Um homem irrequieto, dois miúdos reguilas e uma cidade acordada. De olhos bem abertos para a Nova Iorque de Vão-me Buscar Alecrim, o filme autobiográfico dos Irmãos Safdie.
Chuck Katz escreveu um livro com itinerários cinéfilos pelas ruas de Nova-Iorque. Já teve várias edições e é um deleite para os amantes de cinema que vistam a cidade. Através dele pode-se saber qual a conduta de metro que levantou as saias a Marylin Monroe, o bar em que Tom Cruise fazia os cocktails de Cocktail ou a praça em que Edward Norton cantou apaixonadamente para Drew Barrymore no musical de Woody Allen Toda a Gente diz que te amo. São páginas e páginas de referências de uma cidade que todos conhecemos dos filmes, mas que nunca vemos da mesma maneira. Apesar de tudo o que já foi feito, os irmãos Safdie, realizadores de Vão-me buscar Alecrim, descobrem um novo ângulo, que não é mais do que uma visão pessoalíssima da Nova Iorque que os viu crescer.
Vão-me buscar Alecrim ganhou o prémio principal da última edição do Indie Lisboa. É uma homenagem ao pai e à própria cidade, com fortes traços autobiográficos. Esclareça-se: aqueles dois irmãos reguilas, interpretados por Serge e Frey Ranaldo (filhos de Lee Ranaldo dos Sonic Youth), não são mais do que os próprios realizadores. E muito do que o filme mostra aconteceu-lhes mesmo.
De certa forma, é uma história de amor paternal, de um pai que se confunde com um irmão mais velho, numa paixão assolapada, imatura mas consistente pelos filhos. Tal faz com que o seu amor nunca seja posto em causa, mesmo quando, de forma imprudente ou negligente, põe a vida das crianças em risco, através do uso imponderado de soporíferos. Perdoamos imediatamente aquele pai, assim como os próprios filhos o fazem ao realizarem este carinhoso filme. Até porque, muito provavelmente, também o pai, que era projeccionista, influenciou as suas vocações.
A admiração por John Cassavetes é evidente. Logo no início, a câmara, aparentemente distraída, encontra, como por acaso, um homem, que acaba por ser o protagonista. Depois de comprar um cachorro quente, salta uma vedação do Central Park e tropeça, deixando cair a salsicha e tudo o resto. Ri-se sozinho, como se fosse um tolo. E assim fica retratada a personagem brilhantemente interpretada por Ronald Bronstein, um grande actor que nem sequer actor é (os irmãos Safdie levaram o espírito independente ao extremo de convidar o seu editor de imagem para actor principal). Percebemos que Lenny está apenas feliz porque chegou a altura do ano em que fica com os filhos.
Aquela vedação do Central Park, em que ele tropeça, é o que o separa da zona fina de Upper Manhatan, onde os filhos vivem tranquilamente com a mãe. Os miúdos são uns traquinas, capazes das maiores tropelias, como carregarem uma bisnaga de urina e disparem contra o babysitter. Mas o pai não lhes fica a trás, com o seu carácter hiperactivo, acriançado, irresponsável. Mostra uma envolvência física e emocional com os filhos, como um leão com as suas crias.
Assim é transmitida uma sensação de felicidade louca e espontânea, como de uma paixão, apesar de os resgatar de uma casa luxuosa, para um apartamento minúsculo da zona baixa da cidade, provavelmente Greenwich Village ou Soho.
A personagem, tal como nós, não se conforma com o fim daqueles dias, num tempo em que a custodia era mal dividida entre divorciados. E, mais uma vez, aceitamos o que o que aparentemente é condenável: o pai, que serve para quase tudo menos para ser pai, rapta os filhos, e parte, de frigorífico às costas, com as crianças debaixo dos braços, no esplendoroso teleférico de Roosevelt Island. E até acreditamos que a viagem não acaba logo ali, do outro lado do rio, mas apenas numa nuvem dos céus de Manhattan.
.
