Vi o fim do mundo - é indescritivelmente belo e triste. Vi o fim do mundo não à maneira americana com as cidades em colapso e o mar em fúria - Emmerich, t'arrenego! - mas como um canto triste, uma ópera que acordasse Bosch e Breughel, a memória de Marienbad, o horror de uma Natureza que começasse a tresvariar e a violar as suas próprias leis. Então, as raízes das árvores poderiam ser como tentáculos, os dedos captariam fios de eletricidade no caminho do céu, os arbustos poderiam ter duas sombras e as pessoas parecer peças num imenso pano de jogo para o qual nós - e Deus - olhássemos com estupefação e plangência. Então, o cinema estaria outra vez três palmos acima do simples ofício de contar histórias e seria um provocador de visões, uma arte plástica que assumisse a sua autonomia sobre os constrangimentos de também ser uma narrativa. Vi o fim do mundo nas sequências iniciais de "Melancolia" - interdito chegar atrasado um segundo que seja a este filme - e, por isso, parece irrisório o medo lá para diante. Talvez uma lágrima, furtiva, quando o céu ficar todo cheio daquela luz azul e fria, lunar, mesmo antes da onda de choque e do escuro. Nada de mais.
Fora esse prelúdio em que o apocalipse é uma refinação estética, "Melancolia" organiza-se em dois capítulos. No primeiro - que toma o nome da sua protagonista, Justine (Kirsten Dunst) - há uma festa de sonho, um casamento principesco em que tudo acaba a desmoronar-se, a começar na noiva, sadeanamente a provocar toda uma cadeia de infortúnios; no segundo - que toma o nome da irmã de Justine, Claire (Charlotte Gainsbourg) - há a pacífica delimitação de uma família com tudo para ser feliz, com uma criança sábia numa morada de sonho sustentada pelos infindáveis proventos do marido (John/Kiefer Sutherland), ilimitadamente sereno ante a aproximação do planeta Melancolia, que, dizem os cientistas em quem ele confia até ao suicídio, nunca há de chocar com a Terra. Dois capítulos em estilos diversos, mas onde o uso da câmara à mão nos lembra os idos tempos do Dogma e do seu manifesto - oh!, quão ofendido agora pelos efeitos especiais em que Lars von Trier se deleita. Dois capítulos a mostrar disfuncionalidades afetivas, crueldades inúteis, esperanças infrutíferas, vaidades fúteis, uma espécie de desgosto pelo género humano que é dos aspetos menos recomendáveis deste cineasta. E um desfilar de atores de grande renome, passeando um vago reflexo do cinema todo inteiro, de Hollywood a Liliana Cavani, de David Lynch a Fassbinder, que eu sinto por detrás de "Melancolia" como se Trier se entregasse ao prazer do palimpsesto, escrevendo com imagens e corpos roubados. Claro que todo este programa se faz em detrimento da consistência dramatúrgica, que não parece ser a sua preocupação maior. Ao contrário, o essencial é a respiração do filme, o tom melancólico, as imagens fortes, a vacilação entre a iminência da catástrofe, a serenidade de quem espera o fim como um resgate - e talvez a miragem de encontrar Deus face a face.
