso. Nolot, Beauvois ou Lvovsky são também atores de grande nível. Das atrizes à volta dos 45 anos que eu procurava para o papel de Noémie, ela era a que me parecia mais capaz de expressar um lado maternal que fosse ao mesmo tempo severo. Beauvois tem uma presença doce e inquietante. Já Nolot é um ator extraordinário. Descobri depois que estava a criar ali um mundo de cineastas que também são meus amigos, uma variação de olhares, e decidi levar a ideia até ao fim. Mas há outro motivo, mais importante que o filme de amigos: no caso dos clientes, não há verdadeiras personagens masculinas. São só presenças. Fantasmas. Se tivesse contratado atores para o efeito, acho que teria tido problemas. Acabariam por perguntar-me: "Afinal, qual é o meu papel?" Ao passo que o convite foi antes este: "Venham passar um bocado na maison close. Venham visitar a rodagem do meu filme."
Antes de ser cineasta, você foi músico. Ocupou-se da seleção musical do filme, e há canções que não são nada evidentes ali dentro, como 'Nights In White Satin', dos Moody Blues. Qual é a explicação para a escolha?
O anacronismo não vem por provocação. Foi uma escolha emocional. Eram canções que eu estava a ouvir durante a escrita do argumento. Também não tenho uma explicação lógica para a música soul que abre e fecha o filme, além de um lado afetivo e dilacerante que lhe encontro. A música negra americana dos anos 60 tem uma relação forte com a escravatura... Talvez a origem da escolha para o filme seja essa.
E o uso do split-screen? Ninguém está à espera dele num filme de época.
Vem de duas coisas: do trabalho de dilatação do tempo, de que já falámos, e de uma ideia que me faz pensar nas câmaras de vigilância, como no "Big Brother". Aquela casa é uma prisão. Como tal, queria mostrar que as raparigas, mesmo quando sozinhas, estão sempre a ser observadas. A casa é um local sem nenhuma privacidade. Há coisas neste filme que me colocaram problemas: o medo do teatro, por exemplo. O split-screen ajudou-me a ultrapassar esses problemas.
Para si, o que é que se deve pensar sobre a prostituição perante um filme como este? Quis apresentar um retrato sobre a prostituição a todos os níveis, político, sexual, económico?
"Apollonide" não é um filme de mensagem. Não faz uma apologia das casas de passe. O que me interessa aqui é o funcionamento e a engrenagem da prostituição. E ser o mais justo possível perante esse mecanismo. Contudo, na sequência final, há um salto brutal para a realidade de hoje...
É um salto brutal que surge por vários motivos. Se olharmos para a personagem de Clotilde, interpretada por Céline Sallette, ela diz no fim que já não sabe o que está a fazer. Há depois um corte na ação e descobrimo-la cem anos mais tarde na rua. Para mim, foi uma maneira de mostrar que o seu destino é ser prostituta para o resto da vida. Por outro lado, pressenti que o filme corria o risco de ficar fechado em si próprio, no seu casulo, e que era preciso confrontá-lo com a realidade, com os dias de hoje. Na sequência final, não quero dizer que a prostituição há cem anos era melhor do que é hoje. Não há nenhuma nostalgia. O mundo ficou diferente. Mas a prostituição não mudou.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/1/12
Bertrand Bonello nasceu em 1968. Estudou música antes de se tornar um realizador, tendo realizado o seu primeiro filme em 1998, “Quelque chose d’organique”, para o qual escreveu o argumento e compôs a música. O filme foi seleccionado para a secção Panorama do Festival de Cinema de Berlim. Em 2001, o seu segundo filme, “Le Pornographe”, o retrato de um realizador de cinema pornográfico na reforma, interpretado por Jean-Pierre Léaud, foi apresentado na Semana da Crítica em Cannes e venceu o prestigiado Prémio FIPRESCI da Crítica Internacional. No ano de 2003 Bonello realizou “Tiresia”, que competiu pela Palma de Ouro em Cannes. Regressou a Cannes em 2005 com uma curta-metragem de homenagem à fotógrafa Cindy Sherman, “Cindy: the Doll is Mine”, com Asia Argento. Em 2007, o cineasta realizou e produziu um novo projecto, “My New Picture”, apresentado no Festival de Cinema de Locarno. Bertrand Bonello dirigiu ainda “De La Guerre”, com Mathieu Amalric e Asia Argento, seleccionado para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Há um ano, a sua curta “Where the boys are” foi seleccionada para o Festival de Locarno. APOLLONIDE – MEMÓRIAS DE UM BORDEL é a sua quinta longa-metragem.
“Apollonide” é o primeiro filme do francês Bertrand Bonello estreado em Portugal. Bonello (n. 1968) construiu na última década uma “reputação” que o conduziu a Cannes (em cuja competição oficial “Apollonide” foi estreado), através de filmes razoavelmente sulfurosos, polémicos q.b. (“Tiresia”, sobretudo, mas também “Cindy, the Doll is Mine”, uma curta com Asia Argento), por regra trabalhando um erotismo “mortífero”, para não dizer “pestilento”, convocado e fazendo convocar todo o tipo de chaves e referências artísticas e culturais, o romantismo “fin de siècle”, Bataille, Warhol... Diríamos que pode passar à história como um cineasta singular e importatnte ou apenas como um Borowczyk que caiu no goto (e no gosto) do “jour”. Qualquer dos dois destinos parece possível, e não será “Apollonide”, de resto um filme bastante linear e legível, mesmo bastante “pacífico”, a apressar uma decisão.
