2ªf, 16, 22h. Claustros do Museu Municipal. Cinema ao ar livre!

EM CÂMARA LENTA.
Homenagem a Fernando Lopes.
Inauguração de Exposição às 21h30 com a presença do filho do realizador, Pedro Lopes.


Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.O cinema é poesia.

Na véspera da sua morte, Sócrates compartilhava a cela com um tocador de lira. Pediu-lhe então que lhe ensinasse a tocar aquele instrumento. O outro respondeu espantado: "Mas se ireis morrer amanhã, porque quereis aprender a tocar lira?" Ele respondeu: "Tens razão, morrerei amanhã, mas amanhã saberei tocar lira". Este episódio que se conta da vida de Sócrates, relatado no filme de Fernando Lopes, serve de exemplo para a insaciável busca do conhecimento ou, como sintetiza o povo, a ideia de aprender até morrer. Aplicada a Em Câmara Lenta, mais do que o conhecimento em si, a citação, que no filme também é um prenúncio, pode ser entendida como a busca constante da arte e da poesia. Que é o que Fernando Lopes tem feito ao longo da sua obra, de forma mais ou menos assertiva. E que aqui chega a um dos seus esplendores poéticos. Cita-se Alexandre O'Neill à descarada, sobretudo as suas considerações sobre as mulheres, como que lhe dando um papel de inspirador marialva. De alguma forma, Em Câmara Lenta torna-se assim uma homenagem a O'Neill ou, pelo menos, uma manifestação de afeto e cumplicidade. Isto é feito de modo claro e até pouco subtil quando Santiago leva a sua amante ao Parque dos Poetas, em Oeiras, e cita O'Neill em frente á sua estátua. "Sigamos o Cherne"... E o filme segue o cherne até ao fim do mar. Só que o mar é tão extenso que o filme acaba antes que o mar acabe. Mas fica a ideia de nadar sem fim, num deserto de água, com uma pele marinha, nadar como quem foge e como quem se liberta. Nadar até ao nada. "Vou atrás de um peixe grande, e desta vez ou eu o apanho ou ele me apanha a mim".

Há um homem que se perdeu no mar, e outro que tenta encontrar o seu fantasma, mas não é um filme sobre pescadores, mas de mortos-vivos. Fala da perda de uma personagem que sem encontrar o outro não se encontra a si própria. E então fecha-se na improbabilidade dos relacionamentos, que nunca são suficientemente profundos, porque ele próprio não se consegue desprender do mar que o atravessa.

Aqui, a sinopse pouco interessa ou pouco nos diz. Porque, em resumo, até pode parecer vazio, um drama trivial, de triângulos e quadrados que se enrodilham de forma mais ou menos dramática. De angústias plausíveis e reconhecíveis. Não é um filme em que conte a história. Prevalece antes o olhar, a profundidade das personagens, ou melhor, a densidade em concreto de Santiago, figura altamente egocêntrica que chama para si as luzes e as câmaras, como se os dramas que o circundam não tivessem peso. Santiago não é uma figura simpática, queima tudo à sua volta e acaba por morrer queimado.


Não entrando no extremo da private joke, de Os Sorrisos do Destino, em que com algum pragmatismo trivial, Fernando Lopes importou para o filme um facto que lhe aconteceu na vida (o resultado é um dos piores filmes da sua carreira), continua a haver um lado de espelho em Em Câmara Lenta. Sabemos que Fernando Lopes está ali, em Santiago (Rui Morrison), personagem que o representa. De resto, não é por acaso que todas as personagens bebem uísque e é estranha a coincidência de todas as atrizes se chamarem Maria João.

A outra personagem masculina, Salvador (João Reis), faz o contrabalanço com Santiago, é a figura tragicómica, mas igualmente deprimida. O bêbedo alegre e espirituoso. É um grande momento quando, no British Bar, eleva a voz para dizer que tem um anúncio a fazer, e os clientes respondem em coro: "A minha mulher deixou-me!". Uma auto-ironia fantástica. É a personagem mais terna, cheia de pena de si própria, mas que, apesar de tudo, consegue ver o outro. Um fotógrafo que escreve um diário, e vive na esperança de voltar para a mulher, que o deixou por causa da bebida.

À exceção da mulher de Salvador, que nem chegamos a conhecer, as personagens femininas caracterizam-se por uma resignação e submissão algo misteriosa. Laurence, a mulher, aceita a amante de Santiago (ou melhor, o facto de Santiago ter uma amante) com uma naturalidade fiel. Subentende-se uma relação funcional, porventura incompleta ou inconsumada, mas sem plano de rotura. Ambos se conformam, mantendo apenas discussões educadas e elevadas, que até evidenciam cumplicidade.