Lars von Trier é um cineasta excessivo, capcioso, que gosta de provocar, que tem uma ideia de beleza sempre com um impulso profanador à mistura. Não é preciso irmos ao descomedimento intolerável de "Anticristo" (2009) para o provar, basta pensar na execução de Björk em "Dancer in the Dark" (2000), em Nicole Kidman acorrentada em "Dogville" (2003), na via sacra de Emily Watson ganhando o milagre com o sarro da sua própria degradação em "Ondas de Paixão" (1996) para ver¬mos como este realizador gosta de nos manipular acordando discórdias. Mas a memória de todos esses filmes é também a de espantos e maravilhamentos, coisas nunca vistas ou só entrevistas, cruzamento de imaginários, acordes improváveis. Há quem odeie os filmes de Lars von Trier e, há que perceber, fundadamente. Ninguém passa por eles com indiferença e todos nos deixam uma imagem cravada na memória - como um prego, uma assombração,, um horror ou um prodígio.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
ENTREVISTA AO REALIZADOR
“Melancolia” começa com um ralenti operático e wagneriano (a abertura de "Tristão e Isolda") e um casamento. Tem duas partes, cada uma com a sua irmã, Justine (Kirsten Dunst), a loira, e Claire (Charlotte Gainsbourg), a morena. No fim da primeira noite, o casamento de Justine está desfeito: felicidade em Lars von Trier, mesmo no mais romântico dos seus filmes, é sol de pouca dura. Mas a agonia ainda está para vir. No sistema solar, entrou um planeta monstruoso e de órbita desconhecida que se prepara para esmagar a Terra. Chama-se Melancolia. Trier filma tudo com uma calma de fim de mundo. Na estreia em Cannes, não foi calma a conferência de imprensa do dinamarquês. Ele afirmou ser nazi. Disse compreender Hitler. Caiu o Carmo e a Trindade na Croisette. Trier apresentava-se pela nona vez à Palma de Ouro (venceu uma, com "Dancer in the Dark"). Não terá décima oportunidade: no dia seguinte, Cannes declarava-o persona non grata. Foi nesse dia que o encontrámos.
Gostaria de 'despachar' já a conferência de imprensa e não voltar mais ao assunto. Pergunto-lhe: há em si algum tipo de pulsão autodestrutiva?
Há, sim. Pelo menos a um nível subconsciente, não tenho dúvidas. Eu até estava bem-disposto, parecia estar tudo a correr bem, e depois descubro-me a ir numa direção errada, as frases saíram todas erradas e acabei por dizer coisas terríveis. Foi como se estivesse a guiar um carro e não conseguis¬se fazer a curva. Estou arrependido. Fui muito estúpido. Não posso simplesmente desculpar-me pelo que fiz, porque o que fiz foi ridículo, mas lamento ter magoado algumas pessoas. Duvido que alguma vez possa voltar a Cannes. Disseram-me que estou proibido de me aproximar a menos de cem metros do palais do festival. Tenho um, enorme respeito por Gilles Jacob [o presidente do festival]; venero-o e sei que, sem ele, não poderia ter feito todos os filmes que fiz. Pedi-lhe desculpas, mas também sei que Cannes tem um quadro de administradores que ainda devem estar aos gritos...
Quer comentar a resposta do festival?
Respeito-a. Bom, é óbvio que não simpatizo com Hitler. Fuck him! Quando as palavras não são bem explicadas e estamos perante centenas de jornalistas que esperam de mim uma provocação - porque eles sabem que é esse o meu estilo -, eu faço-o. E perde-se o contexto daquilo que eu queria dizer. Naquele momento, tinha sido confrontado com uma pergunta que me pedira para explicar a minha admiração pelo trabalho do arquiteto nazi Albert Speer. Não o respeito como criminoso de guerra, apenas como arquiteto. Foi a partir daqui que a conversa começou a correr para o torto. Mas tudo isto também me fez pensar no seguinte: será que daqui para a frente os festivais só vão escolher filmes de pessoas que dizem as coisas certas? Eu não me considero um criminoso, mas suponha que há um criminoso que chega aqui com um bom filme e se apresenta a concurso pela Palma de Ouro. Não deve ganhá-la só pelo que ele é? Afinal, estamos a falar de pessoas ou de filmes? De um julgamento moral ou artístico? Toquei num verdadeiro tabu e só isso explica a violência das reações. E acrescento, sem querer com isso defender-me ou justificar o que fiz: acho que o politicamente correto está a acabar com o mundo. A partir de agora, não darei mais conferências de imprensa, acabou-se. Vou fazer como o Malick. Calo-me. Ele não precisa de manter sozinho esse privilégio.
Passemos ao filme...
Ótimo.
O que o levou a filmar o fim do mundo?