É um filme sobre um bordel parisiense do princípio do século XX, o tipo de coisa que nos chegou numa memória mitificada pela literatura, pela pintura, e também, embora forçosamente com outra contenção alusiva, pelo cinema francês das primeiras décadas do século passado. Bonello joga com isso tudo, especialmente a pintura: há muitos planos em que o espectador é convidado a ver o seu impressionismo, e quando Bonello divide o ecrã em dois, três ou quatro (uns quantos momentos em “split-screen”) não há dúvida, o espectador é posto a olhar para quadros. O bordel, de onde não se sai, e o mundo que entra por ele adentro (os homens que o frequentam, as candidatas a prostitutas) são obviamente uma coisa passada, regida por códigos extintos. A maneira como Bonello encena esse mundo e esses códigos tem um sentido do risco interessante: há elegância (mesmo o que é violento, física ou verbalmente, é mais elegante do que bruto) e há, senão felicidade, uma espécie de conforto, o conforto da “normalidade”, de um mundo em que a situação daquela casa e daquelas raparigas encaixa perfeitamente. Pode suscitar - daí o sentido do risco - uma ideia de nostalgia, não muito diferente (claro que “mutatis mutandis”) daquela com de vez em quando Sokurov parece filmar a Rússia imperial: um “paraíso perdido”, em suma. A questão “sociológica”, sendo importante (e particularmente no plano final, uma beira de estrada contemporânea: já não há bordéis, as prostitutas estão na rua e parecem mais tristes do que nunca), é resolvida mais pela poesia e pela alusão. O mundo avança por ali adentro: as doenças, o dinheiro (o senhorio quer aumentar a renda do bordel), as promessas por cumprir (aparentemente, nenhum homem fala a sério quando faz juras de amor a uma prostituta). Quanto mais o mundo avança, mais o bordel se revela como puro teatro (“social” e não só), mascarada cada vez maior até que um baile já pareça mais um “freak show”. Elipse, e o “teatro” transforma-se em “documentário”: é o tal plano final, contemporâneo e realista.
Filme inteligente, por vezes intrigante (a “mulher que ri”, personagem que carrega um mundo referencial), servido por um óptimo “ensemble” de actrizes e, por alguma razão, com vários realizadores no papel dos clientes (reconhecem-se Jacques Nolot, Xavier Beauvois, Pierre Léon...), “Apollonide” merece ser visto. Decidir Bonello fica, mais uma vez, adiado - o que deve ser mérito dele.
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Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
"I am tired, I am weary,
I could sleep for a thousand years"
'Venus in Furs', Velvet Underground
Há uma pantera ameaçadora a esconder as garras nos sofás de veludo, a ourivesaria é fina, as peles são de cetim e, lá para a frente, as noites também, quando irrompe um velho hit dos Moody Blues. A cena é magnífica, as atrizes estão a esse nível, e o conjunto marca uma data na história do cinema francês recente. Contudo, não foi a anacrónica balada sixties ('Nights in White Satin') que mais nos intrigou. Foi uma frase - a primeira do filme - que se ouve da boca de Clotilde (Céline Sallette), uma das 'meninas', quando ela diz que "estou cansada, podia dormir mil anos". Mil dias podíamos ter demorado desde o último Festival de Cannes a descobrir de onde a frase vinha. Ela ressoava na cabeça sem se denunciar. Há poucos dias, na conversa telefónica que deu a entrevista das páginas anteriores, foi Bonello quem o confirmou: é um verso 'roubado' de 'Venus in Furs'.
Para que serve esta introdução? Para falar do tempo. De um mundo fechado em que todos os dias se assemelham. Como o espaço é fechado, só o tempo permite uma escapatória. Talvez seja o tempo do desejo, e não é por acaso que a narrativa ressoa, precisamente, entre o passado e o presente, entre 1900 e os dias de hoje, entre a pintura de Manet e Degas e os versos de Lou Reed, com uma só missão: inventar um tempo próprio, genuíno, em que o sono é interdito. E, no princípio do filme, quem poderá dizer que quer dormir, entre cristais e champanhe, com segredos permanentes atrás das cortinas, sonhos de esmeradas que substituem sem fim a realidade?
Só que a realidade de "Apollonide" é outra. Quem espera encontrar aqui uma elegia de bordéis passados, uma queda para a nostalgia, um idílio perdido entre quatro paredes ou, simplesmente, a comodidade de um olhar voyeur descobre cedo que se enganou no filme. Bonello não perde tempo a sugerir-nos a tragédia pessoal de uma mulher que ganhou um sorriso criminoso e infame, Madeleine, dita "a judia" (papel incrível de Alice Barnole), embora só a revele por inteiro num choro final tão violento que não deve ter paralelo. Antes dessas lágrimas que ninguém esquecerá já se passou do conforto ao desconforto. Dos seios e dos corpetes, da sensualidade e dos corpos febris já se passou à desfiguração de um rosto. Das notas dos clientes já se passou às moedas das prostitutas (cada uma tem de comprar o seu perfume), às suas dívidas, que se adivinham eternas. Sentimos que o tempo de Bonello é frágil. Que o cineasta sabe bem o tema que tem nas mãos e que tudo fará para evitar sobre ele qualquer tipo de julgamento. "Apollonide" não julga, nem as mulheres, nem o seu drama, nem permite que o cinema o faça, apenas mostra "um mecanismo" (foi o realizador quem o disse) de movimentos de vida que parecem ter ficado suspensos - e ao tempo voltamos, esse derradeiro inquisidor.
