Antes de mais, há que prevenir: este não é um filme como os outros. Ao referir “outros” pretendo incluir na categoria muitos estilos de obras que se projectam nas salas de cinema tradicionais. Não: este não é um filme como todos esses que vemos, quer se trate do cinema americano mais comercial, até ao mais independente, quer se trate do europeu ou do asiático. Não, também não é um daqueles filmes vanguardistas e experimentais, que podem ir do ecrã todo azul ao todo negro, dos riscos às manchas, do plano único de duas horas à montagem entontecedora. Nada disso. Este é um filme muito diferente de tudo isso, e terá de ser visto enquanto tal. Não sou dos que dizem isto sim é cinema, como se este fosse o único modo de fazer filmes. Mas sempre disse que a crítica, e o espectador, deve procurar em cada obra aquilo que ela tem para dar e julgá-la enquanto tal. Longe de mim dizer que só o cinema narrativo, romanesco, a que aderem multidões é “o” cinema. Tal como “O Cavalo de Turim” não é “o” cinema. Porque o cinema, tal como qualquer manifestação artística, da literatura à música e etc., tem muitas faces, e todas elas legítimas desde que honestas, sinceras, íntegras e coerentes com os seus propósitos.
Posto isto, “O Cavalo de Turim”, do húngaro Béla Tarr, é uma experiência apaixonante, para quem a quiser sentir e entender. Depois das suas duas horas e meia de projecção, a sensação com que se fica é que saímos de um daqueles filmes híbridos de início do sonoro, quando alguns génios do mudo prevaleciam na ideia de que o cinema era mudo ou não seria e que aceitavam, apesar de tudo, um ou outro diálogo, aqui e ali, e uma boa sugestão sonora. “O Cavalo de Turim” recorda-nos assim alguns mestres do mudo, como Griffith (“O Lírio Quebrado”), Murnau (“Aurora”), Sjostrom (“O Vento”), ou mesmo alguns continuadores do estilo, como Dreyer (“A Palavra”) ou Bresson (“Peregrinação Exemplar”). Mas, ao mesmo tempo, o que “A Torinói ló” (título original húngaro) nos procura transmitir, sobretudo inquietar, é algo muito actual e que se encontra disseminado num vasto conjunto de obras recentes (“A Árvore da Vida”, “Melancolia”, “Cosmopolis”, “Procurem Abrigo”, para não falar de algumas mais comerciais, como “O Dia Depois de Amanhã” ou outros títulos catástrofe mais espectaculares).
Béla Tarr não é conhecido do público português, a não ser dos poucos que puderam ver “O Homem de Londres” na sua edição em DVD. É um cineasta que começou como documentarista, nos finais dos anos 70, e que daí até agora construiu uma filmografia extremamente radical na sua secura de processos, na austeridade da imagem, no rigor da composição, dos longos movimentos de câmara, na excessiva duração dos planos (sobretudo se comparada com a média habitual nas salas comerciais) e na abordagem filosófica dos temas escolhidos (ele queria ser filósofo e para ele o cinema é um prolongamento dessa necessidade).
“O Cavalo de Turim” começa com uma história passada com Friedrich Nietzsche que terá visto um cavalo a ser barbaramente chicoteado, se terá intrometido entre o animal e a chibata do cocheiro, mas que a partir daí terá caído doente e enlouquecido. A sequência inaugural mostra-nos um cavalo a galopar e o velho cocheiro a chicoteá-lo até chegar à sua pobre e inóspita habitação, na deserta planície húngara. Terra de fim de mundo, onde, como iremos ver, nada acontece, ou se preferirmos, tudo acontece até ao negrume final que nos anuncia a morte. O preto e branco da deslumbrante fotografia e a quase ausência de diálogos servem plenamente as intenções do autor.
O cocheiro (János Derzsi) vive apenas com a sua filha (Erika Bók), serve-se somente de um braço (o outro está imobilizado ao longo do corpo), veste-se e despe-se com o auxilio da filha, comem à refeição uma batata e bebem um ou dois cálices de palinka, olham a desoladora paisagem pela janela, deitam-se e acordam ao longo dos dias num ritual repetitivo que chega a rondar o ascetismo e mesmo o puritanismo mais radical. Um dia recebem a visita de um vizinho (Mihály Kormos) que lhes compra um garrafa de palinka, de outra vez passa por perto um grupo de homens e mulheres que eles julgam ciganos, e vai-se ouvindo sempre um vento cortante que assola a paisagem de forma desapiedada. O cavalo adoece e recusa-se a trabalhar mais, nega-se mesmo a comer, depois falta a água, a comida, a bebida, a luz. É o fim. A escuridão total. O fim deste mundo que lentamente fomos delapidando, como no-lo diz o seu vizinho, que denuncia ainda esta sociedade de compra e venda, sem dignidade nem futuro.
A imagem é de uma beleza que atinge por vezes o sublime na sua austeridade e contenção. Os enquadramentos, os movimentos, a duração do tempo, a secura da interpretação, tudo serve um propósito. O filme é de uma coerência estilística notável. Quem entrar na obra sai dela como que purificado, mas acabrunhado pelo desespero e o niilismo destes tempos de desesperança e desconforto. Béla Tarr afirma que este foi o seu último filme. Que nada mais tem para dizer. Este é um testamento terrífico de um visionário pessimista. Convém dar-lhe ouvidos, antes que seja demasiado tarde e a escuridão nos invada a todos.
Numa entrevista explicou: “Nada mudou. Se os tempos do comunismo eram péssimos, os do capitalismo também são. Se antes existia uma censura política, agora existe uma censura económica. Nada mudou”.
Lauro António
O Cavalo de Turim, o filme que o cineasta húngaro anuncia como o seu derradeiro, é o primeiro filme de Bela Tarr a ser estreado em Portugal. Nascido em 1955, foi revelado na viragem dos anos 80 para os anos 90, com um par de enormes filmes - Perdição e O Tango de Satanás (este, enorme também na duração: mais de sete horas...). A sua influência chegou a sítios insuspeitados, pergunte-se por exemplo a um americano como Gus van Sant, cujo cinema "mudou" depois de conhecer Tarr (e Gerry, confessada e expressamente, foi um filme feito sob o feitiço do cinema do húngaro). O Cavalo de Turim é cem por cento Tarr: preto e branco, estruturado em planos-sequência (figura de que Tarr é um dos últimos grandes estetas), em relação alusiva com elementos da cultura húngara e europeia, um pessimismo existencial de cortar à faca.
Tarr recebeu-nos em Budapeste, nos escritórios da sua empresa de produção recentemente encerrada ("tenho duas semanas para esvaziar esta porcaria"), instalados num complexo arquitectónico ainda cheio de sabor da época comunista, onde funcionam os estúdios da televisão húngara. Doem-lhe três costelas recentemente partidas, e está mal disposto, em mood verdadeiramente terminal. Mas é um homem doce e põe-nos logo à vontade: "não ligues aos sinais, podes fumar onde quiseres".
Em Lisboa, antes de viajar para aqui, a última notícia relacionada consigo que li na internet foi o anúncio do fecho da sua empresa de produção [T.T. Filmuhély). As coisas estão assim tão mal?
Já não dá, não consigo mais. Não há dinheiro, não há hipóteses. Isto existia para produzir os meus filmes, mas também para projectos de outros cineastas. Chegou a altura de encarar a realidade: todos os meus sonhos se esfumaram. Não tenho como pagar às pessoas, não tenho como pagar coisa nenhuma. Acabou.
Mas entretanto pôs-se a montar uma escola de cinema na Croácia.
É verdade. É o meu trabalho principal, neste momento.
Porquê na Croácia e não aqui [na Hungria]?
Aqui ninguém me pediu para o fazer. Ninguém mostrou interesse.
Vai-se mudar para a Croácia?
Agora ando cá e lá. A dada altura vai ter que ser, sim.
Apesar da má conjuntura que descreveu, O Cavalo de Turim tem sido bem recebido, visto e falado. Vai estrear em Portugal e tudo, coisa que nunca tinha acontecido a um filme seu. Presumo que seja o seu filme com maior circulação comercial internacional...
