O passeio de Buster Keaton ou a poesia e o cinema

Em Julho de 1925 Lorca escreve uma peça, em um acto, que se chama El paseo de Buster Keaton. Alguns exegetas do poeta defendem que este texto surge como uma resposta a uma collage enviada por Dalí, no mesmo ano, intitulada El casamiento de Buster Keaton. O pintor parecia querer evidenciar, com este trabalho, a distância entre a arte e a vida: o Keaton personagem, que ambos admiravam, não era o mesmo Keaton que casava com uma famosa actriz da altura. Lorca escreve um dos primeiros textos onde deixa vir à tona o seu desespero e as suas dores de um desejo insatisfeito e não-resolvido, sequer assumido pelo poeta então. Neste texto, vida e arte se (con) fundem de uma maneira bastante intensa e prenhe de um surrealismo avant la lettre na obra deste cão andaluz. É interessante que a escrita lorquiana seja uma escrita poética, mesmo quando de poesia não se trata, e que a sua poesia, profundamente imagética, seja construída, em muito momentos, como se fora um guião. A influência do cinema na obra dos poetas da Geração de 27 espanhola, da qual Lorca é um dos principais membros, tem sido estudada e ainda há muito que se lhe diga. Transcrevo aqui um bocado do texto de Lorca, que mais do que uma peça de teatro, parece um guião, a sua câmara-caneta cria imagens poéticas que tentam, talvez, demonstrar que Dalí estava errado. Só há, para Lorca, um Keaton, de olhos infinitos e tristes como os de uma besta recém-nascida, que o cinema eternizou em gros-plan.

El Paseo de Buster Keaton (Lorca, 1925)
(Sale Buster Keaton con sus cuatro hijos de la mano.)
BUSTER K. ¡Pobres hijitos míos!
(Saca un puñal de madera y los mata.)
GALLO. Quiquiriquí.
BUSTER K. (Contando los cuerpos en tierra.) Uno, dos, tres y cuatro.
(Coge una bicicleta y se va.
Entre las viejas llantas de goma y bidones de gasolina,
un negro come su sombrero de paja.)
BUSTER K. ¡Qué hermosa tarde!
(Un loro revolotea en el cielo neutro.)
(…)
BUSTER K. Es emocionante. (Pausa.)
(Buster Keaton cruza inefable los juncos y el campillo de centeno.
El paisaje se achica entre las ruedas de la máquina. La bicicleta
tiene una sola dimensión. Puede entrar en los libros y tenderse en
el horno de pan. La bicicleta de Buster Keaton no tiene el sillón de
caramelo, ni los pedales de azúcar, como quisieran los hombres
malos. Es una bicicleta como todas, pero la única empapada de
inocencia. Adán y Eva correrían asustados si vieran un vaso lleno
de agua, y acariciarían en cambio la bicicleta de Keaton.)
(…)
BUSTER K. (Levantándose.) No quiero decir nada. ¿Qué voy a decir?
UNA VOZ. Tonto.
BUSTER K. Bueno. (Sigue andando.)
(Sus ojos infinitos y tristes como los de una bestia recién nacida,
sueñan lirios, ángeles y cinturones de seda.
Sus ojos que son de culo de vaso. Sus ojos de niño tonto. Que son
feísimos. Que son bellísimos. Sus ojos de avestruz. Sus ojos humanos
en el equilibrio seguro de la melancolía.
A lo lejos se ve Filadelfia.
Los habitantes de esta urbe ya saben que el
viejo poema de la máquina Singer puede circular entre las grandes
rosas de los invernaderos, aunque no podrán comprender nunca
qué sutílisima diferencia poética existe entre una taza de té caliente
y otra taza de té frío.
A lo lejos, brilla Filadelfia.)
BUSTER K. Esto es un jardín.
(Una Americana con los ojos de celuloide viene por la hierba.)
AMERICANA. Buenas tardes.
(Buster Keaton sonríe y mira en gros plan los zapatos de la dama.
¡Oh qué zapatos! No debemos admitir esos zapatos. Se necesitan
las pieles de tres cocodrilos para hacerlos.)
(…)
BUSTER K. (Suspirando.) Quisiera ser un cisne. Pero no puedo aunque quisiera. Porque
¿dónde dejaría mi sombrero? ¿dónde mi cuello de pajaritas y mi corbata de moaré?
¡Qué desgracia!
(Una Joven, cintura de avispa y alto cucuné, viene montada en
bicicleta. Tiene cabeza de ruiseñor.)
JOVEN. ¿A quién tengo el honor de saludar?
BUSTER K. (Con una reverencia.) A Buster Keaton.
(La joven se desmaya y cae de la bicicleta. Sus piernas a listas
tiemblan en el césped como dos cebras agonizantes. Un gramófono
decía en mil espectáculos a la vez: «En América, no hay
ruiseñores».)
BUSTER K. (Arrodillándose.) Señorita Eleonora, ¡perdóneme que yo no he sido!
¡Señorita! (Bajo.) ¡Señorita! (Más bajo.) ¡Señorita! (La besa.)
(En el horizonte de Filadelfia luce la estrella rutilante de los
policías.)