O fascínio. E o medo. O fascínio e o medo caminham habitual¬mente juntos, mesmo quando é do fim do mundo que se trata. Podia tentar uma comparação que faz todo o sentido para mim: eu tenho pânico de voar. Nunca apanho aviões. Voei há pouco tempo, pela primeira vez na vida, numa curta viagem de helicóptero e fiquei com pele de galinha, senti um fascínio aterrador. Não quero voltar a repetir. Com as mulheres, em especial com a personagem de Kirsten Dunst, passa-se algo semelhante. Sinto-me fascina-do e aterrorizado por ela. Porquê? O que se passa é que, quando escrevo um papel feminino, sou devorado pela angústia. Pelo desconhecido. Na verdade, não estou a construir uma personagem de mulher, porque não conheço as mulheres, mas a exprimir-me através dessa personagem - até me tomar, deste modo, uma mulher. Sou sempre eu quem fala através delas. Não é por acaso que os heróis dos meus filmes são habitualmente mulheres, ao passo que os homens, como a personagem de Kiefer Sutherland em "Melancolia", são uns tolos, uns fracos.
Num texto dirigido à imprensa, "Um, Belo Filme sobre o Fim do Mundo", disse que recusava "Melancolia" como um órgão erradamente transplantado. O que queria dizer com isto?
Quando um realizador escreve um statement para um dossiê de imprensa, deve confrontar-se com as suas próprias dúvidas. Para quê sublinhar as intenções do filme nesses textos? Não seria justo. O problema é que nos propusemos trabalhar em torno do romantismo alemão, e acho que para a maioria do público, especialmente para quem consome filmes de Hollywood, o romantismo equivale àqueles bombons muito comerciais chamados "Merci". E eu tenho medo disso. Tenho medo que o meu filme se confunda com os bombons na cabeça das pessoas. Para lhe dizer a verdade, este filme dá-me um pouco de vergonha. Acho-o demasiado belo, demasiado simples, e até de mau gosto, por causa daquele excesso wagneriano. Mas fi-lo assim. E foi com prazer.
Disse também que, neste filme de catástrofes, único no seu género – se me permite o reparo -, nem era o fim do mundo que interessava. O que interessava no filme era o seu estado de espírito...
Mas este filme é sobre o quê? Eu não sei. Sei, sim, que quando trabalho com personagens e as empurro para uma série de acontecimentos traumáticos, isso vai levar-me a algum lado. Normalmente, a regra é esta: agarrem-se, que a partir daqui é sempre a descer. Isso aconteceu em todos os meus filmes e, em especial, no anterior, "Anticristo". "Melancolia" é diferente. Há noivas bonitas, cavalheiros em smoking, campos de golfe que me recordam Antonioni, um belíssimo castelo na Suécia, tudo aquilo se toma muito cavernoso. E melancólico.
Muito deste filme vem dos seus pesadelos?
Muito. A minha vida influenciou imenso o meu trabalho. Sofri bastante com uma "coisinha" chamada DOC - Desordem Obsessivo-Compulsiva. Sabe o que é? Dou-lhe um exemplo: você deixa o seu quarto de hotel e fica com medo de ter deixado alguém fechado lá dentro. Depois regressa. Abre a porta, vasculha, não vê ninguém. Porém, não consegue voltar a fechar a porta do quarto e sair. Justine é assim. Ela passa o filme todo a lutar para não olhar para o planeta que se aproxima. Mas não resiste. E olha, várias vezes... No fim, é o que se vê. Sim, a Justine sou eu.
Uma provocação: de todas as personagens que inventou, Justine pode bem ser a primeira pela qual sente desejo. Concorda? Na última sequência, não é ela quem atrai realmente o planeta?
[Longa pausa] Hum... não. Acho que isso depende do gosto de cada um.
Naquele plano em que ela está nua, à espera da catástrofe...
Já sei, nesse momento, você gostaria de ser o planeta. Sabe, esse foi um dos planos mais vulgares que filmei na vida. Não, não posso concordar consigo. Ainda estou excitado pela Nicole Kidman...
Não afirmou querer expressar neste filme o seu lado feminino?