O que é "Apollonide", para Bonello? Uma casa de trabalho. Uma casa de vida. Uma casa de luxos, de detalhes, de camaradagem, de concorrência, mas também de declínio e de sofrimento. Por fim, uma casa de terror que se conclui com um plano terrível, capta¬do num boulevard périphérique: estas Vénus em chamas podem até tornar-se mortais, mas nunca serão livres. Não tardamos muito a chegar à conclusão inevitável: "Apollonide', para Bonello, é o cinema. Aquele que soube casar a generosidade e a crueldade na textura do melodrama. Aquele que colocou o seu olhar à altura do destino e foi capaz de testemunhar, pelo ser humano, uma verdadeira paixão.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/1/12
Março de 1900, final da Belle Époque. Entramos no dia a dia das raparigas tristes e deprimidas que dão corpo a um requintado e melancólico bordel parisiense. Madeleine, Samira, Julie, Clotilde, Léa e Pauline são lideradas pela sua Madame, que gere a casa com elegância e um conjunto de regras rigoroso. Pauline é a última a entrar naquele espaço em decadência e a única que de lá sai, de livre vontade e sem ser para a morte.
Estamos perante um espetáculo cruel feito de jovens mulheres presas a uma vida sem saída. Elas são os servos da sua madame que lhes avança dinheiro para perfumes e vestidos luxuosos, mantendo-as em dívida para com ela. São as vítimas das doenças da sociedade e por isso punidas com sífilis, gravidez (razão pela qual se submetem a exames ginecológicos regulares com medo e trepidação) e encontros sexuais humilhantes.
L’apollonide é um clube de cavalheiros que se encontram para conversar, beber e fumar e onde o relacionamento social é tão importante quanto o sexual. Os homens são retratados como fracos e o sexo é mais sobre a realização das suas fantasias do que sobre o ato. A sua passagem pela casa constitui uma fuga a um mundo em mudança. Não passam de almas perdidas, transportando uma imagem de decadência entediada.
O filme interessa-se por mostrar a dinâmica das raparigas como um grupo, e entre elas e os seus clientes (os regulares, os casuais). Não existe propriamente um personagem principal. Depois de ser vítima de um fetichismo erótico doentio e perverso, Madeleine deixa de se encontrar com homens e passa a tratar da cozinha e da roupa, até ser convocada para aparecer como uma aberração numa soirée de sexo libertino. Destaca-se um pouco mais pela violência a que é exposta, mas nem por isso aparece em mais cenas. As outras, excetuando Pauline - que tem uma aparição mais curta, mas de extrema importância - são intercambiáveis e formam quase um só personagem.
É fora de grades, na única cena ao ar livre, que acontece um momento singular de verdadeira alegria. Com uma inocência desinibida, as raparigas podem ser elas próprias e não o brinquedo dos seus opressores.
A fotografia é lúgubre, sensual e fascinante. Rico em texturas, dá-nos os contornos da ansiedade e tragédia destas grandes odaliscas. A lírica da câmara e dos figurinos cria uma claustrofobia exuberante, uma espécie de gaiola dourada onde as prostitutas da alta-classe vivem. Há claras alusões à pintura de Manet, Renoir e Toulouse-Lautrec, tanto na pose e nos detalhes técnicos, como nos figurinos e iluminação.
A inesperada utilização de música moderna em várias cenas cruciais (The Moody Blues – Nights in White Satin ou Lee Moses – Bad Girl) pinta não só um retrato triste do fim de uma época, como relata uma tragédia contemporânea.
Os bordéis estavam em declínio e L’apollonide encontra-se à beira da falência, desde que as mulheres começaram a prostituir-se na rua. Nas cenas finais, trespassa a sensação de um paraíso perdido, não sem se derramar sangue, sem se queimar a pele e presenciar a morte.
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Inês Monteiro, www.c7nema.net
LITERATURA DE BORDEL
Não há sombra de erotismo, antes de uma violência consentida e uma esperança enganada, que Bertrand não fecha no seu tempo. Elabora-o antes de forma a transportá-lo implicitamente para a atualidade, dando-lhe um ar de tese inacabada ou mera curiosidade sobre a 'mais velha profissão do mundo'. Ou apenas um fascínio sobre esta personagem sem tempo nem espaço a que se pode chamar: a prostituta.
Em Histórias de Cabaret, um excelente mas pouco valorizado filme de Abel Ferrara, fecham-nos nos meandros de um clube de strip-tease em decadência, numa cintura claustrofóbica que mostra a teia de relações num microcosmos com códigos próprios que é, simultaneamente, profissional e familiar. Em Apollonide - Memórias de um Bordel, enclausura-nos num bordel parisiense da passagem do século (do XIX para o XX). As últimas são prostitutas, as primeiras apenas dançarinas, ambas vivem do seu corpo e da sua juventude, umas são francesas do século XIX, outras americanas do século XXI. Mas a maior diferença talvez seja mesmo que Abel Ferrara é o realizador independente italo-americano (que até começou pelo cinema pornográfico) enquanto Bertrand é um realizador francês fascinado por Eric Rohmer e Alain Resnais. E isso tudo muda.
Em primeiro lugar, porque há uma intelectualização do discurso. A Bertrand não interessa ser fiel ao retrato de uma prostituta francesa de há 100 anos, usa esse pretexto para a criação de um ambiente, um universo próprio, realista apenas em alguns momentos. Isto apesar de se dar ao trabalho de reconstituir pormenores de época, como os jogos de salão, a decoração, os produtos de higiene, o guarda-roupa. Mas com um despudor semelhante ao de Sofia Copolla, em Maria Antonieta, usa música americana dos anos 60 num ambiente de Belle Époque, cria prostitutas com erudição, apreciadoras de poesia e que chegam mesmo a ler ensaios sobre si próprias (que as ofendem). Nada disto é particularmente perturbante, porque o realizador consegue o mais importante: criar um ambiente específico e faz com que tudo ganhe uma lógica interna naquele universo particular. E talvez assim o expanda, aproximando-nos das personagens, dando-lhes um estatuto universal e intemporal.
Como muitos filmes do género, ao contrário do que se possa esperar, Apollonide - Memórias de um Bordel é um drama anti-erótico. Porque apesar de estar repleto de mulheres nuas e cenas de sexo há uma certa frigidez que o atravessa. Não há sombra de erotismo, antes de uma violência consentida e uma esperança enganada, que Bertrand não fecha no seu tempo. Elabora antes de forma a transportá-lo implicitamente para a atualidade, dando-lhe um ar de tese inacabada ou mera curiosidade sobre a 'mais velha profissão do mundo'. Ou apenas um fascínio sobre esta personagem sem tempo nem espaço a que se pode chamar: a prostituta.
Entre a busca do prazer e a crueldade, domina, por um lado, a ideia de prisão debochada. Por outro há um empolamento sádico, através da história bárbara da 'mulher que ri' e sobretudo no seu enquadramento social. Num filme de muitas personagens, com o peso bem dividido, ela acaba por ser central, focando-nos nos seus sonhos/pesadelos de forma recorrente. Mas é a prostituta, assim em geral, que acaba por ser o verdadeiro protagonista.
Bertrand de forma nada sistemática usa alguns elementos de experimentação, como o ecrã dividido, o anacronismo musical ou mesmo a viagem no tempo. E também alguns bons pormenores, como a pantera que ajuda a criar o ambiente ou os filhos da dona do bordel que intensificam a toada familiar. As atrizes são eficazes em papéis difíceis pela sua ambiguidade. O filme, que não é moralista, talvez nos corrompa. Depende da sua própria habilidade de nos acolher no Lupanar. Quem não conseguir entrar, fica mesmo de fora.
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Manuel Halpern, Visão
À CONVERSA COM BERTRAND BONELLO E LAURE ADLER
ORIGEM
LAURE ADLER: Como surgiu o desejo de fazer um filme sobre esses espaços que em tempos se chamavam lupanares?
BERTRAND BONELLO: Há dez anos quis fazer um filme sobre a reabertura de bordéis na actualidade. Depois desisti. Após filmar “De la Guerre”, o meu filme anterior, quis fazer um filme com um grupo de raparigas, com a dinâmica de um grupo. Foi o meu colega Josée Deshaies, que é também o meu director de Fotografia, que me sugeriu regressar à ideia dos bordéis mas sob uma perspectiva histórica. Comecei assim a pesquisar sobre este tema e encontrei o teu livro. Interessa-me o aspecto de mundo fechado. Onde quer que haja um mundo fechado, pode criar-se uma ficção, um mundo para o cinema. Cabia-me então trabalhar entre factos e ficção, entre a crónica e a narrativa. A representação da prostituta chegou-nos sempre através do olhar dos homens: a maioria pintores ou escritores, que iam a bordéis e que depois iam para casa para trabalhar num quadro ou num livro. O ponto de vista da prostituta foi sempre muito difícil de encontrar.
LA: Elas escapam-nos! É exactamente isso.
BB: Há algo de profundamente misterioso nelas, e é por causa disso que elas têm sido uma figura recorrente na escrita de ficção desde o início da história da Arte. O primeiro filme com uma prostituta foi feito em 1900; o que só mostra que elas se tornaram personagens assim que o cinema foi inventado.
O BORDEL
LA: Representas de forma admirável o facto de o bordel ter sido um espaço para socializar, uma vez que antes de subir para os quartos, as pessoas esperavam, falavam e bebiam.
BB: Alguns homens nem sequer subiam para os quartos; vinham apenas tomar uma bebida.
LA: Aquilo que é mais interessante no filme é o papel específico do primeiro andar e do rés-do-chão. O último é um espaço sumptuoso, um cenário bonito para salientar a beleza das jovens mulheres que lá se encontram para saciar os apetites sexuais da burguesia. Mas o bordel é ao mesmo tempo uma prisão. No primeiro andar elas vivem uma vida estéril enquanto que no rés-do-chão elas têm de interpretar o seu papel. Como conseguiste levar-nos numa viagem – que é ao mesmo tempo real e onírica – por este espaço fechado do bordel?
