5ªF, SEDE, !!21h!!, HOMENAGEM A ANGELOPOULOS. Entrada livre.
“Também a alma, se quer reconhecer-se, deve olhar para a outra alma.” Platão.
Com esta citação abre o brilhante trabalho de Theo Angelopoulos a que deu o nome “O Olhar de Ulisses” e com o qual procura uma inteligente e invulgar actualização da viagem de Ulisses, retratada na “Odisseia”, de Homero.
A viagem inicia-se pela fronteira com a Albânia, mas continuará a ser intercalada com imagens de um filme mudo, de 1909, onde se vêem fiandeiras. Irão funcionar como um refrão ao longo da obra, um reavivar de um olhar perdido no tempo. Afinal este é um filme sobre o olhar, o olhar de Ulisses em busca de um outro olhar, de um outro cineasta, olhar perdido no tempo e preservado em três caixas metálicas que nunca chegaram a conhecer a luz do dia, ou a luz do projector que lhes restituiria a vida. Ele sabe que os irmãos Manakis não se interessavam particularmente por política ou questões rácicas. Eles fotografavam pessoas. Registavam tudo. Todas as transformações, todos os contrastes. É esse olhar que o cineasta procura. O primeiro olhar. A inocência perdida.
Uma citação de Homero encerra este “Olhar”: “Quando regressar, virei com outro nome e com um outro fato. Voltarei. Esta é história da humanidade. Uma história que não termina”.
“O Olhar de Ulisses”: uma obra-prima do cinema. Um olhar grandioso sobre a viagem do homem sobre a terra. A inteligência, a sensibilidade, a beleza em cada fotograma, em cada cena, em cada olhar.
.
Lauro António (http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/)
Quando vi este filme no Festival de Huelva-95 fiquei absolutamente estarrecida. Convenci todos os meus colegas da direcção [do ccf] que também lá estavam a vê-lo e não resisti a acompanhá-los - revi O Olhar de Ulisses num espaço de três dias.
Há muito tempo que não via um filme que me dissesse tanto. Plasticamente não duvido que é uma obra-prima do cinema - relembro apenas uma das cenas iniciais (em que Angelopoulos remete para um facto verídico passado com a estreia do seu anterior filme, O Passo Suspenso da Cegonha) com um plongé sobre os guarda-chuvas dos manifestantes, ou a célebre ideia da estátua de Lenine, amarrada a um navio de carga e transportada rio abaixo, ou as imagens de Sarajevo com as pessoas (ou os fantasmas?..) a serem criadas a partir da névoa, ou... Enfim, relembro um conjunto de imagens antológicas.
Mas, por mais belas, impressivas ou geniais que sejam as imagens, elas não resumem o filme porque «Angelopoulos é um cineasta para quem produzir uma imagem envolve sempre a possibilidade de rencontro com uma pulsão original - do amor, dos lugares, dos olhares, das imagens que nascem da colisão entre o que lembramos e o que nos é dado a ver pela primeira vez. Desse paraíso fundador perdemos até os nomes e dizer, por exemplo, "Europa", não passa de um gesto piedoso a que a crueza das imagens responde com o silêncio das pedras ou a incerteza do nevoeiro. », como tão bem explicou João Lopes. Neste filme não interessam tanto as imagens, mas o poder das imagens.
Toda a metáfora do filme parte assim de uma viagem a todos os títulos iniciática de um cineasta anónimo (A. é a resposta «Ninguém» que Ulisses dá a Polifemo) em demanda da sua história pessoal e da história de um continente. Ou, o que é o mesmo: viagem de Ulisses em demanda da sua história pessoal, história de um continente. Um Ulisses empreendedor, perplexo, apaixonado e apaixonante (espantoso o desamparo de Harvey Keitel) que encontra ruínas e simulacros de imagens onde antes havia vida, mas que encontra a imagem da mulher amada em todas as mulheres que com ele se cruzam; que descobre os fantasmas familiares na imagem do seu próprio passado, no reino dos mortos; que no cenário devastado de Sarajevo (pouco importando se, afinal, é Mostar ou Vukovar) pode aceder às imagens das bobines dos irmãos Makaris e reencontrar um olhar pioneiro do qual terá que se questionar.