Constança, a amante, submete-se a um destino que ela própria ditou e que a aprisiona. "Tu és o homem a quem me decidi entregar". E diz isso como uma fatalidade, absolutamente inalterável, um karma, que mais à frente a faz gueixa, na dicotomia entre o amor e a morte. A morte é a vingança do amor. Perante estas mulheres que, passivas, submissas, se rendem ao seu desígnio, Santiago reina de forma desafetada e egoísta, mas não deliberadamente maldosa. O pecado dele talvez seja gostar sem amar, ou amar sem cuidar, deixa-se levar mas não vai. Na viagem que faz, pede dois quartos no hotel, para grande desilusão de Constança. Quer acordar sozinho. Recusa-se a entregar-se totalmente. Em oposição ao avô de Constança, que vão visitar ao lar, e encontram-no a dormir na campa da esposa falecida: esse entrega-se mesmo até depois de a morte os separar.

Visão poética do realizador que recupera o melhor da sua estética, do seu olhar, com diálogos menos naturalistas, citações abundantes, imagens que preenchem a alma. Um sentido estético próximo de Lá fora. Santiago talvez seja o engenheiro que constrói os não lugares desse outro filme. Só que aqui o artificialismo não prevalece. Há uma poética do vazio e dos espaços sem fim, outrora artificiais, aqui apenas imensos. Em Câmara Lenta é o melhor filme de Fernando Lopes desde O Delfim. Uma aventura aquática pelos abismos da alma de um mártir de si próprio.
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Manuel Halpern, Visão


"Em Câmara Lenta" é uma adaptação livre para cinema do romance homónimo de Pedro Reis, a partir de um argumento assinado por Rui Cardoso Martins. É o novo filme de Fernando Lopes, que muito apreciou o livro e até o comentou, considerando-o "um asteróide romanesco raro e surpreendente na literatura portuguesa." Esta é a história de um homem, Santiago – e assim reza a primeira linha da sinopse - "que se deita ao mar para não voltar." Há muito a dizer sobre aquele homem. Ainda mais sobre aquele mar. Mas sigamos lentamente (como esta câmara), pois a esse ritmo o filme convida. À partida, uma pergunta parecia impor-se sobre todas: que mar foi este, para Pedro Reis, que mar é este agora, para Fernando Lopes? Alguém muito próximo do cineasta nos provou de-pois, do outro lado da linha telefónica, que a pergunta não vinha do acaso: "Digamos que entre o Fernando e o mar há um longo e difícil desentendimento."

"Em Câmara Lenta" é um filme especial para Fernando Lopes e o preocupante estado de saúde atual do cineasta não lhe é fator alheio. Não estamos aqui para falar disso, apenas de um filme, embora haja coisas que condicionam necessariamente outras. Acrescente-se apenas que o cineasta que fez "O Fio do Horizonte" bem pode ter dito nos últimos tempos que viu o horizonte por um fio. E foi num breve encontro inesperado para nós, quando todas as hipóteses de conversa já pareciam barradas, que Fernando Lopes, em sua casa, nos esclareceu a dúvida de uma vez por todas: "Santiago, bon vivant, é afinal um tipo completamente fascinado pela morte. Ele tem a mania do mar e, de um mergulho a outro, à medida que se vai enganando a ele próprio, é na morte que ele pouco a pouco mergulha. Para mim, o mar sempre foi em simultâneo fascinante e aterrador. Uma espécie de morte líquida. Sinto-me à vontade para lhe dizer isto: eu nunca aprendi a nadar."

Passamos a Santiago (papel de Rui Morisson) e ao crawl deste filme. Nada que se farta, oceano adentro, Santiago. Aventura-se em mar alto. O filme nunca dirá o que faz ele da vida e é bem provável que o conforto que esta lhe deu lhe tenha permitido viver sem fazer coisa alguma. Ele é "o último sobrevivente de uma espécie de varões e marialvas". Santiago é casado com Laurence (Maria João Luís). Tem uma amante que o adora acima de tudo e que adora botânica: cha¬ma-se Constança (Maria João Pinho). Frequenta bares de má fama onde encontra frequentemente Ma Vie (Maria João Bastos, a terceira Maria João do elenco). Em torno de Santiago há ainda Salvador (João Reis), seu boémio amigo que abraça amores perdidos com copos reencontrados - podem viver uns sem os outros? Começa logo pela manhã, Salvador, no balcão de um bar que é british e lhe serve de coro: é Salvador quem começa por estabelecer as ligações entre as personagens, no relato de um diário íntimo em que realidade e alucinação se confundem. Talvez a história de "Em Câmara Lenta" seja sua. Talvez sejam suas estas personagens, fantasmas que lhe surgem num momento da vida em que ele já aprendeu a dar outro valor à compaixão. Mas, como ele diz, "o que realmente interessa..." O que nos interessa?