BB: Tentei dividir o espaço em três partes: os salões, os quartos e aquilo a que chamo de cozinha. Quis manter este balanço, sem estabelecer prioridades. Conseguimos filmar tudo num décor. Desta forma, num só plano, seguimos do sótão, onde elas dormem, para o bem mais luxuoso corredor que leva até aos quartos onde elas trabalham. Quis mostrar que isto coexistia, que elas estavam a uma porta de distância de vestirem uma simples camisa de noite ou um magnífico vestido com jóias de sonho. É um filme sobre contrastes.
VER E SER VISTO
LA: Uma personagem enigmática, a quem acontece algo terrível, começa e termina o filme. Tal como é habitual nos teus filmes, chegámos à questão do “ver e ser visto”.
BB: Está também relacionado com o corpo e com a mente, na medida em que um afecta o outro. Isto está registado para sempre através dos filmes do Cronenberg porque ele fala sempre disto: a forma como a relação com o corpo vai influenciar a mente. Por vezes levando à loucura. Voltando à personagem que mencionaste; enquanto escrevia o argumento, tive sonhos durante duas ou três noites de seguida com “O Homem Que Ri”, a adaptação de um romance de Victor Hugo, feita nos anos 1920. Pensei então em criar a Mulher que ri.
LA: O filme é uma história dentro de uma história para o cinema.
BB: O meu director de Fotografia acredita que todos os meus filmes são assim. Na verdade, é possível que a personagem interpretada pela Noémie Lvovsky seja eu, o realizador, dirigindo este bordel; ela cria os cenários, ela pede dinheiro ao prefeito da mesma forma que eu o pedi ao CNC… e talvez seja possível considerar que a sua clientela é o meu público.
LA: Então também não será por acaso, acredito, que as personagens principais, tais como a madame do bordel ou os principais clientes, sejam interpretados por realizadores.
BB: Apercebi-me disso apenas mais tarde. Foi um pouco por acaso. Por uma razão: acho que todos estes realizadores são bons actores. Todos de uma vez, estávamos todos numa sala e percebemos que éramos 10! Porquê tantos realizadores? Não sei; talvez seja a minha forma de falar sobre cinema.
RAPARIGAS, UM CORPO COLECTIVO
LA: O que é fascinante é que as raparigas são vistas pela madame, uma mulher e uma patroa, que controla as suas fronteiras. No final, os homens são de certa forma os escravos das raparigas; as raparigas conquistam os seus clientes.
BB: Sim, acredito absolutamente nisso. A dureza nasce da própria casa, do cárcere e das condições de vida. Com o meu director de Fotografia, decidimos filmar apenas as raparigas. Por vezes os homens são vistos por trás ou as cabeças são cortadas do plano. Existem, por isso mesmo, poucos campos/contra campos; ficamos com as raparigas e mesmo quando nos viramos é uma rapariga que está no plano também.
LA: E quando há um grande plano de um homem, ele está de máscara.
BB: Exactamente, e isso reforça a impressão de que a prostituta está acima do cliente. Disse às actrizes: “Tenham atenção, eu quero 12 raparigas inteligentes.” Era muito importante para mim: elas não estão a ser enganadas, elas são mulheres fortes.
LA: De qualquer forma, elas são dignas, muito irreverentes e insolentes e muito luminosas; elas sabem quem são. Elas são ao mesmo tempo escravas que vão lutar pela abolição da escravatura. Sabem que podem morrer do seu trabalho. Uma delas consegue escapar, é importante que uma delas o tenha feito, porque esse não tem de ser o destino de uma prostituta.
BB: Ela consegue sair porque o faz cedo. É de facto uma questão de tempo. Um ano depois as dívidas delas são pesadas demais para saírem. Não tem de ser o seu destino mas precisa de ser esclarecido. Uma clareza que surge no filme através de uma rapariga muito jovem que chega ao bordel, rapidamente se apercebe da situação e parte antes que seja tarde demais.
LA: Parece saída de um quadro de Renoir.
BA: O cabelo dela, a pele, o corpo, sim. É muito difícil encontrar raparigas que sejam assim hoje em dia.
LA: Como escolheu as actrizes?
BB: Foi um processo longo. Durou quase nove meses. Primeiro tivemos de encontrar raparigas que corporificassem uma ideia de modernidade, para não enfatizar o aspecto da reconstituição, mas ainda assim capazes de viajar no tempo até 1900. Tinha uma ideia de mistura, actrizes profissionais e amadoras, bem como uma mistura de experiências. Ao mesmo tempo, esta mescla e esta diversidade tinha de levar à consistência de um grupo. Elas tinham de trabalhar em conjunto, numa sinergia. Estava muito mais obcecado com a ideia de formar um grupo do que ter uma protagonista. Ainda assim, e acima de tudo, acho que a escolha foi direccionada pelo facto de cada uma das actrizes, enquanto pessoa, ser interessante. Às vezes não sabemos bem porquê mas uma rapariga entra na sala e tu pensas: é ela. Mesmo antes de teres feito testes de imagem.
LA: É um corpo colectivo.
BB: Era muito importante para mim não fazer um filme coral, com personagens e figurantes. Quis tratar os seis papéis principais e os restantes da mesma maneira. Esforcei-me da mesma forma para as escolher e dirigir.
LA: Todas as actrizes do filme parecem modelos de quadros de Manet, Monet e Courbet. É por isso que as quiseste fora do espaço da casa para respirar, em todos os sentidos do termo?