Sim, mas há uma explicação simples para isso: é que eu acho que ando a enganar-vos a todos. A vocês, espectadores. Em especial, as mulheres. Nos meus filmes há sempre um só papel, no máximo dois, em que estou realmente interessado. Um papel feminino, é regra. Se me 'representasse' no cinema com um homem, não funcionava: as mulheres diriam que eu estava a ser unidimensional, misógino, cobarde, etc. Só que eu inverto os papéis. Quem tem as personagens fortes são elas. E as mulheres dizem então: "Ah, nos filmes de Lars von Trier, as mulheres são realmente pessoas..."
"Melancolia" foi mesmo escrito para Penélope Cruz?
Foi. Essa ideia tomou-se mais forte que eu. Eu pensava nela e escrevia o argumento ao mesmo tempo. Quando a encontrei, ela disse-me que não podia aceitar. Tinha compromissos. Mas deixou-me a sua melancolia. Só depois surgiu Kirsten Dunst. É uma atriz espantosa, infinitamente mais subtil do que eu esperava. O seu sorriso, para mim, é impenetrável. A Kirsten ajudou-me bastante: soube construir o seu próprio castelo de depressão.
Alguma vez na sua vida admitiu ser quem não é?
Na minha juventude queria ser comunista. Acredito na partilha dos sentimentos e das coisas. Mas não acredito que alguma sociedade comunista tenha alguma vez funcionado.
Fez algum tipo de pesquisa científica para este filme? Para criar aquele espantoso plano final, por exemplo?
Fizemos muita pesquisa. Não foi só manobras de computadores. Isto de fazer cinema com planetas desconhecidos é muito complicado.
O título deste filme vem de onde?
Da beleza da palavra. Provei-a, gostei, depois saltei para o espaço. Nos tempos antigos, dizia-se que a melancolia nascia dos fluidos corporais. Que estava relaciona¬da com o planeta Saturno. E volto à Justine. No início do filme, ela tem a ilusão de que a normalidade a salvará. Que o casamento, a família, o trabalho e o êxito a poderão resgatar desse espírito demoníaco que ela sente e que tem um nome:
melancolia.
O que é a normalidade para si?
Não é certamente um casamento que acaba na noite de núpcias.
Acredita que há vida para além da morte? Para além da Terra?
Acredito que há vida fora da Terra, sim. O Universo é tão grande, seria ridículo que não houvesse. Só que eu faço os filmes contra mim próprio e desta vez estava interessado noutra coisa: dizer que isso é uma treta, que essa vida não existe e que, com a catástrofe, toda a Humanidade se evapora. Acreditar que lá fora não há uma só semente, apenas um espaço imenso e frio, é um pensamento muito melancólico para mim.
Deduzo que se considere melancólico...
Outrora, os melancólicos eram procurados pela sua sabedoria. Os artistas eram vistos como pessoas melancólicas. Toda a gente sabia que eles podiam fazer coisas que o comum dos mortais não consegue.
Faz parte dessa família?
Respondo-lhe de outra maneira. Acredito que grande parte do trabalho do cérebro humano consiste em filtrar coisas que nós não devemos saber - caso contrário enlouqueceríamos. Talvez os artistas melancólicos tenham uma parte do cérebro um pouco estragada. Ouvem e veem um pouco mais e melhor que os outros. E isso custa-lhes. Talvez por isso os devêssemos usar como meios de acesso ao desconhecido.
Porque tatuou a palavra "fuck" nos seus dedos?
Vem do "The Indian Runner" ["União de Sangue", 1991], de Sean Penn. A personagem de Viggo Mortensen tem uma tatuagem assim. A minha filha disse-me: "Olha que isso não pode sair, pai. Estás a passar por uma crise de meia-idade." Ela tem 22 anos. Eu tenho 55 e já sabia: "Sim, estou a passar por uma crise de meia-idade!", respondi-lhe. Fiz a tatuagem há três meses. Estou muito contente com ela.
O seu próximo filme também já tem nome...
É um filme porno...
Ao que parece, chama-se "A Ninfomaníaca"...
Não, eu estava a brincar: não é um porno. Vai ser radicalmente diferente deste. Estou agora mergulha¬do na ninfomania, em Proust e no marquês de Sade. Descobri que 40% das ninfomaníacas mutilam-se. Como não conseguem obter satisfação, praticam 'sexo de cortar à faca', literalmente. Mas falar da ninfomania não é politicamente correto. Não sei o que vai sair daqui. Será um filme sobre uma mulher, isso é seguro. Um filme muito francês. Com uma atriz francesa. Ela vai passar o tempo todo a foder.
