Desassossego - parte 6, a rodagem

Dia 26, 21h30, Grande Auditório de Gambelas

Com o apoio da Reitoria da Universidade do Algarve

FILME DO DESASSOSSEGO, de João Botelho

PRESENÇA DO REALIZADOR (mesmo!)

Preços: Sócios e Estudantes - 4€ / Restantes casos - 5€

Bilhetes já à venda (sede ao lado da Zara, 2ªf, 3ªf e 4ªf, 10h30-12h30 / 14h30-17h30, e sessões IPJ às 2ªf 21h30)


Às 18h, no Clube Farense, encontro com Richard Zenith e João Botelho. Organização da UAlg. Entrada livre.



RODAGEM
Desassossego: s. M. 1. Inquietação. 2. perturbação de ânimo. Assim é explicada a palavra pelo dicionário. Mas o desassossego é mais do que isso. Quem o diz é João Botelho, que passados quase trinta anos após Conversa Acabada (um filme sobre Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro), volta a mergulhar no universo pessoano. Tem pela frente a difícil tarefa de adaptar uma obra considerada um verdadeiro puzzle em aberto. Bernardo Soares, semi-heterónimo do poeta e escritor Fernando Pessoa, assina Livro do Desassossego. Anos mais tarde, João Botelho transporta esta história fragmentada para o cinema. O desafio é arriscado, mas seguramente o mais aliciante da carreira do realizador.

Passam poucos minutos depois das 23 horas. Chuva e vento fustigam o Terreiro do Paço, em Lisboa. Ao fundo, debaixo das arcadas, do lado esquerdo, uma vasta equipa de produção prepara o décor para que seja filmada mais uma cena de Filme do Desassossego. De cigarro na mão, João Botelho gesticula por entre os figurantes que participam nesta cena. O cinema em Portugal é muito precário e, portanto, quando se faz, deve-se fazer arriscado. (...) é um livro quase impossível de adaptar, vou correr um risco, afirma mais tarde quando gentilmente nos cede alguns minutos de entrevista antes de iniciar as filmagens dessa noite. Foram necessários cerca de dois anos a João Botelho para escolher os textos e compor o argumento baseado na obra mais conhecida, e traduzida para 37 línguas, de Fernando Pessoa. Tira o maço de cigarros do bolso, fica com eles na mão e esclarece: É evidente que isto não é o livro (...) do desassossego chama-se Filme do Desassossego e é um bocadinho do livro, mas é a minha adaptação (...). O livro é o limite do isolamento e espero que o filme também o seja. Apesar da profunda complexidade do texto de Livro do Desassossego, João Botelho encontrou três grandes indicações cinematográficas que o levaram a acreditar nas possibilidades desta adaptação: Em primeiro lugar, a luz é aqui muito importante. A luz que ilumina o face dos santos deve iluminar os sapatos dos homens comuns. Depois, o distorção do tempo: o tempo no cinema é como nos sonhos, nunca é o tempo real. E a terceira é que o Livro do Desassossego é feito para ser lido em voz alta. Detalhes visuais que levaram o realizador, nascido em Lamego, a acreditar na possibilidade desta adaptação. Não se considera um argumentista na verdadeira acessão da palavra, mas um ladrão de histórias: Acho que os realizadores roubam de todo o lado, são vampiros das outras coisas e eu roubei, a história do livro de uma certa maneira. (..). O texto do livro é maravilhoso, não é sobre o sonho, mas sim sobre a teoria dos sonhos, mas é sobretudo um texto sobre a língua portuguesa.

