Era uma vez... Despojos, 23.10.12, IPDJ 21:30



DIA 23 DE OUTUBRO
ERA UMA VEZ NA ANATÓLIA, Nuri Bilge Ceylan, Turquia, 2011, 150', M/12

FICHA TÉCNICA
Título Original: Bir Zamanlat Anadolu’da
Realização: Nuri Bilge Ceylan
Argumento: Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan, Ercan Kesal
Fotografia: Gökhan Tiryaki
Interpretação: Muhammet Uzuner, Yilmaz Erdogan, Taner Birsel, Ahmet Mümtaz Taylan, Firat Tanis, Ercan Kesal, Murat Kiliç Ficha Técnica
Origem:Turquia
Ano: 2011
Duração 150'

SINOPSE
Misterioso e cativante, o novo filme do premiado realizador Nuri Bilge Ceylan acompanha, durante uma
longa noite, um grupo de polícias e detectives numa busca impiedosa por um cadáver enterrado nas
estepes da Anatólia. A exumação deste corpo vai também desenterrar pensamentos e medos há muito escondidos nas cabeças destes investigadores obstinados.


"Uma surpresa tanto maior quanto Nuri Bilge Ceylan não tinha ainda transcendido a etiqueta preguiçosa de discípulo de Antonioni e de representante oficial da Turquia na internacional do cinema de autor, Era uma Vez na Anatólia é um filme de estarrecer. Neste policial existencialista tão desacelerado como surpreendentemente tenso, a busca de um cadáver na Turquia rural torna-se num microcosmos da condição humana, filmado com um virtuosismo quase ofensivo e uma sensibilidade extraordinária. É verdade que Era Uma Vez na Anatólia é programático no seu jogo de dicotomias (campo/cidade, culpa/inocência), e que nunca fugimos à consciência sisuda de Ceylan estar a fazer “obra” séria e significativa. Mas, face à magistral construção narrativa “em câmara lenta”, à subtileza das interpretações, à humanidade que se desprende do formalismo preciso e observacional, isso quase parece vontade de arranjar defeitos a um dos melhores filmes que vimos este ano"

Jorge Mourinha, Ípsilon

"Fazer um noticiário televisivo não é, por certo, o mesmo que construir uma ficção cinematográfica. Em todo o caso, o determinismo pueril que marca algumas práticas jornalísticas não perderia nada em prestar atenção ao trabalho de alguns cineastas que partem, justamente, dessa pergunta essencial: como filmar um lugar?
Veja-se o caso admirável de Nuri Bilge Ceylan, cineasta turco que já conhecíamos através de 'Uzak - Longínquo' (2002), 'Climas' (2006) e 'Os Três Macacos' (2008). Com 'Era Uma Vez na Anatólia', vencedor do Grande Prémio de Cannes/2011 (ex aequo com 'O Miúdo da Bicicleta', dos irmãos Dardenne), Ceylan dá uma lição magistral sobre a dimensão mais primitiva, e também mais essencial, do labor cinematográfico: filmar um lugar não é "transcrever" ou "ilustrar", mas sim construir um olhar e, em última instância, uma visão do mundo.
'Era Uma Vez na Anatólia', desde já um dos momentos altos do nosso ano cinematográfico de 2012, começa por suscitar o reconhecimento de uma matriz tradicional: vogamos em pleno género "policial", tendo como ponto de partida a tentativa de descoberta de um cadáver que terá sido enterrado, algures, numa zona deserta. Para Ceylan, o decifrar do engima (onde está o cadáver?) não é um fim em si mesmo, antes o motor de uma ação que, a pouco e pouco, descobrimos como um metódico e, à sua maneira, implacável método de desmontagem das aparências de uma insólita teia de personagens.
Ao filmar nas paisagens mais desoladas da Ásia Menor, Ceylan tem, obviamente, consciência de que nos está a dar a ver uma terra de muitos cruzamentos civilizacionais. Que é como quem diz: 'Era Uma Vez na Anatólia' passa-se num território de diferenças e confluências Europa/Ásia, dir-se-ia uma "terra de ninguém" onde cada um transporta um segredo que transcende a sua própria identidade. Vogamos, assim, muito para além de qualquer forma de pitoresco televisivo (sendo o pitoresco uma forma instituída de consagração do cliché, roubando a cada ser humano o direito à sua própria história). A estética que Ceylan afirma confunde-se com uma ética da narrativa que resiste a qualquer ilusão de transparência.
Que é, então, o real? Por certo não o que se expõe automaticamente ao registo de uma câmara, mas sim aquilo que resiste a esse registo. Filmar um ser humano, ou mesmo a linha do horizonte de uma paisagem vazia, envolve sempre a singular responsabilidade de um gesto cognitivo."
João Lopes, http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=2485418&seccao=Jo%E3o%20Lopes&page=-1
 