BB: Era importante levar o espectador para o exterior para que se sinta melhor a atmosfera de prisão que se sente no bordel.
LA: E mostra também a inocência das raparigas, porque elas estão completamente rodeadas por esta natureza protectora.
BB: Disse-lhes: “Esqueçam as prostitutas, sejam mulheres jovens.” Algo entre a alegria e a inocência passou para a cena.
DESEJOS E FANTASIAS
LA: Podes achar isto surpreendente mas para mim este é um filme sobre caras. Ainda que o corpo seja um tema importante no filme, a questão da face mantém-se recorrente, quase assombrante.
BB: Em relação aos corpos, pensei muito no seguinte: o que deveria ser mostrado nas cenas dos quartos? Quis evitar as clássicas cenas de sexo e também, mais uma vez, mostrar as coisas do ponto de vista delas. É por isso que as caras se impuseram por si só.
LA: Arranjaste formas de filmar o desejo dos clientes sem mostrar relações sexuais. É um filme muito casto.
BB: Muito modesto. Procurei cenas quase teatrais e fetichistas. Quase ao estilo de Buñuel. Há pouca nudez porque assim está mais próximo da realidade; elas tinham roupas bastante fendidas. Os homens também não se despiam muito, demorava demasiado tempo. As pessoas faziam amor vestidas. Assim aquilo que vemos mais são as fantasias que os homens queriam ver realizadas: “Quero uma gueixa…, quero uma boneca…” As fantasias revelam tanto sobre o sexo quanto corpos a simularem um acto em frente à câmara. Isto pode por vezes ser visto como um olhar pervertido mas existem também jogos, como a banheira cheia de champanhe, por exemplo.
LA: É também um filme de um pintor.
BB: Olhámos para muitas pinturas, o enquadramento, a composição, a cor, as poses…
LA: Manet, Monet, Renoir?
BB: Entre outros, e existem muitos outros, não tão bons; ainda assim tudo foi interessante para mim. No que toca ao período de tempo, estou mais ligado a detalhes específicos do que à ideia mais abrangente de reconstituição.
LA: É um filme sobre fantasia e isso é particularmente difícil de representar. Uma sequência repete-se de forma insistente; a sequência interpretada por Louis-Do de Lencquesaing que insiste em olhar – um pouco como Courbet – para o interior da vagina de uma mulher. O teu filme fala igualmente acerca da ligação inseparável entre prostituição e maternidade.
BB: Sim. Ele diz: “Quero ver o interior do teu sexo para poder pintar a tua cara.” Como se fosse aí que pudesse ver a alma. Será que elas eram maternais? Um pouco, provavelmente. Olho para todos estes homens como seres um pouco perdidos. Por exemplo, gosto do momento em que a personagem do Louis-Do já não consegue mais obrigar-se a ir para casa.
A MÚSICA DAS ALMAS, UM FILME CONTEMPORÂNEO
LA: Colocas música contemporânea a meio e no final do filme. Serve para mostrar a contemporaneidade do tema? Ou para mostrar que não é um filme de época?
BB: Aquilo que me preocupa, nos filmes de época, é o aspecto de reconstituição. Quando estava a escrever o filme, ouvi muita desta música soul dos anos 60 e a soul dos cantores negros americanos sempre me trouxe de volta às raparigas. Quando uma delas morre, elas começam a cantar uma música americana da escravatura à volta dela. Não temos de usar um quarteto de cordas só porque estamos em 1900. Não foi apenas para modernizar a ideia; é apenas porque estas mulheres evocam-me esta música. Talvez esteja relacionado com a escravatura.
LA: Com as novas leis e propostas de lei para pôr os clientes a pagar impostos, acabas por estar em sintonia com as notícias da actualidade. Os bordéis voltam a ser falados e o teu filme termina precisamente com o plano de uma prostituta a trabalhar numa rua nos dias de hoje.
BB: Sim, Porte de la Chapelle. No final, uma das raparigas pergunta a outra: “O que vais fazer agora?” e a outra responde “eu não sei.” 100 anos depois, ela continua a fazer a mesma coisa. Para mim, era a ideia de destino ficcional, umas conseguem escapar enquanto outras vão ser prostitutas para toda a sua vida. Achei interessante falar do destino de uma mulher que nunca escapará embora sonhe muito com essa fuga.
De Mizoguchi a Max Ophüls, de Godard a Hou Hsiao-Hsien, foram muitos os cineastas que visitaram a mais velha profissão do mundo. Desta vez, quem presta homenagem à 'mulher pública' é o francês Bertrand Bonello. O seu opus 5, magnífico, mergulha numa maison close na passagem do século XIX para o XX. É um filme sobre o desejo, o feminino e o cinema. Recheado de máscaras e espelhos num tempo que se esvai entre os dedos, fatalmente atraído pela ordem do destino, "Apollonide - Memórias de Um Bordel", sensação do último Festival de Cannes, apresenta-nos ainda um elenco estupendo de jovens atrizes que vão deixar marca no cinema francês. Realizou e assinou o argumento de "Apollonide -Memórias de Um Bordel". Além disso, é também produtor. Todos os filmes que fez desde a sua estrela na longa-metragem, em 1998, com "Quelque Chose d'Organique", têm-se revelado projetos muito pessoais. "Apollonide" é talvez o mais pessoal de todos. Qual foi o clique, a primeira ideia de base que o inspirou?