Esta nova incursão de Botelho ao universo de Pessoa deve-se ao enorme apreço que o realizador nutre pela escrita do autor modernista. Acende um cigarro e diz: Primeiro é uma defesa de um dos grandes textos da Literatura Portuguesa, se calhar o maior texto escrito no século XX (...) Preocupei-me muito com o texto, em ser fiel, em não perder uma palavra, uma sílaba, uma vírgula e em musicá-lo bem. E segundo é dizer que o texto não caiu do céu, caiu das preocupações individuais das pessoas e tem a ver com as pessoas hoje. Preocupações de ontem idênticas às de hoje. Problemas que assombram o quotidiano das pessoas, cada vez mais isoladas numa redoma chamada solidão. Apaixonado pelo próprio país, Botelho consegue com este filme realizar outro desejo antigo, o de filmar Lisboa. Uma homenagem que presta à cidade que diz amar. Nunca filmei um filme inteiro em Lisboa (...) e hoje estou a filmar finalmente o coração de Lisboa, no Terreiro do Paço, diz, esboçando um largo sorriso e soltando urna gargalhada. E é no Terreiro do Paço que se juntam mais de duas dezenas de figurantes para ouvirem as marcações do realizador. Um vento forte e gelado continua a soprar velozmente. mas a chuva parou. A cena que se filma é a recriação de uma sopa dos pobres. Por entre as dezenas de figurantes, habituados a trabalhar em cinema e contratados para esta cena, alguns são verdadeiros sem-abrigo da cidade de Lisboa. Passaram o dia com a equipa, jantaram com eles e partilharam histórias de vida. Receberam um cachet pela participação nesta produção nacional, onde a distância entre realidade e ficção ficou assim encurtada. Filme do Desassossego conta a história de três dias e três noites na vida de Bernardo Soares, personagem fictícia, sobre quem o realizador tem uma opinião que diverge de muitos especialistas: Bernardo Soares é quase igual a Pessoa, é quase um anagrama. Não é um heterónimo, ao contrário do que as pessoas pensam. Tem o mesmo tipo de profissão, o mesmo tipo de vida, o mesmo isolamento. Similares em quase tudo, como explica Botelho, diferem, no entanto, na escrita. Enquanto que Fernando Pessoa escreve versos, o semi-heterónimo expressa-se em prosa poética.
Para interpretar o papel de Bernardo Soares, a figura central deste drama, o realizador escolheu Cláudio da Silva. Com pouco mais de 30 anos, este actor é essencialmente conhecido pelos seus desempenhos no teatro. João Botelho acende outro cigarro e entusiasma-se ao falar do actor: Vi o Cláudio numa peça chamada Tanto Amor Desperdiçado, de Shahespeare. E achei-o incrível (...), é uma pessoa fora do vulgar e tem uma capacidade enorme de transportar, para a face, a imagem de um interior. Não sei o que ele pensa, mas o que ele diz faz-nos pensar quinhentas coisas que estão lá dentro.
Com um olhar profundo e misterioso, de quem abandona por instantes e para uma breve entrevista a personagem que habita por estes dias, Cláudio da Silva confessa-nos que a preparação desta personagem não diferiu muito do método que utiliza no teatro: Trabalha-se como normalmente se trabalha um personagem de teatro. Estuda-se o pape, lêem-se os livros que forem precisos e está-se atento às coisas que acontecem na nossa vida. Vai-se ouvindo o que as outras pessoas têm para dizer sobre o papel. recolhendo esse tipo de informação, para ir compondo a coisa. Enquanto apaga o cigarro, Botelho acrescenta: É um actor magnífico e grandioso (...) e depois tem uma coisa fantástica que é: não pestaneja. Acho que o cinema são os olhos. O olhar de um actor que dá vida a um homem complexo que toma nota dos próprios pensamentos fragmentados. Esta é uma história sobre a solidão e o desespero dos dias que correm, sobre o desassossego. De repente. Cláudio da Silva joga a mão ao bolso do casaco. Procura pelo caderno onde vai anotando pensamentos e ideias. Li uma vez uma coisa interessante a respeito disso... Continua a procurar no caderno. Encontra finalmente o que procura e lê: É o movimento do mistério. A pergunta era sobre o significado da palavra desassossego. A produção chama pelo actor principal do filme. Vão ensaiar a cena completa. Antes de se despedir, Cláudio reforça ainda: Sinto uma responsabilidade enorme pela importância que o livro tem e por trabalhar com o João, pela confiança que me foi oferecida. Para além de Cláudio da Silva, o filme conta ainda com um elenco composto por mais de 40 actores, entre os quais Margarida Vila-Nova, António Pedro Cerdeira, Rui Morrison, Ana Moreira, Suzana Borges, André Gomes, escolhas recorrentes nos filmes do realizador português.

Para o filme, serviu de ajuda preciosa à equipa de produção um protocolo assinado entre o realizador e a Câmara Municipal de Lisboa. O filme é caro, tem muita gente, muitos décors, é caro para Portugal e barato para o mundo. (...) Portanto, sugeri um protocolo. Fiz um documentário sobre Lisboa e Pessoa (...) e, em contrapartida. a câmara ajudou-nos, cedeu locais e autorizações para filmar e algum dinheiro para fazer o filme, explica o realizador. Os Lugares de Pessoa é o nome do documentário que se encontra já totalmente pronto e editado. Será lançado em Abril, para ser utilizado pela autarquia em acções de promoção. Produzido pela Ar de Filmes, Filme do Desassossego tem estreia marcada para o final do Verão. Um filme que brinca com os contrastes da história fragmentada de um homem solitário.

Paula Campos, Première, Abril 2010

Sem comentários: