Um filme sobre um desgosto sem cura. É tudo e é muito.
É uma maldição, é uma picada de fuso em dedo de bela adormecida... embora a picada que se solta deste fabuloso e despretensioso pequeno filme, pareça mais vinda do mosquito da malária. Um dia picou, e o parasita ficou na corrente sanguínea para a vida toda, pode dissimular-se inoculado durante anos, mas eis que os sintomas ressurgem, e a pessoa nunca mais se livra desta enfermidade que, no caso, é um amor de adolescência. E disse-se pequeno filme, mais pela sua modéstia e destituição de artifícios e de efeitos demagógicos do que pela construção de uma emoção, que essa enche o ecrã, tal como a música fluvial The Water, tão bem cantada pelos britânicos Johnny Flynn e Laura Marling. É um filme sobre o desgosto. Tão simples quanto isso. Este Amor de Juventude também nos fica, subcutaneamente, como uma angústia que não sai cá para fora. E é um exemplo de natarrologia fílmica, a forma como Mia constrói a passagem do tempo, as delongas, as cadências, a música e este desgosto que se arrasta e mói, e "melancoliza" a face de uma extraordinária jovem actriz (Lola Créton). E como a certa altura se convoca a arquitectura usada como metáfora de betão, num filme cheio carne e osso e coração. Camille tem 15 anos e está apaixonada. Logo nas primeiras cenas, a realizadora dá-nos a mobilidade de Sullivan, sempre de bicicleta de um lado para o outro, e a constância de Camille. Ela está irremediavelmente contaminada, não suporta a separação, nem à refeição tolera a distância de uma mesa. Ele precisa de cortar amarras e de pedalar o mundo, deixar de estudar, percorrer a América Latina. Ela, como uma Penélope, fica, a tecer mágoas e desenganos, à espera da volta daquele Ulisses esgrouviado: "Cada dia que passa é um dia sem ele". Os anos correm, menos que na Odisseia, mas ainda assim oito. Camille torna-se adulta, conhece outro amor mais maduro, mais "sintónico", um arquitecto norueguês e famoso. Mas um dia, o Sullivan aparece-lhe no caminho, e apetece dizer o contrário do que à Lara Antipova, na cena em que ela vai no eléctrico, perseguida pelo Dr. Jivago: Olha para trás, olha para trás. Aqui, apetece-nos gritar à Camille; não olhes para trás, não olhes para trás. Ainda por cima Sullivan tornou-se num adulto desinteressante, fotógrafo de fait-divers num jornal regional, trabalhador nas obras de sobrevivência. E ela é uma arquitecta que desenha residências de estudantes como se fossem mosteiros, cheios de reclusão, espelhos de água e contemplação. Eles já nem gostam do mesmo filme; Sullivan comenta à saída do cinema "c'est tellement français". Mas Camille não consegue virar a página. Resta-lhe a água do rio e a música de Flynn, que de intradiegética num carro, passa a extradiegética a céu aberto. A música, talvez a única profilaxia, enquanto não chega a vacina.
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Ana Margarida de Carvalho, Visão
Crónica tocante de uma paixão adolescente até à entrada na idade adulta, “Um Amor de Juventude” é o trabalho mais conseguido da cineasta francesa Mia Hansen-Love.
“Um Amor de Juventude" arranca com uma simplicidade tocante. Com Sullivan e Camille. São adolescentes. Trocam-se promessas de amor e juras de morte se esse amor acabar. Conhecemos a história, toda a gente a conhece: tem a idade do mundo. Depois, Sullivan parte para uma viagem pela América do Sul - está à procura de si próprio. É incapaz de se enraizar num sítio. Camille fica. Chegará à faculdade. Encontrará outras companhias, nova paixão. Os anos passam, num tempo jus¬to, à medida que aquele primeiro amor se vai tomando fantasma. Voltarão a encontrar-se, os amantes, já na vida adulta, num tempo deslocado, mas ainda preso à memória do que já aconteceu, do que já foi. Não será difícil imaginar que, da parte da realizadora francesa Mia Hansen-Love, o filme tem o seu quê de autobiográfico.
"Um Amor de Juventude", terceira longa-metragem desta cineasta de 31 anos após "Tout est pardonné" (2007) e "O Pai das Minhas Filhas" (2009), não escolhe propriamente o caminho de 'integração' mais fácil no cinema francês. Gostávamos de nos demorar um pouco aqui. Mia está muito longe de um cinema comercial de carreira com modelos formatados. Mas está igualmente longe de um cinema de autor francês preocupado em restituir o real e em que nada mais do que o real pode acontecer - neste ponto, é um filme 'contra a corrente'. O que procuram os seus filmes, afinal? Uma fluidez narrativa em que não fixaremos planos mas conseguiremos recordar sequências. Uma direção de atores (sublime o papel de Lola Créton) que se entrega ao romanesco e nele procura, não uma forma prática para contar uma história, mas a forma pertinente de contar uma vida. No caso, as vidas de Sullivan e Camille. A vida de uma paixão e da sua dissolução.
Os filmes anteriores de Mia, que tardavam a esclarecer-se e a convencer, já falavam da passagem do tempo, da melancolia, da autodestruição (eram autodestrutivas as figuras do pai em "Tout est pardonné" e "O Pai das Minhas Filhas"). Desta vez, acredita-se que a cineasta foi mais longe. Encontrou um tempo terno, subtil, outras vezes cruel, em que os sentimentos pouco a pouco se constroem. Ganhou a coragem de filmar uma cena de amor físico e de projetar a sua própria experiência, quando descobrimos, neste subtil filme de época, que a ação se passa entre 1999 e 2000.
Haverá um momento do filme em que chegaremos com Camille à fonte de um rio (é o Loire) , que só pode ser um rio de infância. Camille descobrirá aí que compreender a vida é saber deixar-se levar por ela. Também Mia Hansen-Love, artista ainda a meio caminho, tem procurado compreender o mesmo. Tem sabido deixar levar-se pelos filmes. "Um Amor de Juventude" é aquele que mais realça, e com uma, rara transparência, uma sensação de vi¬da oposta às imitações do cinema.
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Francisco Ferreira, Expresso
NOTAS DA REALIZADORA
Não sei pintar, mas sei que o cinema tem certas coisas em comum com a pintura: expressam o invisível através de imagens, tentando encontrar ou reinventar uma presença singular que está em falta; estabelecem um tom, uma cor, um movimento; tornam definitivo o efémero. Mas a especificidade do cinema é, por exemplo, a escolha de um actor, uma frase de um diálogo, um frame, um corte, ou a duração de um plano; é, sobretudo, o resultado final, a sensação de que se representou algo – é disto que retiro prazer, um prazer idealmente catártico, não só para mim como para os outros.
Por fim, aquilo que me impele à escrita é a história: gosto de ouvir histórias, e de contar histórias. Acredito que a ficção pode alcançar a verdade, desde que a ficção seja uma busca por uma linguagem individual.
A minha avó, que ainda não viu o meu filme, escreveu-me recentemente uma carta onde citava Kierkegaard de memória: “A vida só pode ser entendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente.” Era exactamente isto que eu queria dizer – e fazer – neste filme.
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Mia Hansen-Løve
Título Original: Un Amour de jeunesse
Realização e Argumento: Mia Hansen-Løve
Fotografia: Stéphane Fontaine
Montagem: Marion Monnier
Som: Vincent Vatoux e Olivier Goinard
Interpretação: Lola Créton, Sebastian Urzendowsky, Magne-Håvard Brekke, Valérie Bonneton, Serge Renko, Özay Fecht
Origem: França/Alemanha
Ano: 2011
Duração: 110’
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