Gilda: I can never get a zipper to close. Maybe that stands for something, what do you think?
A Laura Mulvey que me perdoe, mas o que teria sido do cinema clássico sem as femme fatale? Outro dia estava a folhear uma espécie de guia de leitura do cinema, feito para se utilizar em escolas, e nele, de forma esquemática, aparecia um quadro que descrevia como a mulher era representada no cinema hollywoodiano: dona de casa, mãe ou femme fatale. Havia mais dois ou três rótulos, dos quais não me recordo. De qualquer forma, caíam todos na dicotómica fórmula: mulheres boas e mulheres más. É claro que o cinema clássico, demasiadas vezes, reproduziu ideias e valores que representavam o que havia de mais conservador na cultura. O que deu azo as leituras das Mulveys e companhia, que acusam este cinema de sexista. E o Hitchcock de tarado (o que não está longe da verdade! Mas que não o invalida como génio!!!). Hoje em dia questiono até que ponto houve um cinema clássico, no pior sentido do termo, quando penso em uns quantos realizadores e mesmo géneros, que pervertiam o sistema o tempo inteiro. E não falo apenas daqueles que a política do autor consagrou. Muitos mais, que eram considerados apenas realizadores competentes, cuja obra ainda necessita de uma revitalizadora exegese. O cinema noir, que funciona quase como um metagénero, instala, confortavelmente, a perversão e o mal no seio das boas famílias. Nas sombras, tudo é permitido. Are you the shadow? No, I'm lost. E das sombras surge Gilda. Um dos mais sensuais strip teases de toda a história é protagonizado pela Hayworth quando tira…uma luva. Diz-se que um das principais armas de sedução do cinema é a pulsão escópica que nos move a todos. A relação, na pulsão escópica, repousa na ausência do objecto percebido, daí o carácter imaginário do seu significante, que se torna uma miragem perceptiva. Apesar dos excessos cometidos, um dos grandes achados da teoria feminista do cinema foi a leitura da imagem da femme fatale a partir da tensão entre o fluxo narrativo e o close up e, consequentemente, o seu papel na erotização do rosto feminino. O rosto, destacado do fluxo narrativo, provoca stasis e cria uma retórica do não-movimento, uma pequena morte, um instante de prazer. Que justifica o impulso à escopofilia e reitera o ponto de vista marcadamente masculino deste tipo de cinema. A femme fatale revela e oculta. Seu rosto, despido no ecrã, ainda esconde segredos. Segredos que irão aguçar o desejo do desvelamento, imbricação de epistemofilia com escopofilia: desejo de conhecer e de ver, mas ao mesmo tempo reconhecer que o visível não está ao alcance da mão, mas está ou esteve ali. Porque é antes de mais nada fotografia em movimento, com carácter ontológico que nos relembra uma presença, agora ausente. O isso foi do Barthes. Na foto, como no filme, a presença fica impressa pela luz, no fotograma. E esta presença emana provocando o desejo. E é do desejo que falamos, quando falamos de mulheres como Gilda.
13 comentários:
olha rapariga, isto está muitA bom.
dá pra 3.000 comentários.
este fica sendo o 1º, que tenho de me ir vestir e tomar o pequeno almoço antes que desfaleça.
já cá volto.
:-)
Espero que não desfaleças!
(A música também era uma boa sugestão para o blog, não? Há uma versão linda cantada pela Marisa Monte)
é sim senhora, e há sim senhora.
e o youtube respectivo ficava a matar :D:D
(inda nao é desta, agora vou almoçar e depois ccf comigo - sede; mas volto cá, claro)
podemos por só a letra, se calhar (em homenagem ao Artur)...o ideal era rever o filme e ouvir a Hayworth a sussurrar put the blame on me... Quando vi este filme, in illo tempore, pintei o cabelo de vermelho. Mas, que desgraça, nunca houve outra mulher como Gilda! (Ao ponto do Orson Welles tê-la obrigado a cortar o cabelo na Dama de Shangai, talvez, simbolicamente, exorcizando a personagem. Para a actriz, foi um peso. Ela dizia que os homens dormiam com Gilda. E acordavam com ela).
Não sei se será indicado , mas no que diz respeito ao tema em discussão femme fatale apraz-me referir catherine deneuve no seu início de carreira no muito sui generis filme de roman polanski Repulsa. Embora o filme não se centre na discussão aqui em debate acho que a presença de catherine deneuve faz o filme , não colocando de forma negativa o trabalho do realizador.
Havia outros filmes a referir , mas este pareceu-me adequado.
Deixo aqui o endereço onde pode ser visto um belíssimo trailer. http://www.youtube.com/watch?v=0NJUwvhi6XE
Passando a outro tema quero deixar aqui uma parte do filme La jettee de 1962 realizado por chris marker , filmado em modo still foto , é um universo a descobrir. infelizmente já tentei arranjar o filme cá mas é muito dificil por muita pena minha.