Francisco Ferreira, Expresso
Fora esse prelúdio em que o apocalipse é uma refinação estética, "Melancolia" organiza-se em dois capítulos. No primeiro - que toma o nome da sua protagonista, Justine (Kirsten Dunst) - há uma festa de sonho, um casamento principesco em que tudo acaba a desmoronar-se, a começar na noiva, sadeanamente a provocar toda uma cadeia de infortúnios; no segundo - que toma o nome da irmã de Justine, Claire (Charlotte Gainsbourg) - há a pacífica delimitação de uma família com tudo para ser feliz, com uma criança sábia numa morada de sonho sustentada pelos infindáveis proventos do marido (John/Kiefer Sutherland), ilimitadamente sereno ante a aproximação do planeta Melancolia, que, dizem os cientistas em quem ele confia até ao suicídio, nunca há de chocar com a Terra. Dois capítulos em estilos diversos, mas onde o uso da câmara à mão nos lembra os idos tempos do Dogma e do seu manifesto - oh!, quão ofendido agora pelos efeitos especiais em que Lars von Trier se deleita. Dois capítulos a mostrar disfuncionalidades afetivas, crueldades inúteis, esperanças infrutíferas, vaidades fúteis, uma espécie de desgosto pelo género humano que é dos aspetos menos recomendáveis deste cineasta. E um desfilar de atores de grande renome, passeando um vago reflexo do cinema todo inteiro, de Hollywood a Liliana Cavani, de David Lynch a Fassbinder, que eu sinto por detrás de "Melancolia" como se Trier se entregasse ao prazer do palimpsesto, escrevendo com imagens e corpos roubados. Claro que todo este programa se faz em detrimento da consistência dramatúrgica, que não parece ser a sua preocupação maior. Ao contrário, o essencial é a respiração do filme, o tom melancólico, as imagens fortes, a vacilação entre a iminência da catástrofe, a serenidade de quem espera o fim como um resgate - e talvez a miragem de encontrar Deus face a face.
Lars von Trier é um cineasta excessivo, capcioso, que gosta de provocar, que tem uma ideia de beleza sempre com um impulso profanador à mistura. Não é preciso irmos ao descomedimento intolerável de "Anticristo" (2009) para o provar, basta pensar na execução de Björk em "Dancer in the Dark" (2000), em Nicole Kidman acorrentada em "Dogville" (2003), na via sacra de Emily Watson ganhando o milagre com o sarro da sua própria degradação em "Ondas de Paixão" (1996) para ver¬mos como este realizador gosta de nos manipular acordando discórdias. Mas a memória de todos esses filmes é também a de espantos e maravilhamentos, coisas nunca vistas ou só entrevistas, cruzamento de imaginários, acordes improváveis. Há quem odeie os filmes de Lars von Trier e, há que perceber, fundadamente. Ninguém passa por eles com indiferença e todos nos deixam uma imagem cravada na memória - como um prego, uma assombração,, um horror ou um prodígio.
Jorge Leitão Ramos, Expresso
ENTREVISTA AO REALIZADOR
“Melancolia” começa com um ralenti operático e wagneriano (a abertura de "Tristão e Isolda") e um casamento. Tem duas partes, cada uma com a sua irmã, Justine (Kirsten Dunst), a loira, e Claire (Charlotte Gainsbourg), a morena. No fim da primeira noite, o casamento de Justine está desfeito: felicidade em Lars von Trier, mesmo no mais romântico dos seus filmes, é sol de pouca dura. Mas a agonia ainda está para vir. No sistema solar, entrou um planeta monstruoso e de órbita desconhecida que se prepara para esmagar a Terra. Chama-se Melancolia. Trier filma tudo com uma calma de fim de mundo. Na estreia em Cannes, não foi calma a conferência de imprensa do dinamarquês. Ele afirmou ser nazi. Disse compreender Hitler. Caiu o Carmo e a Trindade na Croisette. Trier apresentava-se pela nona vez à Palma de Ouro (venceu uma, com "Dancer in the Dark"). Não terá décima oportunidade: no dia seguinte, Cannes declarava-o persona non grata. Foi nesse dia que o encontrámos.