22 comentários:

Artur disse...

Uma peça inencenável, não? :) Estou a ver o encenador a pensar como é que vai fazer a parte parte da bicicleta ter só uma dimensão e poder entrar nos livros :) E claro adorei "una americana con los ojos de celuloide" Lindo.

anabela moutinho disse...

eia qu'isto está mesmo a subir de nível!!

(obg, belíssimo post)

Mirian Tavares disse...

Pois é...andava eu a tentar escrever um texto e deparei-me com esta peça, linda de morrer, do Lorca. Não resisti e tive que reparti-la! É engraçado Artur como a obra cinematográfica do Lorca, que é muito parca, além de algumas peças como esta, é profundamente cinematográfica na estrutura, mas irrealizável como filme. (apesar de terem feito dois filmes do seu guião de 29. só vi um deles e confesso que não gostei nada.)
Mas as imagens que ele cria...
"Quisiera ser un cisne. Pero no puedo aunque quisiera. Porque
¿dónde dejaría mi sombrero? ¿dónde mi cuello de pajaritas y mi corbata de moaré?
¡Qué desgracia!"

Mirian Tavares disse...

ai, ai, anabela, ando às voltas com o meu texto do colóquio do Mario Jorge, "Lorca, o cão andaluz", e ao invés de trabalhar... cá estou eu blogando ;-)

Ana Soares disse...

Pois eu cá não acho que seja irrealizável nem inencenável - com a animação, fazia-se isto y mucho más. Não?

Mirian Tavares disse...

fazia sim. o Amat bem tentou, com imagem digital, fazer o Viaje a la luna. Já disse que não gostei do resultado. Soa falso. O problema é que se perde a realidade que o Lorca queria imprimir ao texto. Creio que Lorca (em algusn momentos), como Proust, tinha uma escrita essencialmente cinematográfica, mas já tão bem realizada enquanto escrita,tão prenhe de uma sintaxe e morfologia puramente fílmica, que dificilmente se consegue transpor para o ecrã. Quem sabe Buñuel não poderia tê-lo feito? ;-)

anabela moutinho disse...

ora e se não fosses tu puxar a sardinha à brasa do buñuel...

(claro que a animação o faria, claro que não era isso que lorca pretenderia...)

js disse...

Eu acho que não dá. Não pode ser. Não pode ser transformado em filme, porque no momento em que o for, deixa de o ser (mesmo).
Porque a incoerência, a impossibilidade estrutural e a estrutura surreal da combinação de imagens tão impensáveis (que mais ninguém pensa na vida de um universo e nunca antes tinha pensado) são o motor que desencadeia as mais diferentes sensações nos mais absurdos lugares do corpo e da alma que as percebe (a incoerência e a impossibilidade) desde a parte de dentro do cérebro ao pelo da pele do ante-braço – acho que se chama arrepio, e não se explica.
Quando a imagem evocada que vai descer-se pelo corpo e alma entrelaçados for tornada imagem, real, deixa de ser a sua essência... a não ser que esteja desfocada (como por exemplo as desfocadas figuras de Bacon (para dar uma perninha ao Deleuze também por este lado mais acrílico), mas se for desfocada, então não tem a potência da lucidez do contorno, no impossível.

js disse...

porém, na vida de um universo, alguém, com serena certeza conseguirá fazer o que não se consegue, sem dúvida nenhuma.
(era preciso que ficasse dito para fazer funcionar o que disse antes)

Artur disse...

Daqui pouco estamos a falar da meta-operatividade do Garroni... :) Quem é que ainda se queixa da falta nível, hãn? Onde está aquele anónimo que se queixou alguns posts atrás? Ele que venha, que ainda temos umas sardinhas!

anabela moutinho disse...

lolllll artur! :D:D:D:D

olha, por mim já me reduzi à minha insignificância e já não digo mai nada!! ponho umas musiquitas ali na barra lateral e já me dou por contente!!! :D


mas psssst
oh camarada js, o seu discurso é belíssimo mas não me fez sentido nenhum! deve ser do adiantado da hora ou eu estou especialmente lerda: entonces segundo vossa excelência uma imagem evocada nuna se pode tornar em imagem real, compreendi bem? se sim, faça favor de mo dizer. se não, também. que é pra depois eu pôr os neuroniozitos a funcionar, melhor, de preferência!
agradecida.