E Ulisses somos também todos nós neste olhar a que nos colamos, também nós um pouco à deriva, náufragos de uma imagem/verdade que idealizamos, de uma epopeia em que gostaríamos de ser actores, num tempo lento de olhar para uma derrocada; decerto, não com a dor exposta de um Underground de Kusturica em que a parábola se nos impõe como exacerbação, mas num outro registo, numa viagem rumo a um tempo de (re)invenção da imagem, íntimo, manso e nostálgico que é afinal a maior dor, porque a mais bela.
.
Graça Lobo, Boletim Cineclube de Faro – Semana do Cinema Europeu, 1.11.96
O motor com que Theo Angelopoulos coloca a sua "odisseia" em funcionamento é simples e digno do mais puro "road movie": A., um cineasta greco-americano, interpretado por Harvey Keitel, calcorreia os Balcãs à procura de três lendárias bobines de filme nunca reveladas dos irmãos Manakis, tidos como pioneiros do cinema grego. Diga-se que a existência dessas três bobines era uma hipótese fundamentada por estudiosos dos irmãos Manakis e, no decurso das filmagens, Angelopoulos conseguiu mesmo encontrá-las na Cinemateca de Belgrado - tinham sido confiadas ao antigo director, havia muitos anos, por um dos Manakis. Pormenor significativo, uma vez que a obra desses pioneiros é vista como uma demonstração do “ecumenismo" balcânico do início do século: filmaram em vários países e várias regiões, registando o quotidiano numa altura em que povos diferentes levavam uma vida em comum - como referiu Angelopoulos, "havia pelo menos um destino comum, representado pela ocupação turca durante vários séculos".
E esse, acima de tudo, o motivo que leva Angelopoulos a interessar-se pelas bobines dos Manakis: seriam fruto de um olhar hoje impossível, um olhar harmonioso e primordial capaz de religar e transmitir um sentimento de união a todos os fragmentos contemporâneos. Angelopoulos começa "O Olhar de Ulisses" com imagens do mais antigo filme conhecido dos Manakis. Entre elas e as míticas bobines perdidas está a viagem, a odisseia em busca de um olhar que reflicta o nosso, tanto o do protagonista como o dos espectadores.
A personagem de Harvey Keitel chama-se, simplesmente, A. Para Angelopoulos, baptizar a personagem dessa maneira é uma forma de o esvaziar do "excesso de sentido" que o nome sempre comporta: "A", por ser a primeira letra do alfabeto e para ecoar a resposta que, na "Odisseia", Ulisses dá ao ciclope quando este lhe pergunta como se chama: "Ninguém." Sendo "ninguém", A. é também "toda a gente": o olhar de alguém estranho ao universo balcânico – grego de origem, A. emigrou há mais de 30 anos para a América - que vale pelo de qualquer espectador.
Elemento fundamental para que a personagem funcione como funciona é a presença de Harvey Keitel, "extraterrestre" no mundo de "O Olhar de Ulisses", não só em relação à geografia, mas também em relação a um cinema como o de Angelopoulos. Tal como a sua personagem, Keitel faz uma viagem de descoberta, e de igual modo rumo a uma mesma ideia de procura das "raízes": embora criado em Brooklyn, é filho de mãe romena, cujo país natal visitou pela primeira vez durante a rodagem do filme.
Se há um lado documental forte em "O Olhar de Ulisses", que faz com que os cenários e os ambientes se respirem com tanta veemência, esse lado está ainda ligado à presença de Keitel. E difícil distinguir onde acaba o desamparo da personagem e começa o do actor. E esse choque é das coisas mais estimulantes de "O Olhar de Ulisses", até por permitir que o filme mantenha sempre um pé no "real", mesmo quando Angelopoulos cede à sua tendência para as abstracções - cujo exemplo mais evidente será a sequência da estátua de Lenine numa barcaça pelo Danúbio abaixo. O Olhar de Ulisses, não é menos verdade que nos mostra um Angelopoulos mais voltado para o lado físico das coisas do que é costume. Para isso contribuirá a importância de que se revestem os cenários e os lugares percorridos pelo filme.