Gostaria de 'despachar' já a conferência de imprensa e não voltar mais ao assunto. Pergunto-lhe: há em si algum tipo de pulsão autodestrutiva?
Há, sim. Pelo menos a um nível subconsciente, não tenho dúvidas. Eu até estava bem-disposto, parecia estar tudo a correr bem, e depois descubro-me a ir numa direção errada, as frases saíram todas erradas e acabei por dizer coisas terríveis. Foi como se estivesse a guiar um carro e não conseguis¬se fazer a curva. Estou arrependido. Fui muito estúpido. Não posso simplesmente desculpar-me pelo que fiz, porque o que fiz foi ridículo, mas lamento ter magoado algumas pessoas. Duvido que alguma vez possa voltar a Cannes. Disseram-me que estou proibido de me aproximar a menos de cem metros do palais do festival. Tenho um, enorme respeito por Gilles Jacob [o presidente do festival]; venero-o e sei que, sem ele, não poderia ter feito todos os filmes que fiz. Pedi-lhe desculpas, mas também sei que Cannes tem um quadro de administradores que ainda devem estar aos gritos...
Quer comentar a resposta do festival?
Respeito-a. Bom, é óbvio que não simpatizo com Hitler. Fuck him! Quando as palavras não são bem explicadas e estamos perante centenas de jornalistas que esperam de mim uma provocação - porque eles sabem que é esse o meu estilo -, eu faço-o. E perde-se o contexto daquilo que eu queria dizer. Naquele momento, tinha sido confrontado com uma pergunta que me pedira para explicar a minha admiração pelo trabalho do arquiteto nazi Albert Speer. Não o respeito como criminoso de guerra, apenas como arquiteto. Foi a partir daqui que a conversa começou a correr para o torto. Mas tudo isto também me fez pensar no seguinte: será que daqui para a frente os festivais só vão escolher filmes de pessoas que dizem as coisas certas? Eu não me considero um criminoso, mas suponha que há um criminoso que chega aqui com um bom filme e se apresenta a concurso pela Palma de Ouro. Não deve ganhá-la só pelo que ele é? Afinal, estamos a falar de pessoas ou de filmes? De um julgamento moral ou artístico? Toquei num verdadeiro tabu e só isso explica a violência das reações. E acrescento, sem querer com isso defender-me ou justificar o que fiz: acho que o politicamente correto está a acabar com o mundo. A partir de agora, não darei mais conferências de imprensa, acabou-se. Vou fazer como o Malick. Calo-me. Ele não precisa de manter sozinho esse privilégio.
Passemos ao filme...
Ótimo.
O que o levou a filmar o fim do mundo?
O fascínio. E o medo. O fascínio e o medo caminham habitual¬mente juntos, mesmo quando é do fim do mundo que se trata. Podia tentar uma comparação que faz todo o sentido para mim: eu tenho pânico de voar. Nunca apanho aviões. Voei há pouco tempo, pela primeira vez na vida, numa curta viagem de helicóptero e fiquei com pele de galinha, senti um fascínio aterrador. Não quero voltar a repetir. Com as mulheres, em especial com a personagem de Kirsten Dunst, passa-se algo semelhante. Sinto-me fascina-do e aterrorizado por ela. Porquê? O que se passa é que, quando escrevo um papel feminino, sou devorado pela angústia. Pelo desconhecido. Na verdade, não estou a construir uma personagem de mulher, porque não conheço as mulheres, mas a exprimir-me através dessa personagem - até me tomar, deste modo, uma mulher. Sou sempre eu quem fala através delas. Não é por acaso que os heróis dos meus filmes são habitualmente mulheres, ao passo que os homens, como a personagem de Kiefer Sutherland em "Melancolia", são uns tolos, uns fracos.