Foi vendido para 42 países. China, Rússia, Estados Unidos... Tenho a lista algures. Mas não sigo o rasto dos meus filmes. Liberto-os, eles vão para onde forem.
O ponto de partida do filme é aquela anedota nietszcheana que se ouve no início. De onde é que ela vem? Ou por outra, como é que ela gera a inspiração para um filme?
Na verdade, a ideia germinava desde 1985. Nesse ano assisti a uma conferência de Laszlo Krasznahorkai [escritor, e argumentista de Tarr] em que ele contava a história. E no fim, alguém perguntava: "e o que aconteceu ao cavalo?". Entre nós, repetimos muitas vezes a pergunta ao longo dos anos: "o que aconteceu ao cavalo?" [risos].
O cavalo é o primeiro protagonista. Aquele plano-sequência de abertura é espantoso, coloca logo o filme sob o signo do esforço físico, do cansaço...
Verdade. Conhece aquele livro que fala da insustentável leveza do ser... O meu filme é o contrário, fala do insustentável peso do ser...
Mas também de um enclausuramento progressivo, as personagens têm cada vez menos espaço e luz, é uma espécie de fim do mundo, um apocalipse...
O apocalipse não. O apocalipse é um grande espectáculo de televisão: há explosões, fogo, muito barulho. No meu filme há escuridão e silêncio. É só uma história da vida no dia-a-dia, e de como vai havendo cada vez menos energia, cada vez menos esperança...
Foi uma rodagem difícil?
Um bocado. Precisávamos de uma meteorologia específica, não podia haver um raio de sol. Filmámos no Inverno, mas frequentemente tínhamos de ficar à espera do tempo.
O décor é fabuloso. Rodou na Hungria?
Sim. Não posso dizer onde, mas foi na Hungria.
E já lá estava tudo, a casa, o estábulo, o poço, ou há algum artifício?
Não, construímos tudo. Mas construímos a sério, com tijolo, pedra e argamassa. Ficou tudo lá.
E a árvore?
A árvore já lá estava.
No genérico vemos os nomes habituais nos seus filmes: Krasnahorkai [argumentista], Fred Kelemen [director de fotografia], Mihaly Vig [compositor], Agnes Hranitzky . [mulher de Tarr, creditada sempre como co-realizadora]. É importante trabalhar com um grupo estável, à evidência...
É que sou um tipo preguiçoso. Detesto falar, detesto ter que explicar coisas. Estas pessoas conhecem-me há muito tempo, compreendem-me sem que eu precise de falar e de me explicar muito.
Também é claro que continua fiel à película, numa altura em que o cinema se tornou uma questão de vídeo digital...
Claro que sim. A tecnologia digital não é filme. Está bem para quem a quiser usar. Mas não digam que são "filmes". Chamem-lhe outra coisa, digital pictures ou assim. Mas não são filmes.
Deve estar consciente de que há muita gente a associar o pessimismo do seu filme a uma visão, ou um discurso, sobre a Hungria contemporânea...
As pessoas são livres de ver nos filmes o que quiserem. Mas detesto metáforas, o cinema não é feito de metáforas. O filme é o que é; simplesmente.
Mas já agora, como a vê, à Hungria? Na Europa tem-se falado muito do governo Orban...
Muito mal. As pessoas estão a enlouquecer, os políticos são péssimos. O que eu vejo neste país de merda [this fucking country] é que as pessoas estão cada vez mais pobres e têm cada vez menos esperança nalguma coisa.
Nos anos 80 e 90 via-se nos seus filmes, Perdição, de 1987, ou mesmo O Tango de Satanás, de 1994, um reflexo desolado do estertor do regime comunista. Mas com a passagem à democracia, a sua visão não mudou.
Nem tinha razão para mudar. Não há grande diferença entre o comunismo e o capitalismo. Humilham-te com o mesmo poder, subjugam-te da mesma maneira. E no meu trabalho como cineasta continuo a ter que lidar com a censura. Dantes era uma censura política, agora é comercial. Ambas me dizem: "não podes fazer isto".
Há uma cena, a do monólogo do homem que vem à procura de palinka [aguardente húngara], que tanto parece aludir a Nietzsche ["não há bem nem mal", "não há deus nem deuses"] como, difusamente, a um estado político ["adquirir e degradar, degradar e adquirir"]. É fácil encontrar um sentido político para o monólogo...