Num filme com estes objectivos, seria fundamental captar um pouco da "verdade" de cada lugar; no limite, essa tarefa seria mesmo um dos principais objectivos: deixar aparecer essa "verdade" com a menor interferência possível, mesmo que tenha de "inventar" para que ela apareça. Angelopoulos consegue-o por vezes de maneira fulgurante. A entrada na Albânia, por exemplo, com a paisagem desolada a desfilar até se chegar a uma cidade suja, feia e deserta, com o fabuloso plano da velhota - a quem Keitel dera boleia e que ia à procura da irmã - sozinha no meio da praça. Mas o ponto alto é decididamente a sequência de Sarajevo, na verdade rodada em Mostar e Vukovar. Exemplo de como se podem criar as condições que reflictam o espírito de um lugar sem que seja esse o lugar onde se filma.
Angelopoulos parte de uma ideia brilhante: o nevoeiro que cobre a cidade e faz de um dia cinzento um dia de festa, pois devido' à falta de visibilidade a população fica ao abrigo dos "snipers". A sequência culmina num plano magistral, em que o director da Cinemateca de Sarajevo e a sua família são mortos sem que vejamos seja o que for. O plano "branco", em que apenas podemos ouvir os diálogos e os tiros, corresponde ao olhar de Keitel, obstruído pelo nevoeiro. Esse plano, para além de uma solução narrativa de refinadíssimo pudor, é uma das mais eficazes imagens sobre o drama de Sarajevo: como se fosse tão indescritível que não pudesse sequer ser filmado. Fica apenas o eco e a impotência dos que, como a personagem de Keitel, estão condenados a ser espectadores, passivos e exteriores.
Angelopoulos, tal como A., ia à procura de uma resposta que pensava estar nas bobines dos irmãos Manakis. O último plano do filme mostra-nos A. projectando as ditas bobinas, que no entanto nos são elididas, recitando um monólogo da "Odisseia". Final em aberto, mas também sinal de que a Europa já não .se reconhece em olhares de ressonâncias míticas. As feridas são tão profundas que a harmonia já só pode ser reconquistada artificialmente. E esse o drama de que fala "O Olhar de Ulisses".
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Luís Miguel Oliveira, Público, 25.04.96
“Também a alma, se quer reconhecer-se, deve olhar para a outra alma.” Platão.
Com esta citação abre o brilhante trabalho de Theo Angelopoulos a que deu o nome “O Olhar de Ulisses” e com o qual procura uma inteligente e invulgar actualização da viagem de Ulisses, retratada na “Odisseia”, de Homero.
A viagem inicia-se pela fronteira com a Albânia, mas continuará a ser intercalada com imagens de um filme mudo, de 1909, onde se vêem fiandeiras. Irão funcionar como um refrão ao longo da obra, um reavivar de um olhar perdido no tempo. Afinal este é um filme sobre o olhar, o olhar de Ulisses em busca de um outro olhar, de um outro cineasta, olhar perdido no tempo e preservado em três caixas metálicas que nunca chegaram a conhecer a luz do dia, ou a luz do projector que lhes restituiria a vida. Ele sabe que os irmãos Manakis não se interessavam particularmente por política ou questões rácicas. Eles fotografavam pessoas. Registavam tudo. Todas as transformações, todos os contrastes. É esse olhar que o cineasta procura. O primeiro olhar. A inocência perdida.
Uma citação de Homero encerra este “Olhar”: “Quando regressar, virei com outro nome e com um outro fato. Voltarei. Esta é história da humanidade. Uma história que não termina”.
“O Olhar de Ulisses”: uma obra-prima do cinema. Um olhar grandioso sobre a viagem do homem sobre a terra. A inteligência, a sensibilidade, a beleza em cada fotograma, em cada cena, em cada olhar.
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Lauro António (http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/)
Quando vi este filme no Festival de Huelva-95 fiquei absolutamente estarrecida. Convenci todos os meus colegas da direcção [do ccf] que também lá estavam a vê-lo e não resisti a acompanhá-los - revi O Olhar de Ulisses num espaço de três dias.
Há muito tempo que não via um filme que me dissesse tanto. Plasticamente não duvido que é uma obra-prima do cinema - relembro apenas uma das cenas iniciais (em que Angelopoulos remete para um facto verídico passado com a estreia do seu anterior filme, O Passo Suspenso da Cegonha) com um plongé sobre os guarda-chuvas dos manifestantes, ou a célebre ideia da estátua de Lenine, amarrada a um navio de carga e transportada rio abaixo, ou as imagens de Sarajevo com as pessoas (ou os fantasmas?..) a serem criadas a partir da névoa, ou... Enfim, relembro um conjunto de imagens antológicas.