Num texto dirigido à imprensa, "Um, Belo Filme sobre o Fim do Mundo", disse que recusava "Melancolia" como um órgão erradamente transplantado. O que queria dizer com isto?
Quando um realizador escreve um statement para um dossiê de imprensa, deve confrontar-se com as suas próprias dúvidas. Para quê sublinhar as intenções do filme nesses textos? Não seria justo. O problema é que nos propusemos trabalhar em torno do romantismo alemão, e acho que para a maioria do público, especialmente para quem consome filmes de Hollywood, o romantismo equivale àqueles bombons muito comerciais chamados "Merci". E eu tenho medo disso. Tenho medo que o meu filme se confunda com os bombons na cabeça das pessoas. Para lhe dizer a verdade, este filme dá-me um pouco de vergonha. Acho-o demasiado belo, demasiado simples, e até de mau gosto, por causa daquele excesso wagneriano. Mas fi-lo assim. E foi com prazer.
Disse também que, neste filme de catástrofes, único no seu género – se me permite o reparo -, nem era o fim do mundo que interessava. O que interessava no filme era o seu estado de espírito...
Mas este filme é sobre o quê? Eu não sei. Sei, sim, que quando trabalho com personagens e as empurro para uma série de acontecimentos traumáticos, isso vai levar-me a algum lado. Normalmente, a regra é esta: agarrem-se, que a partir daqui é sempre a descer. Isso aconteceu em todos os meus filmes e, em especial, no anterior, "Anticristo". "Melancolia" é diferente. Há noivas bonitas, cavalheiros em smoking, campos de golfe que me recordam Antonioni, um belíssimo castelo na Suécia, tudo aquilo se toma muito cavernoso. E melancólico.
Muito deste filme vem dos seus pesadelos?
Muito. A minha vida influenciou imenso o meu trabalho. Sofri bastante com uma "coisinha" chamada DOC - Desordem Obsessivo-Compulsiva. Sabe o que é? Dou-lhe um exemplo: você deixa o seu quarto de hotel e fica com medo de ter deixado alguém fechado lá dentro. Depois regressa. Abre a porta, vasculha, não vê ninguém. Porém, não consegue voltar a fechar a porta do quarto e sair. Justine é assim. Ela passa o filme todo a lutar para não olhar para o planeta que se aproxima. Mas não resiste. E olha, várias vezes... No fim, é o que se vê. Sim, a Justine sou eu.
Uma provocação: de todas as personagens que inventou, Justine pode bem ser a primeira pela qual sente desejo. Concorda? Na última sequência, não é ela quem atrai realmente o planeta?
[Longa pausa] Hum... não. Acho que isso depende do gosto de cada um.
Naquele plano em que ela está nua, à espera da catástrofe...
Já sei, nesse momento, você gostaria de ser o planeta. Sabe, esse foi um dos planos mais vulgares que filmei na vida. Não, não posso concordar consigo. Ainda estou excitado pela Nicole Kidman...
Não afirmou querer expressar neste filme o seu lado feminino?
Sim, mas há uma explicação simples para isso: é que eu acho que ando a enganar-vos a todos. A vocês, espectadores. Em especial, as mulheres. Nos meus filmes há sempre um só papel, no máximo dois, em que estou realmente interessado. Um papel feminino, é regra. Se me 'representasse' no cinema com um homem, não funcionava: as mulheres diriam que eu estava a ser unidimensional, misógino, cobarde, etc. Só que eu inverto os papéis. Quem tem as personagens fortes são elas. E as mulheres dizem então: "Ah, nos filmes de Lars von Trier, as mulheres são realmente pessoas..."
"Melancolia" foi mesmo escrito para Penélope Cruz?
Foi. Essa ideia tomou-se mais forte que eu. Eu pensava nela e escrevia o argumento ao mesmo tempo. Quando a encontrei, ela disse-me que não podia aceitar. Tinha compromissos. Mas deixou-me a sua melancolia. Só depois surgiu Kirsten Dunst. É uma atriz espantosa, infinitamente mais subtil do que eu esperava. O seu sorriso, para mim, é impenetrável. A Kirsten ajudou-me bastante: soube construir o seu próprio castelo de depressão.