À partida, pensei apenas em fazer um filme com jovens mulheres. Não tinha ainda uma estrutura exata nem havia chegado à questão da prostituição. Recuperei depois um velho guião que tinha na gaveta sobre as maisons closes. Pensei então num trabalho histórico sobre aquelas casas de passe parisienses do século XIX. Em simultâneo, queria tentar fazer um filme assumidamente francês, que se instalasse no coração do país. Pensei que, graças a isso, "Apollonide" me poderia dar uma escapatória. Contudo, não foi isso que aconteceu. Tornou-se no meu filme mais íntimo.
Há em "Apollonide" um jogo de invenção importante com o tempo. Que de resto é bem marcado, desde o início, na passagem do "crepúsculo do século XIX" à "alvorada do século XX". Mas, embora os elementos do filme de época estejam lá, não é num filme de época que nos sentimos.
Tentei inscrever "Apollonide" no passado e ao mesmo tempo quis dar-lhe uma ressonância moderna para que tivéssemos a impressão de um tempo presente. Um filme de época é algo que me mete medo. Mas o tempo traz também outra coisa em "Apollonide": um ponto de fuga. O filme foi rodado num huis dos. Num espaço sem espaço. Foi preciso encontrar no tempo uma forma de respiração. Ou seja, tentei encontrar o espaço no tempo, se assim quiser. Durante a escrita do argumento, e depois da montagem, esta ideia tornou-se uma obsessão com uma fórmula: registar o quotidiano que passa e simultaneamente criar a sensação de que a noção de tempo se perdeu. Este foi um dos maiores desafios da mise en scène. Dentro de um bordel, os dias confundem-se com as noites.
Mas há um momento de exteriores em que as prostitutas saem, numa passagem renoiriana, para uma partie de campagne...
É uma passagem histórica que está bem documentada: as raparigas dos bordéis tinham o hábito de saírem uma vez por mês num passeio pelo campo. Decidi incluir esse momento. A saída reforça ainda mais a condição em que elas viviam e a sua reclusão.
Na pesquisa histórica que efetuou, foi fácil encontrar elementos sobre as casas de passe? O filme é abundante em detalhes: ficamos a conhecer o momento em que as raparigas comem, quando dormem, como se penteiam, como se lavam, as roupas e objetos que usam na profissão...
Consultei alguns livros, sobretudo ensaios como "La Vie quotidienne dans les maisons doses de 1830 à 1930", de Laure Adler, uma jornalista que investigou e inventariou detalhadamente o quotidiano e o funcionamento da prostituição no século XIX. Consegui depois aceder aos arquivos da polícia daquele tempo. São documentos apaixonantes que nos revelam o destino de muitas raparigas como aquelas. Tive acesso a cartas e a diários íntimos da época, e, como é óbvio, não falta literatura e pintura sobre o tema. Mas nunca procurei histórias. É certo que o filme acrescenta a tudo isto sonhos, o romanesco, mas eu precisava de ser exato nos detalhes. Só com esse rigor, até quase podermos sentir o peso dos objetos, consegue um filme de época dar uma sensação de realidade, de algo que é contemporâneo.
O elenco feminino é um triunfo absoluto, sentimos que as atrizes conseguiram criar uma espécie de família entre elas...
Foi o que tentámos fazer: gerar um grupo. O casting foi muito longo. Um dos princípios de seleção foi o de adivinhar quem melhor se adaptaria a esse grupo. As atrizes foram logo informadas de que não haveria papéis principais ou qualquer outra hierarquia. Foi como preparar um bouquet com flores muito diferentes, mas harmonioso. A solidariedade do quadro coletivo começou, de facto, no casting.
Disse que os seus filmes "são cerebrais", que a ficção se passa sempre a um nível Interior. Poderia desenvolver esta ideia, um pouco vaga, a propósito de "Apollonide"?
O que eu quis dizer é que os décors deste filme, os décors da maison close, são como uma sala de cinema. Um local em que se entra, sem janelas, sem comunicação com o exterior... e depois fecha-se a porta. Os clientes que frequentam o bordel vão lá para quê? Para escaparem à realidade. O bordel pode então funcionar como um cérebro autónomo, que permite deambulações geográficas e mentais. Como o cinema.
De todas as personagens, Madeleine, "a Judia" interpretada pela estreante Alice Barnole, aquela a quem rasgaram a boca deixando-lhe um sorriso trágico, assume um poder que lança e conclui a ficção. Ela é a coluna vertebral do filme?
Sim. Não costumo ser permeável a sonhos, mas a Madeleine vem do sonho de um filme que vi em criança chamado "O Homem Que Ri", feito em 1928 por Paul Leni. Pensei depois: "Porque não tentar fazer uma versão feminina? Uma mulher que ri?" A personagem vem daí. Abriu-me pistas para a ficção e para o seu lado mais afetivo. Sou sensível a tudo o que pode desfigurar um rosto humano, e quando esse rosto é o de uma prostituta abre necessariamente uma dimensão suplementar ao drama.
Os clientes que frequentam o bordel são especiais. Muitos são cineastas. Encontramos Jacques Nolot, Xavier Beauvois, Pierre Léon, Damien Odoul, Vlncent Dieutre... Noémie Lvovsky, a proprietária do bordel, é também cineasta. Tal como Pascale Ferran, que lê um texto...