Mirian Tavares disse...

Belíssimo texto js, também ele inecenável :-) Creio que há coisas que a materialidade da imagem não dá mesmo conta. Ainda bem, sobra sempre espaço para o inefável... Quanto ao nível, olha que não poderia estar mais alto! (o que não dispensa as sardinhas a mesma ;-)

Ana Soares disse...

Eh lá! Depois disto tudo, fico é com vontade de realizar um filmezinho a adaptar o Lorca. Na minha cabeça, seria mesmo animação. Na minha cabeça, a bicicleta da menina da Regina Pessoa (façam um favor a vós mesmos e não percam o História Trágica com Final Feliz, que passaremos dia 17 em complemento ao do Lynch) teria as rodas a girar com a paisagem a apoucar-se ao longe - e seria conduzida, "inefavel" (aha!), pelos "juncos y el campillo de centeno". Na minha cabeça tola, as palavras teriam de estar - nem sequer ditas, mas assim com as letras a transformarem-se em olhos e em cisnes e em assento de caramelo e pedais de açúcar (que nada disto poderia ser, porque, precisamente, js: "La bicicleta tiene una sola dimensíon" e se o tornássemos imagem, dimensão ao menos dupla, seria negar o que o texto diz desdizendo - ai!, Anabela, já percebes por que é que não se percebe?). Na minha cabeça maluca, sim, Keaton não seria mais do que o chapéu baixinho e as pálpebras descaídas sobre aqueles olhos grandes, o resto um vão onde coubesse "Filadelfia". Como diabo é que os realizadores passam aquelas coisas todas das cabeças deles para os filmes, ó Artur? E será que acho este Lorca lindíssimo porque ele não se dá dominado?

Mirian Tavares disse...

Olha que dava um belo filme ;-)
Já agora, para aumentar mais a confusão, e puxar brasa a sardinha do Buñuel (olha que são tão faladas, as tais sardinhas, que devíamos combinar uma sardinhada!!!), vou postar as soon as posible, um poema do Buñuel, com partes que ele realizou "filmicamente" e que, a partida, pareciam inecenáveis!! (génio é génio, não há nada a fazer ;-)

anabela moutinho disse...

1º é dia 27, a historia tragica, nao 17

2º CLARO QUE DAVA PARA FILME DE ANIMAÇÃO! NÃO HÁ LIMITES PARA A ANIMAÇÃO!

3º Contudo, continuo a aguardar os esclarecimentos do js antes de o comentar, pois não quero fazer leituras precipitadas e erroneas do que ele quis transmitir.

4º, lol, mirian, eu odeio sardinhas, mas voto nessa tal de sardinhada!! desde que aberta a todos os que aqui escrevem e comentam, incluindo, em lugar de honra, o nosso anónimo que a esta altura já deve estar enjoado de tanto umbigo à mostra (e cada vez mais descaradamente à mostra, registe-se!), por isso, deve fazer-lhe bem relaxar!

5º, vou pró cineclube, que a minha vida não é só este regalo aqui e tenho uma reunião lá.

Mirian Tavares disse...

claro que deve ser aberta a todos que por aqui passam e comentam. E o Sr. Anónimo também devia aparecer. Olha que o meu próximo post vai ser a foto do meu umbigo ;-)
(isso é que é messssmo baixar o nivel)

Ana Soares disse...

Fui induzida em erro pelo erro que estava aí mais abaixo, no post da Anabela, "ideias de génio". Não verifiquei que aqui mesmo ao ladinho esquerdo estava o calendário dos filmes. O da Regina Pessoa, o tal imperdível, passa mesmo no dia 27, que é uma quarta-feira, de hoje a 2 semanas. Não o percais.
Sardinhada: sim, desde que haja carapaus :-) Principalmente de corrida. js, responde lá, para a gente ter as respostas da Anabela. Vá.

Mirian Tavares disse...

pode ter carapaus e muitas cervejas, claro ;-)(eu confesso que também não sou lá grande amante das sardinhas...)

Artur disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
miguel. disse...

e como a blogosfera é isto mesmo, também meti um post sobre Buster Keaton no meu café...

:)

anabela moutinho disse...

:)

Mi Bueno disse...

Já participei de uma montagem dessa peça e posso dizer que ela fica maravilhosa no palco.




Ah, e fiquei feliz de vê-la aqui, pois na época da peça eu não a encontrava em lugar nenhum! (;