Mas, por mais belas, impressivas ou geniais que sejam as imagens, elas não resumem o filme porque «Angelopoulos é um cineasta para quem produzir uma imagem envolve sempre a possibilidade de rencontro com uma pulsão original - do amor, dos lugares, dos olhares, das imagens que nascem da colisão entre o que lembramos e o que nos é dado a ver pela primeira vez. Desse paraíso fundador perdemos até os nomes e dizer, por exemplo, "Europa", não passa de um gesto piedoso a que a crueza das imagens responde com o silêncio das pedras ou a incerteza do nevoeiro. », como tão bem explicou João Lopes. Neste filme não interessam tanto as imagens, mas o poder das imagens.
Toda a metáfora do filme parte assim de uma viagem a todos os títulos iniciática de um cineasta anónimo (A. é a resposta «Ninguém» que Ulisses dá a Polifemo) em demanda da sua história pessoal e da história de um continente. Ou, o que é o mesmo: viagem de Ulisses em demanda da sua história pessoal, história de um continente. Um Ulisses empreendedor, perplexo, apaixonado e apaixonante (espantoso o desamparo de Harvey Keitel) que encontra ruínas e simulacros de imagens onde antes havia vida, mas que encontra a imagem da mulher amada em todas as mulheres que com ele se cruzam; que descobre os fantasmas familiares na imagem do seu próprio passado, no reino dos mortos; que no cenário devastado de Sarajevo (pouco importando se, afinal, é Mostar ou Vukovar) pode aceder às imagens das bobines dos irmãos Makaris e reencontrar um olhar pioneiro do qual terá que se questionar.
E Ulisses somos também todos nós neste olhar a que nos colamos, também nós um pouco à deriva, náufragos de uma imagem/verdade que idealizamos, de uma epopeia em que gostaríamos de ser actores, num tempo lento de olhar para uma derrocada; decerto, não com a dor exposta de um Underground de Kusturica em que a parábola se nos impõe como exacerbação, mas num outro registo, numa viagem rumo a um tempo de (re)invenção da imagem, íntimo, manso e nostálgico que é afinal a maior dor, porque a mais bela.
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Graça Lobo, Boletim Cineclube de Faro – Semana do Cinema Europeu, 1.11.96
O motor com que Theo Angelopoulos coloca a sua "odisseia" em funcionamento é simples e digno do mais puro "road movie": A., um cineasta greco-americano, interpretado por Harvey Keitel, calcorreia os Balcãs à procura de três lendárias bobines de filme nunca reveladas dos irmãos Manakis, tidos como pioneiros do cinema grego. Diga-se que a existência dessas três bobines era uma hipótese fundamentada por estudiosos dos irmãos Manakis e, no decurso das filmagens, Angelopoulos conseguiu mesmo encontrá-las na Cinemateca de Belgrado - tinham sido confiadas ao antigo director, havia muitos anos, por um dos Manakis. Pormenor significativo, uma vez que a obra desses pioneiros é vista como uma demonstração do “ecumenismo" balcânico do início do século: filmaram em vários países e várias regiões, registando o quotidiano numa altura em que povos diferentes levavam uma vida em comum - como referiu Angelopoulos, "havia pelo menos um destino comum, representado pela ocupação turca durante vários séculos".
E esse, acima de tudo, o motivo que leva Angelopoulos a interessar-se pelas bobines dos Manakis: seriam fruto de um olhar hoje impossível, um olhar harmonioso e primordial capaz de religar e transmitir um sentimento de união a todos os fragmentos contemporâneos. Angelopoulos começa "O Olhar de Ulisses" com imagens do mais antigo filme conhecido dos Manakis. Entre elas e as míticas bobines perdidas está a viagem, a odisseia em busca de um olhar que reflicta o nosso, tanto o do protagonista como o dos espectadores.
A personagem de Harvey Keitel chama-se, simplesmente, A. Para Angelopoulos, baptizar a personagem dessa maneira é uma forma de o esvaziar do "excesso de sentido" que o nome sempre comporta: "A", por ser a primeira letra do alfabeto e para ecoar a resposta que, na "Odisseia", Ulisses dá ao ciclope quando este lhe pergunta como se chama: "Ninguém." Sendo "ninguém", A. é também "toda a gente": o olhar de alguém estranho ao universo balcânico – grego de origem, A. emigrou há mais de 30 anos para a América - que vale pelo de qualquer espectador.