Foi um pouco por acaso. Nolot, Beauvois ou Lvovsky são também atores de grande nível. Das atrizes à volta dos 45 anos que eu procurava para o papel de Noémie, ela era a que me parecia mais capaz de expressar um lado maternal que fosse ao mesmo tempo severo. Beauvois tem uma presença doce e inquietante. Já Nolot é um ator extraordinário. Descobri depois que estava a criar ali um mundo de cineastas que também são meus amigos, uma variação de olhares, e decidi levar a ideia até ao fim. Mas há outro motivo, mais importante que o filme de amigos: no caso dos clientes, não há verdadeiras personagens masculinas. São só presenças. Fantasmas. Se tivesse contratado atores para o efeito, acho que teria tido problemas. Acabariam por perguntar-me: "Afinal, qual é o meu papel?" Ao passo que o convite foi antes este: "Venham passar um bocado na maison close. Venham visitar a rodagem do meu filme."
Antes de ser cineasta, você foi músico. Ocupou-se da seleção musical do filme, e há canções que não são nada evidentes ali dentro, como 'Nights In White Satin', dos Moody Blues. Qual é a explicação para a escolha?
O anacronismo não vem por provocação. Foi uma escolha emocional. Eram canções que eu estava a ouvir durante a escrita do argumento. Também não tenho uma explicação lógica para a música soul que abre e fecha o filme, além de um lado afetivo e dilacerante que lhe encontro. A música negra americana dos anos 60 tem uma relação forte com a escravatura... Talvez a origem da escolha para o filme seja essa.
E o uso do split-screen? Ninguém está à espera dele num filme de época.
Vem de duas coisas: do trabalho de dilatação do tempo, de que já falámos, e de uma ideia que me faz pensar nas câmaras de vigilância, como no "Big Brother". Aquela casa é uma prisão. Como tal, queria mostrar que as raparigas, mesmo quando sozinhas, estão sempre a ser observadas. A casa é um local sem nenhuma privacidade. Há coisas neste filme que me colocaram problemas: o medo do teatro, por exemplo. O split-screen ajudou-me a ultrapassar esses problemas.
Para si, o que é que se deve pensar sobre a prostituição perante um filme como este? Quis apresentar um retrato sobre a prostituição a todos os níveis, político, sexual, económico?
"Apollonide" não é um filme de mensagem. Não faz uma apologia das casas de passe. O que me interessa aqui é o funcionamento e a engrenagem da prostituição. E ser o mais justo possível perante esse mecanismo. Contudo, na sequência final, há um salto brutal para a realidade de hoje...
É um salto brutal que surge por vários motivos. Se olharmos para a personagem de Clotilde, interpretada por Céline Sallette, ela diz no fim que já não sabe o que está a fazer. Há depois um corte na ação e descobrimo-la cem anos mais tarde na rua. Para mim, foi uma maneira de mostrar que o seu destino é ser prostituta para o resto da vida. Por outro lado, pressenti que o filme corria o risco de ficar fechado em si próprio, no seu casulo, e que era preciso confrontá-lo com a realidade, com os dias de hoje. Na sequência final, não quero dizer que a prostituição há cem anos era melhor do que é hoje. Não há nenhuma nostalgia. O mundo ficou diferente. Mas a prostituição não mudou.
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Francisco Ferreira, Expresso, 14/1/12
Bertrand Bonello nasceu em 1968. Estudou música antes de se tornar um realizador, tendo realizado o seu primeiro filme em 1998, “Quelque chose d’organique”, para o qual escreveu o argumento e compôs a música. O filme foi seleccionado para a secção Panorama do Festival de Cinema de Berlim. Em 2001, o seu segundo filme, “Le Pornographe”, o retrato de um realizador de cinema pornográfico na reforma, interpretado por Jean-Pierre Léaud, foi apresentado na Semana da Crítica em Cannes e venceu o prestigiado Prémio FIPRESCI da Crítica Internacional. No ano de 2003 Bonello realizou “Tiresia”, que competiu pela Palma de Ouro em Cannes. Regressou a Cannes em 2005 com uma curta-metragem de homenagem à fotógrafa Cindy Sherman, “Cindy: the Doll is Mine”, com Asia Argento. Em 2007, o cineasta realizou e produziu um novo projecto, “My New Picture”, apresentado no Festival de Cinema de Locarno. Bertrand Bonello dirigiu ainda “De La Guerre”, com Mathieu Amalric e Asia Argento, seleccionado para a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Há um ano, a sua curta “Where the boys are” foi seleccionada para o Festival de Locarno. APOLLONIDE – MEMÓRIAS DE UM BORDEL é a sua quinta longa-metragem.
Título Original: L’Apollonide (Souvenirs de la maison close)
Realização, Argumento e Música: Bertrand Bonello
Fotografia: Josée Deshaies
Montagem: Fabrice Rouaud
Som: Jean-Pierre Duret, Nicolas Moreau, Jean-Pierre Laforce
Interpretação Hafsia Herzi, Céline Sallette, Jasmine Trinca, Adele Haenel, Alice Barnole, Iliana Zabeth, Noémie Lvovsky
Origem: França
Ano: 2011
Duração: 122’
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