É só conversa de bêbedo. Foi Laszlo [Krasznahorkai] que escreveu o monólogo, e é o tipo de filosofia que podemos ouvir se entrarmos num bar ou num café. Há sempre um tipo a dizer coisas destas para quem o quiser ouvir.
E o livro que a rapariga soletra, também é invenção ou existe mesmo?
Também foi escrito por Laszlo. É invenção total.
Como habitualmente, O Cavalo de Turim vive de longos planos-sequência. Exigem muito ensaio?
Com os actores, não. Digo-lhes o que têm que fazer e eles agem. Com a câmara sim, porque a câmara tem que ser precisa. É a contradição essencial no meu método de filmar: quero que os actores sejam muito livres, enquanto que a câmara tem que ser muito rigorosa.
Os actores vêm de outros filmes seus. Mas o cavalo [Ricsi], como fez o casting do cavalo?
Fomos a um mercado de animais e descobrimos este, que tinha ar de não querer trabalhar. Podia ser o cavalo da história de Nietzsche. Percebemos que era o nosso cavalo.
Tem dito que é o seu último filme. Há hipótese de mudar de ideias?
Não. Tenho a sensação de já ter dito tudo o que tinha a dizer. Se fizer mais filmes, começarei a repetir-me e a plagiar-me. A minha obra está feita, embalada [packed].
A situação do cinema na Hungria não tem nada a ver com a decisão, portanto.
Não. Mas o cinema húngaro está morrer. As estruturas foram desmanteladas, e o novo modelo quer decalcar o método hollywoodiano. Aquele tipo [aponta para uma foto de Andrew Vajna, o produtor americano de origem húngara trazido para a Hungria como supervisor da cinematografia nacional] é uma desgraça.
Tem um discurso tão pessimista, mas está a montar uma escola de cinema. Não é contraditório?
Não vejo porquê... E na minha escola não ensino, liberto. Não digo aos meus alunos que têm que fazer "assim" ou "assado". Digo o contrário: não têm que fazer nem "assim" nem "assado".
Que citação do Godard é que tem ali na parede, em húngaro?
"Van Gogh inventou o amarelo quando queria pintar e já não havia sol".
Prénom: Cármen...
Sim. Não há outro remédio se não passar a vida a inventar o amarelo.
Luis Miguel Oliveira, Público
Posto isto, “O Cavalo de Turim”, do húngaro Béla Tarr, é uma experiência apaixonante, para quem a quiser sentir e entender. Depois das suas duas horas e meia de projecção, a sensação com que se fica é que saímos de um daqueles filmes híbridos de início do sonoro, quando alguns génios do mudo prevaleciam na ideia de que o cinema era mudo ou não seria e que aceitavam, apesar de tudo, um ou outro diálogo, aqui e ali, e uma boa sugestão sonora. “O Cavalo de Turim” recorda-nos assim alguns mestres do mudo, como Griffith (“O Lírio Quebrado”), Murnau (“Aurora”), Sjostrom (“O Vento”), ou mesmo alguns continuadores do estilo, como Dreyer (“A Palavra”) ou Bresson (“Peregrinação Exemplar”). Mas, ao mesmo tempo, o que “A Torinói ló” (título original húngaro) nos procura transmitir, sobretudo inquietar, é algo muito actual e que se encontra disseminado num vasto conjunto de obras recentes (“A Árvore da Vida”, “Melancolia”, “Cosmopolis”, “Procurem Abrigo”, para não falar de algumas mais comerciais, como “O Dia Depois de Amanhã” ou outros títulos catástrofe mais espectaculares).
Béla Tarr não é conhecido do público português, a não ser dos poucos que puderam ver “O Homem de Londres” na sua edição em DVD. É um cineasta que começou como documentarista, nos finais dos anos 70, e que daí até agora construiu uma filmografia extremamente radical na sua secura de processos, na austeridade da imagem, no rigor da composição, dos longos movimentos de câmara, na excessiva duração dos planos (sobretudo se comparada com a média habitual nas salas comerciais) e na abordagem filosófica dos temas escolhidos (ele queria ser filósofo e para ele o cinema é um prolongamento dessa necessidade).