Elemento fundamental para que a personagem funcione como funciona é a presença de Harvey Keitel, "extraterrestre" no mundo de "O Olhar de Ulisses", não só em relação à geografia, mas também em relação a um cinema como o de Angelopoulos. Tal como a sua personagem, Keitel faz uma viagem de descoberta, e de igual modo rumo a uma mesma ideia de procura das "raízes": embora criado em Brooklyn, é filho de mãe romena, cujo país natal visitou pela primeira vez durante a rodagem do filme.
Se há um lado documental forte em "O Olhar de Ulisses", que faz com que os cenários e os ambientes se respirem com tanta veemência, esse lado está ainda ligado à presença de Keitel. E difícil distinguir onde acaba o desamparo da personagem e começa o do actor. E esse choque é das coisas mais estimulantes de "O Olhar de Ulisses", até por permitir que o filme mantenha sempre um pé no "real", mesmo quando Angelopoulos cede à sua tendência para as abstracções - cujo exemplo mais evidente será a sequência da estátua de Lenine numa barcaça pelo Danúbio abaixo. O Olhar de Ulisses, não é menos verdade que nos mostra um Angelopoulos mais voltado para o lado físico das coisas do que é costume. Para isso contribuirá a importância de que se revestem os cenários e os lugares percorridos pelo filme.
Num filme com estes objectivos, seria fundamental captar um pouco da "verdade" de cada lugar; no limite, essa tarefa seria mesmo um dos principais objectivos: deixar aparecer essa "verdade" com a menor interferência possível, mesmo que tenha de "inventar" para que ela apareça. Angelopoulos consegue-o por vezes de maneira fulgurante. A entrada na Albânia, por exemplo, com a paisagem desolada a desfilar até se chegar a uma cidade suja, feia e deserta, com o fabuloso plano da velhota - a quem Keitel dera boleia e que ia à procura da irmã - sozinha no meio da praça. Mas o ponto alto é decididamente a sequência de Sarajevo, na verdade rodada em Mostar e Vukovar. Exemplo de como se podem criar as condições que reflictam o espírito de um lugar sem que seja esse o lugar onde se filma.
Angelopoulos parte de uma ideia brilhante: o nevoeiro que cobre a cidade e faz de um dia cinzento um dia de festa, pois devido' à falta de visibilidade a população fica ao abrigo dos "snipers". A sequência culmina num plano magistral, em que o director da Cinemateca de Sarajevo e a sua família são mortos sem que vejamos seja o que for. O plano "branco", em que apenas podemos ouvir os diálogos e os tiros, corresponde ao olhar de Keitel, obstruído pelo nevoeiro. Esse plano, para além de uma solução narrativa de refinadíssimo pudor, é uma das mais eficazes imagens sobre o drama de Sarajevo: como se fosse tão indescritível que não pudesse sequer ser filmado. Fica apenas o eco e a impotência dos que, como a personagem de Keitel, estão condenados a ser espectadores, passivos e exteriores.
Angelopoulos, tal como A., ia à procura de uma resposta que pensava estar nas bobines dos irmãos Manakis. O último plano do filme mostra-nos A. projectando as ditas bobinas, que no entanto nos são elididas, recitando um monólogo da "Odisseia". Final em aberto, mas também sinal de que a Europa já não .se reconhece em olhares de ressonâncias míticas. As feridas são tão profundas que a harmonia já só pode ser reconquistada artificialmente. E esse o drama de que fala "O Olhar de Ulisses".
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Luís Miguel Oliveira, Público, 25.04.96
Título Original: To Vlemma tou Odyssea
Realização Theo Angelopoulos
Argumento: T.A., Tonino Guerra, Petro Markaris
Fotografia: Yorgos Arvanitis
Som: Thanassis Arvanitis
Montagem: Yannis Tsitopoulos
Música: Eleni Karaindrou
Interpretação: Harvey Keitel, Maia Morgenstern, Erland Josephson, Thanassis Vengos, Yorgos Michalakopoulos, Dora Volanaki
Origem: Grécia/ França/Itália
Ano: 1994
Duração: 176’
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