Alguma vez na sua vida admitiu ser quem não é?
Na minha juventude queria ser comunista. Acredito na partilha dos sentimentos e das coisas. Mas não acredito que alguma sociedade comunista tenha alguma vez funcionado.
Fez algum tipo de pesquisa científica para este filme? Para criar aquele espantoso plano final, por exemplo?
Fizemos muita pesquisa. Não foi só manobras de computadores. Isto de fazer cinema com planetas desconhecidos é muito complicado.
O título deste filme vem de onde?
Da beleza da palavra. Provei-a, gostei, depois saltei para o espaço. Nos tempos antigos, dizia-se que a melancolia nascia dos fluidos corporais. Que estava relaciona¬da com o planeta Saturno. E volto à Justine. No início do filme, ela tem a ilusão de que a normalidade a salvará. Que o casamento, a família, o trabalho e o êxito a poderão resgatar desse espírito demoníaco que ela sente e que tem um nome:
melancolia.
O que é a normalidade para si?
Não é certamente um casamento que acaba na noite de núpcias.
Acredita que há vida para além da morte? Para além da Terra?
Acredito que há vida fora da Terra, sim. O Universo é tão grande, seria ridículo que não houvesse. Só que eu faço os filmes contra mim próprio e desta vez estava interessado noutra coisa: dizer que isso é uma treta, que essa vida não existe e que, com a catástrofe, toda a Humanidade se evapora. Acreditar que lá fora não há uma só semente, apenas um espaço imenso e frio, é um pensamento muito melancólico para mim.
Deduzo que se considere melancólico...
Outrora, os melancólicos eram procurados pela sua sabedoria. Os artistas eram vistos como pessoas melancólicas. Toda a gente sabia que eles podiam fazer coisas que o comum dos mortais não consegue.
Faz parte dessa família?
Respondo-lhe de outra maneira. Acredito que grande parte do trabalho do cérebro humano consiste em filtrar coisas que nós não devemos saber - caso contrário enlouqueceríamos. Talvez os artistas melancólicos tenham uma parte do cérebro um pouco estragada. Ouvem e veem um pouco mais e melhor que os outros. E isso custa-lhes. Talvez por isso os devêssemos usar como meios de acesso ao desconhecido.
Porque tatuou a palavra "fuck" nos seus dedos?
Vem do "The Indian Runner" ["União de Sangue", 1991], de Sean Penn. A personagem de Viggo Mortensen tem uma tatuagem assim. A minha filha disse-me: "Olha que isso não pode sair, pai. Estás a passar por uma crise de meia-idade." Ela tem 22 anos. Eu tenho 55 e já sabia: "Sim, estou a passar por uma crise de meia-idade!", respondi-lhe. Fiz a tatuagem há três meses. Estou muito contente com ela.
O seu próximo filme também já tem nome...
É um filme porno...
Ao que parece, chama-se "A Ninfomaníaca"...
Não, eu estava a brincar: não é um porno. Vai ser radicalmente diferente deste. Estou agora mergulha¬do na ninfomania, em Proust e no marquês de Sade. Descobri que 40% das ninfomaníacas mutilam-se. Como não conseguem obter satisfação, praticam 'sexo de cortar à faca', literalmente. Mas falar da ninfomania não é politicamente correto. Não sei o que vai sair daqui. Será um filme sobre uma mulher, isso é seguro. Um filme muito francês. Com uma atriz francesa. Ela vai passar o tempo todo a foder.
Francisco Ferreira, Expresso
Título Original: Melancholia
Argumento e Realização: Lars Von Trier
Fotografia: Manuel Alberto Claro
Montagem: Molly Malene Stengaard
Interpretação: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Charlotte Rampling,
John Hurt, Alexander Skarsgård, Stellan Skarsgård, Brady Corbet, Udo Kier
Origem: Dinamarca/Suécia/França/Alemanha
Ano: 2011
Duração:136’
Preço
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€
Reservas
cineclubefaro@gmail.com
Sócios CCF 2€, Estudantes 3,5€, Restante 4€
Reservas
cineclubefaro@gmail.com
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