As relações homem/mulher são há muito um assunto central no cinema de Lopes. Depois do ponto alto de "O Delfim" (2002), o aspeto (que consideramos) mais mundano dessas relações tem alimentado o seu trabalho recente: "Lá Fora", "98 Octanas", "Os Sorrisos do Destino". "Em Câmara Lenta" vai noutro sentido. A simplicidade não pediu condimentos e reduziu o texto ao osso. O desenvolvimento das personagens é ténue e 'descomplica-se', por opção própria. Há momentos que se julgam difíceis de seguir: foi um sonho ou vimos mesmo Laurence, de espada em riste, a desafiar gaivotas debaixo de um rochedo da Praia da Adraga? O filme passa a correr e o crawl de Santiago não exigiu mais que 70 minutos de duração: algo ficou por escrever, por filmar? Mas há outro assunto a sublinhar aqui e que importa: o tratamento do tempo - que Fernando Lopes dinamita. Não vale a pena procurar no parágrafo anterior a cronologia narrativa que o filme não dá, pois é através de flashbacks constantes que vão surgir as cenas e a natureza das personagens. Por flashbacks somos levados à story, sob a forma de 'aparições' que ora recordam a estrutura de "Uma Abelha na Chuva" ora os duplos de "O Fio do Horizonte", esse filme em que um homem vivo se descobria no espelho de um homem morto que era ele.


Dorme pouco, Santiago. Sonhos obsessivos não lhe dão repouso. O filme instala cedo a sensação de que o tempo de Santiago é frágil- e é iminente a sua rutura. "Em Câmara Lenta" vive num tempo adiado, que é em simultâneo um tempo de pânico. Pânico de que o tempo acabe, ou pior ainda, pânico que os dias se repitam ad eternum: Santiago é um daqueles homens que sabem que os homens pouco mudam. Para os da sua casta, é coisa certa, sabida e provada. E neste filme em que andam ao contrário os ponteiros do relógio, como tomba o varão e marialva? Verga-se pela indiferença na sua relação com Laurence. Verga-se pelo desespero na sua relação com Constança, essa Flora sem Zéfiro à altura que, num ritual erótico que é um ritual de morte, prova o veneno de um amor que ela quis mas nunca conseguiu viver por inteiro. O que resta a Santiago? O destino do cherne do famoso poema de O'Neill, que o filme cita e acaba com "solidão e mágoa"? O destino do mar? "Acho que hoje vou apanhar um peixe de sangue quente..."

Cineasta importante, cineasta único, cineasta vivo, Fernando Lopes realizou um filme crepuscular chamado "Em Câmara Lenta". Começa com o som do mar vibrante e termina em silêncio de sepulcro, com uma espada sobre cinzas. Uma câmara ardente? Não deixamos as ideias por aqui. É preciso voltar a um mar que se abre à ficção e liberta a realidade de Santiago dos seus limites. A um tempo que eclode e desvanece, de notas soltas. Neste tempo plural, labiríntico, o que Fernando Lopes constrói é um túmulo para Santiago. Um túmulo em que cabem sonhos e pesadelos, festas e desfeitas, a embriaguez e a ressaca do seu coração.

“Em Câmara Lenta" é' um filme que pergunta: 'quem somos nós e por que nos tornámos objetos de nós próprios? Objetos de cobiça e indiferença, objetos de incompreensão e de terror? Não fomos, afinal, neste infinitésimo de mundo que somos, os nossos maiores inimigos? Consciente do seu destino, Santiago desce ao fundo do desejo. Fernando Lopes filma-o com compaixão, em posição fetal, naquela imensidão de mar que é afinal um espaço uterino. É por isso que “Em Câmara Lenta” não nos parece um filme de um termo. Antes o filme de um reencontro, de uma reconciliação.
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Francisco Ferreira, Expresso




Realização: Fernando Lopes
Fotografia: Edmundo Diaz
Argumento: Rui Cardoso Martins, a partir do livro de Pedro Reis
Montagem: Carlos Madaleno
Interpretação: Rui Morisson, João Reis, Maria João Pinho, Maria João Luís, Maria João Bastos,
Carlos Santos, Nuno Rodrigues, Miguel Monteiro, John Frey

Origem: Portugal
Ano: 2011
Duração: 71’

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