ENTREVISTA A NURI BILGE CEYLAN
Um one-on-one com Nuri Bilge Ceylan, pode ser uma experiência intimidante. Sobretudo após uma exigente sessão de 150 minutos em Cannes, pouco compreendida por muitos que abandonaram a sala mas aplaudida pelos que ficaram para coroar a sua obra-prima nas estepes da Anatólia. É que há algo nesta espera que faz com que as imagens se nos entranhem na memória e adquiram a configuração próxima de um western. Tudo se passa durante uma longa noite em que um grupo de homens procura um cadáver enterrado. Oportunidade para libertar o ponto de vista de um fotografo, para quem o tempo mais não é do que uma composição mais ou menos ordenada. Mesmo sem querer usar o título para fazer uma colagem desadequada a Sergio Leone, acabamos por perceber a importância do tempo para a visão de Ceylan. Tal como a nossa conversa, lenta, pensada, pausada. À procura de significados. É que tal como uma fotografia, o seu cinema não pretende ser um ponto de vista único. Talvez por isso, confirme...
Acabei de ver um grande filme. Gostei muito. Até que ponto o seu estilo de realizador, os seus longos planos não são, afinal de contas, um prolongamento da sua visão enquanto fotógrafo?
 Não me parece. Não me parece. Há muitos realizadores, que não são fotógrafos, e fazem longos planos-sequência. 
O Manoel de Oliveira, por exemplo... Sim, claro. Mas isso depende mais da sua relação com a vida. São os cortes que fazem nascer o cinema, mas os planos longos é que dão vida às imagens.
É isso mesmo. É a vida que vemos desenrolar-se neste filme. As longas conversas no carro acabam por dar esse tom de verdade. Não será então o tempo a justificar a ação? Mesmo que não seja um dialogo de uma lógica narrativa. O tempo adquire aqui o seu peso... O que lhe parece?
Qual era a sua pergunta?
Se concorda com a importância que tem o tempo no seu filme? Qual é a sua opinião?
Não sei... Eu sigo o meu instinto. É claro que o tempo é um dos aspectos mais importantes na vida. E também no cinema. Deveremos saber lidar com ele. Todos nós temos um sentido do tempo. 
Como lhe ocorreu a ideia desta investigação criminal? Pode elaborar um pouco à volta deste tema?
É uma ótima situação para abordar o lado mais negro da alma humana. E todas as complexidades da alma humana. Sobretudo numa situação complexa como esta. Parte de uma história verdadeira. Um dos argumentistas é médico e vive nesta região da Anatólia. E contou-me esta história durante um jantar. Meses mais tarde decidimos tentar fazer um filme a partir dela. Mas o guião acabou por ser totalmente reescrito. Há também inclusão de alguma influência de Tchekhov, de algumas histórias e ideias de Tchekhov.
É nesse sentido uma obra em permanente evolução ou perfeitamente acabada antes de filmar? Há mais espaço para o improviso ou não?
É claro que tento escrever tudo. Mas não é possível. 
 É muito difícil escrever sobre trivialidades, digo eu...
Sim. Tento escrever assim, de forma tão detalhada quanto possível. Mas acabamos sempre por mudar algo. Durante a rodagem procuramos sempre algo mais e mesmo na montagem. Em si, é um processo interminável. 
Dá aos seus actores espaço para improvisação?
Claro. Porque não? Se um actor é bom e consegue sugerir algo melhor do que está escrito, porque não?  
Diria que é um realizador fácil de trabalhar? (risos)...
Não sei. Mas não sou do tipo de gritar... 
Mas sabe bem o que quer. 
Não sei o que quero. É difícil, faço muitos takes. E tento coisas diferentes. Nunca tenho a certeza. Na rodagem nunca devemos ter a certeza, mas durante a montagem, sim. Só na montagem é que compreendemos todo este processo.
É fácil de trabalhar com a sua mulher? É um processo de colaboração?
A minha mulher é uma ótima argumentista. Escrevemos este guião os três: eu, a minha mulher (Ebru Ceylan) e o meu amigo Ercan Kesal. 
Tem outros planos para voltar a trabalhar com ela enquanto atores, como fizeram em «Climas»?
Não, nunca mais. Foi a primeira e última vez. 
Não foi uma boa experiência?
Foi difícil. Prefiro estar atrás da câmara. Sou obcecado por todos os detalhes. Quando estou a representar não posso controlar tudo.
Tem alguma intenção de trabalhar em algum outro lugar sem ser a Turquia?
Depende. Se me surgir uma ideia que necessite de outro país, porque não? Mas a língua é sempre uma barreira...
Tem neste momento algum projeto em que estejam já a trabalhar?
Não, para já não. Veremos.
Só para terminar: Cannes tem sido um bom festival para si. Com um bom reconhecimento para o seu trabalho. O que significa para si ver o seu trabalho apresentado aqui?
É o melhor lugar para começar. Quem poderá dizer o contrário? 
É também um lugar para os autores...
Sim, como festival é o melhor. Em todos os aspetos. É o maior e o mais útil. Tenho sorte de poder estar aqui.
 Paulo Portugal, www.c7nema.net


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