“O Cavalo de Turim” começa com uma história passada com Friedrich Nietzsche que terá visto um cavalo a ser barbaramente chicoteado, se terá intrometido entre o animal e a chibata do cocheiro, mas que a partir daí terá caído doente e enlouquecido. A sequência inaugural mostra-nos um cavalo a galopar e o velho cocheiro a chicoteá-lo até chegar à sua pobre e inóspita habitação, na deserta planície húngara. Terra de fim de mundo, onde, como iremos ver, nada acontece, ou se preferirmos, tudo acontece até ao negrume final que nos anuncia a morte. O preto e branco da deslumbrante fotografia e a quase ausência de diálogos servem plenamente as intenções do autor.
O cocheiro (János Derzsi) vive apenas com a sua filha (Erika Bók), serve-se somente de um braço (o outro está imobilizado ao longo do corpo), veste-se e despe-se com o auxilio da filha, comem à refeição uma batata e bebem um ou dois cálices de palinka, olham a desoladora paisagem pela janela, deitam-se e acordam ao longo dos dias num ritual repetitivo que chega a rondar o ascetismo e mesmo o puritanismo mais radical. Um dia recebem a visita de um vizinho (Mihály Kormos) que lhes compra um garrafa de palinka, de outra vez passa por perto um grupo de homens e mulheres que eles julgam ciganos, e vai-se ouvindo sempre um vento cortante que assola a paisagem de forma desapiedada. O cavalo adoece e recusa-se a trabalhar mais, nega-se mesmo a comer, depois falta a água, a comida, a bebida, a luz. É o fim. A escuridão total. O fim deste mundo que lentamente fomos delapidando, como no-lo diz o seu vizinho, que denuncia ainda esta sociedade de compra e venda, sem dignidade nem futuro.
A imagem é de uma beleza que atinge por vezes o sublime na sua austeridade e contenção. Os enquadramentos, os movimentos, a duração do tempo, a secura da interpretação, tudo serve um propósito. O filme é de uma coerência estilística notável. Quem entrar na obra sai dela como que purificado, mas acabrunhado pelo desespero e o niilismo destes tempos de desesperança e desconforto. Béla Tarr afirma que este foi o seu último filme. Que nada mais tem para dizer. Este é um testamento terrífico de um visionário pessimista. Convém dar-lhe ouvidos, antes que seja demasiado tarde e a escuridão nos invada a todos.
Numa entrevista explicou: “Nada mudou. Se os tempos do comunismo eram péssimos, os do capitalismo também são. Se antes existia uma censura política, agora existe uma censura económica. Nada mudou”.
Lauro António
O Cavalo de Turim, o filme que o cineasta húngaro anuncia como o seu derradeiro, é o primeiro filme de Bela Tarr a ser estreado em Portugal. Nascido em 1955, foi revelado na viragem dos anos 80 para os anos 90, com um par de enormes filmes - Perdição e O Tango de Satanás (este, enorme também na duração: mais de sete horas...). A sua influência chegou a sítios insuspeitados, pergunte-se por exemplo a um americano como Gus van Sant, cujo cinema "mudou" depois de conhecer Tarr (e Gerry, confessada e expressamente, foi um filme feito sob o feitiço do cinema do húngaro). O Cavalo de Turim é cem por cento Tarr: preto e branco, estruturado em planos-sequência (figura de que Tarr é um dos últimos grandes estetas), em relação alusiva com elementos da cultura húngara e europeia, um pessimismo existencial de cortar à faca.
Tarr recebeu-nos em Budapeste, nos escritórios da sua empresa de produção recentemente encerrada ("tenho duas semanas para esvaziar esta porcaria"), instalados num complexo arquitectónico ainda cheio de sabor da época comunista, onde funcionam os estúdios da televisão húngara. Doem-lhe três costelas recentemente partidas, e está mal disposto, em mood verdadeiramente terminal. Mas é um homem doce e põe-nos logo à vontade: "não ligues aos sinais, podes fumar onde quiseres".