Fica aqui o endereço de la jettee
http://www.youtube.com/watch?v=1WXMp5BHZ_o
Ah! No dia da projecção de inland empire estarei presente.
até breve
hernâni
Deneuve é, sem dúvida, uma grande femme fatale. De uma maneira estranha, sem dúvida, com seu ar glacial, de belle de jour. E a presença destas femmes nunca esteve, efectivamente, reduzida ao cinema clássico.
pois não (essa era uma das coisas que ia comentar, damn).
2º petit comentaire: lá nos encontraremos no lynch, sendo que já nos poderiamos ter encontrado no ´la jetée'. :-) mas vem-se sempre a tempo.
3º - nós temos o 'la jetée' em dvd... :-))))))
Excelente post :)
mto bom post Miriam :)
Mto obrigado...
:-)
Obrigada!(isso é pq estou cheia de trabalho e devia estar a escrever outras coisas... o blog vai ser a minha perdição ;-)
lolllllllll! que BOM! :D
por pontos:
1. a laura mulvey é que nao seria nada sem o cinema classico norte-americano. certo? certo. rebolam-se de gozo a evidenciar o óbvio, essas sujeitinhas e sujeitinhos dos gender studies: que há estereotipos sociais, culturais e historicos no cinema. é cá uma descoberta, xi!
2. o que ela e eles todos se costumam esquecer é que desvelar estereotipos, primeiro, não os elimina; segundo, não retira o papel que eles tiveram na construção-ou-reflexo de esquematismos narrativos ou simbólicos da respectiva época; terceiro, e no caso em apreço, que foi um gesto de bondade termos o mundo tão a preto-e-branco, no sentido literal e metafórico da expressão: simplificava-nos o mundo e complexificava-nos as fantasias. uma delícia.
3. onde eu acenei mt mt com a cabeça em gesto de assentimento foi neste momento de explicitação do 'óbvio' que tantas vezes o (ou 'esse') simplismo força a esconder, traindo a verdade histórica desta arte: «quando penso em uns quantos realizadores e mesmo géneros, que pervertiam o sistema o tempo inteiro». exactamente, cara mirian, exactamente. e o film noir é o mais evidentíssimo exemplo disso mesmo.
4. agora a parte palavrosa do teu post :D
«luva» - sei o que é;
«pulsão escópica» - atracção por escopos? em vez de martelos?
«miragem perceptiva» - ainda estou à espera que o js me ilumine sobre a relação imagem evocada - imagem real. caía aqui que nem ginginhas.
«stasis» - a da rda?
«epistemofilia com escopofilia» - aqui a porca torce o rabo: gosto pela ciência dos escopos???
«desejo» - também sei o que é (às vezes, com sorte, até o consigo concretizar e tudo)
5. vê lá se achas que dá pra simplificar este teu naco de prosa desta maneira:
«mas que gaja tão boa, arranjas-me o tlm dela?»
6. eu sei que não dá: pq elas não estão lá.
7. e onde as mulveys erram é, tb, considerar que tal ponto de vista, tal como por ti (mt bem) sintetizado, é masculino. Não é. É o do desejo, dos tais instantes de prazer que são a pequena morte do/a espectador/a : seja pq a espectadora gosta de meninas, seja pq a espectadora gosta de meninos - nunca consegui entender pq as mulveys não referem que essa mesmíssima estratégia, dos close up que provoca stasis e sei lá mais o quê, foi insistentemente utilizado IGUALMENTE quanto aos rostos dos actores. (até sei o porquê de tal “””lapso”””: estragava-lhes o raciocínio).
8. tudo o resto, meu amor, que dizes a seguir, se aplica pt e em igual medida a toda a estrela de cinema, feminina e masculina, desde que a Europa inventou o star system e a ‘américa’ lhe deu esse nome. E, como bem dizes ou se deduz das tuas palavras, não só em relação aos homens e mulheres que são as presenças ausentes de fotografias em movimento: mas de TODO o cinema que é essa mesma presença ausente.
9. acabo (finalmenteeeeeeeeeeeeeee) com uma reflexãozeca: se na foto, como no filme, a imagem fica impressa pela luz, é então a luz que provoca o desejo? Se pensarmos na arte da luminotecnia no cinema clássico americano, mas tb a de todo o cinema em geral, parece obrigatório concluir que sim. Pelo que, curiosamente, serão as ondas luminosas impressas em fotogramas iluminados em projecção (duplo mecanismo de luz, portanto), que configurarão a presença mais ausente de todas elas, a mais básica, a mais chã: a do escuro sem o qual nenhuma luz o era.
Film noir, bem dizia eu lá em cima. Saia uma Gilda para a mesa do canto, por favor!
uau!fiqeui sem palavras...inclusive daquelas escópicas e tudo mais. Assino embaixo.ponto.
lol. minha querida. (tu também me tinhas deixado sem palavras, aquelas desculpas todas foram só manobras de diversão para disfarçar a minha atrapalhação, tipo: ai e agora? ;-)
beijo bom, dorme bem.
Enviar um comentário