Em Lisboa, antes de viajar para aqui, a última notícia relacionada consigo que li na internet foi o anúncio do fecho da sua empresa de produção [T.T. Filmuhély). As coisas estão assim tão mal?
Já não dá, não consigo mais. Não há dinheiro, não há hipóteses. Isto existia para produzir os meus filmes, mas também para projectos de outros cineastas. Chegou a altura de encarar a realidade: todos os meus sonhos se esfumaram. Não tenho como pagar às pessoas, não tenho como pagar coisa nenhuma. Acabou.
Mas entretanto pôs-se a montar uma escola de cinema na Croácia.
É verdade. É o meu trabalho principal, neste momento.
Porquê na Croácia e não aqui [na Hungria]?
Aqui ninguém me pediu para o fazer. Ninguém mostrou interesse.
Vai-se mudar para a Croácia?
Agora ando cá e lá. A dada altura vai ter que ser, sim.
Apesar da má conjuntura que descreveu, O Cavalo de Turim tem sido bem recebido, visto e falado. Vai estrear em Portugal e tudo, coisa que nunca tinha acontecido a um filme seu. Presumo que seja o seu filme com maior circulação comercial internacional...
Foi vendido para 42 países. China, Rússia, Estados Unidos... Tenho a lista algures. Mas não sigo o rasto dos meus filmes. Liberto-os, eles vão para onde forem.
O ponto de partida do filme é aquela anedota nietszcheana que se ouve no início. De onde é que ela vem? Ou por outra, como é que ela gera a inspiração para um filme?
Na verdade, a ideia germinava desde 1985. Nesse ano assisti a uma conferência de Laszlo Krasznahorkai [escritor, e argumentista de Tarr] em que ele contava a história. E no fim, alguém perguntava: "e o que aconteceu ao cavalo?". Entre nós, repetimos muitas vezes a pergunta ao longo dos anos: "o que aconteceu ao cavalo?" [risos].
O cavalo é o primeiro protagonista. Aquele plano-sequência de abertura é espantoso, coloca logo o filme sob o signo do esforço físico, do cansaço...
Verdade. Conhece aquele livro que fala da insustentável leveza do ser... O meu filme é o contrário, fala do insustentável peso do ser...
Mas também de um enclausuramento progressivo, as personagens têm cada vez menos espaço e luz, é uma espécie de fim do mundo, um apocalipse...
O apocalipse não. O apocalipse é um grande espectáculo de televisão: há explosões, fogo, muito barulho. No meu filme há escuridão e silêncio. É só uma história da vida no dia-a-dia, e de como vai havendo cada vez menos energia, cada vez menos esperança...
Foi uma rodagem difícil?
Um bocado. Precisávamos de uma meteorologia específica, não podia haver um raio de sol. Filmámos no Inverno, mas frequentemente tínhamos de ficar à espera do tempo.
O décor é fabuloso. Rodou na Hungria?
Sim. Não posso dizer onde, mas foi na Hungria.
E já lá estava tudo, a casa, o estábulo, o poço, ou há algum artifício?
Não, construímos tudo. Mas construímos a sério, com tijolo, pedra e argamassa. Ficou tudo lá.
E a árvore?
A árvore já lá estava.
No genérico vemos os nomes habituais nos seus filmes: Krasnahorkai [argumentista], Fred Kelemen [director de fotografia], Mihaly Vig [compositor], Agnes Hranitzky . [mulher de Tarr, creditada sempre como co-realizadora]. É importante trabalhar com um grupo estável, à evidência...
É que sou um tipo preguiçoso. Detesto falar, detesto ter que explicar coisas. Estas pessoas conhecem-me há muito tempo, compreendem-me sem que eu precise de falar e de me explicar muito.
Também é claro que continua fiel à película, numa altura em que o cinema se tornou uma questão de vídeo digital...
Claro que sim. A tecnologia digital não é filme. Está bem para quem a quiser usar. Mas não digam que são "filmes". Chamem-lhe outra coisa, digital pictures ou assim. Mas não são filmes.
Deve estar consciente de que há muita gente a associar o pessimismo do seu filme a uma visão, ou um discurso, sobre a Hungria contemporânea...
As pessoas são livres de ver nos filmes o que quiserem. Mas detesto metáforas, o cinema não é feito de metáforas. O filme é o que é; simplesmente.
Mas já agora, como a vê, à Hungria? Na Europa tem-se falado muito do governo Orban...
Muito mal. As pessoas estão a enlouquecer, os políticos são péssimos. O que eu vejo neste país de merda [this fucking country] é que as pessoas estão cada vez mais pobres e têm cada vez menos esperança nalguma coisa.
Nos anos 80 e 90 via-se nos seus filmes, Perdição, de 1987, ou mesmo O Tango de Satanás, de 1994, um reflexo desolado do estertor do regime comunista. Mas com a passagem à democracia, a sua visão não mudou.
Nem tinha razão para mudar. Não há grande diferença entre o comunismo e o capitalismo. Humilham-te com o mesmo poder, subjugam-te da mesma maneira. E no meu trabalho como cineasta continuo a ter que lidar com a censura. Dantes era uma censura política, agora é comercial. Ambas me dizem: "não podes fazer isto".
Há uma cena, a do monólogo do homem que vem à procura de palinka [aguardente húngara], que tanto parece aludir a Nietzsche ["não há bem nem mal", "não há deus nem deuses"] como, difusamente, a um estado político ["adquirir e degradar, degradar e adquirir"]. É fácil encontrar um sentido político para o monólogo...
É só conversa de bêbedo. Foi Laszlo [Krasznahorkai] que escreveu o monólogo, e é o tipo de filosofia que podemos ouvir se entrarmos num bar ou num café. Há sempre um tipo a dizer coisas destas para quem o quiser ouvir.
E o livro que a rapariga soletra, também é invenção ou existe mesmo?
Também foi escrito por Laszlo. É invenção total.
Como habitualmente, O Cavalo de Turim vive de longos planos-sequência. Exigem muito ensaio?
Com os actores, não. Digo-lhes o que têm que fazer e eles agem. Com a câmara sim, porque a câmara tem que ser precisa. É a contradição essencial no meu método de filmar: quero que os actores sejam muito livres, enquanto que a câmara tem que ser muito rigorosa.
Os actores vêm de outros filmes seus. Mas o cavalo [Ricsi], como fez o casting do cavalo?
Fomos a um mercado de animais e descobrimos este, que tinha ar de não querer trabalhar. Podia ser o cavalo da história de Nietzsche. Percebemos que era o nosso cavalo.
Tem dito que é o seu último filme. Há hipótese de mudar de ideias?
Não. Tenho a sensação de já ter dito tudo o que tinha a dizer. Se fizer mais filmes, começarei a repetir-me e a plagiar-me. A minha obra está feita, embalada [packed].
A situação do cinema na Hungria não tem nada a ver com a decisão, portanto.
Não. Mas o cinema húngaro está morrer. As estruturas foram desmanteladas, e o novo modelo quer decalcar o método hollywoodiano. Aquele tipo [aponta para uma foto de Andrew Vajna, o produtor americano de origem húngara trazido para a Hungria como supervisor da cinematografia nacional] é uma desgraça.
Tem um discurso tão pessimista, mas está a montar uma escola de cinema. Não é contraditório?
Não vejo porquê... E na minha escola não ensino, liberto. Não digo aos meus alunos que têm que fazer "assim" ou "assado". Digo o contrário: não têm que fazer nem "assim" nem "assado".
Que citação do Godard é que tem ali na parede, em húngaro?
"Van Gogh inventou o amarelo quando queria pintar e já não havia sol".
Prénom: Cármen...
Sim. Não há outro remédio se não passar a vida a inventar o amarelo.
Luis Miguel Oliveira, Público
Título Original: A Torinói ló
Realização: Béla Tarr e Ágnes Hranitzky
Argumento: László Krasznahorkai e Béla Tarr
Fotografia: Fred Kelemen
Montagem: Ágnes Hranitzky
Música: Mihály Vig
Interpretação: Erika Bók, János Derzsi, Mihály Kormos, Ricsi
Origem: Hungria/França/Alemanha/Suécia
Ano: 2011
Duração: 146’
Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€
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