Manuel Halpern, Visão
Na edição de Junho de 2010 dos "Cahlers du Chiéma", Benny Safdie, o mais novo dos cineastas e irmãos nova-Iorquinos que assinam esta estreia, foi convidado a escrever um texto sobre o lançamento em DVD de "Hi Mom!" (1970), filme mítico de Brian De Palma, com Robert De Niro. Talvez esta seja uma estranha forma de começar a falar de um filme, mas muito do mistério de "Vão-me Buscar Alecrim" (o título português ficou com imensa piada) resumiu-o Benny nesse texto. Afirma ele: "É o lado completamente frenético da narrativa que torna o filme tão excitante e divertido," Mais tarde: "Do início ao fim, o filme adapta o estilo do documentário (...) a interpretação torna-se muito realista e sentimo-nos imergir noutro mundo: suspendi a respiração ao ver tudo aquilo decorrer, como se fosse em direto, pois não sabemos mais onde a realidade se encontra," Ora, não pode haver melhor convite para entrar em "Vão-me Buscar Alecrim" do que aquelas palavras: é que Benny escreveu (sobre De Palma) do mesmo modo que os dois irmãos filmam. E o que eles filmam vem da urgência do momento, do improviso, por vezes da total confusão. Decorre tudo tão depressa que jamais há tempo para fazer uma pausa - mas só um planeamento engenhoso consegue garantir o triunfo deste efeito. Em 2008, Josh foi notado em Cannes, na Quinzena, com a longa-metragem "The Pleasure of Being Robbed". Os dois Irmãos já tinham assinado algumas curtas. À Quinzena voltaram, em 2009, com este (co-assinado) "Vão-me Buscar Alecrim". E, no passado mês de abril, o filme estreou finalmente em Portugal, no IndieLisboa, vencendo o prémio máximo. Agora, sim, entramos no 'alecrim', para falar do seu herói, espécie de 'pai-coragem', trintão gasto e de cabelo grisalho, divorciado, doido varrido, com vida desregrada... Chama-se Lenny (extraordinário papel de Ronny Bronstein, realizador de um filme inédito em Portugal de que gostamos muito: "Frownland"), vive sozinho e, durante duas semanas, apenas duas num ano inteiro, ele tem direito a ficar com a guarda dos seus dois filhos menores, dois rapazes. Mas Lenny é tudo menos responsável. É uma criança grande. Os dois miúdos são uma figuração dos próprios Safdie, que fazem aqui o retrato do seu pai. E o trio mete-se invariavelmente em sarilhos. Mas "Vão-me Buscar Alecrim" ultrapassa em muito o tom da autobiografia: é que aquele 'pai vagabundo' vai viver cada segundo das duas semanas com os filhos como se fosse o último. No gesto, reinventa-se uma paternidade nova, contraditória, polémica nas ruas, febris de uma Nova Iorque que Jamais foi filmada assim. A improvisação nunca tomba na caricatura, numa figura de estilo: ela é o próprio assunto do filme, a sua natureza mais absurda, emotiva e assustadora - até chegarmos à tal imersão de que falava Benny, uma imersão que deixa a story contagiar-se tanto pelo real como pelo lado mais fantástico do quotidiano que a rodeia. Sublime. Que o filme encontre entre nós o culto que merece.
Manuel Halpern, Visão
Na edição de Junho de 2010 dos "Cahlers du Chiéma", Benny Safdie, o mais novo dos cineastas e irmãos nova-Iorquinos que assinam esta estreia, foi convidado a escrever um texto sobre o lançamento em DVD de "Hi Mom!" (1970), filme mítico de Brian De Palma, com Robert De Niro. Talvez esta seja uma estranha forma de começar a falar de um filme, mas muito do mistério de "Vão-me Buscar Alecrim" (o título português ficou com imensa piada) resumiu-o Benny nesse texto. Afirma ele: "É o lado completamente frenético da narrativa que torna o filme tão excitante e divertido," Mais tarde: "Do início ao fim, o filme adapta o estilo do documentário (...) a interpretação torna-se muito realista e sentimo-nos imergir noutro mundo: suspendi a respiração ao ver tudo aquilo decorrer, como se fosse em direto, pois não sabemos mais onde a realidade se encontra," Ora, não pode haver melhor convite para entrar em "Vão-me Buscar Alecrim" do que aquelas palavras: é que Benny escreveu (sobre De Palma) do mesmo modo que os dois irmãos filmam. E o que eles filmam vem da urgência do momento, do improviso, por vezes da total confusão. Decorre tudo tão depressa que jamais há tempo para fazer uma pausa - mas só um planeamento engenhoso consegue garantir o triunfo deste efeito. Em 2008, Josh foi notado em Cannes, na Quinzena, com a longa-metragem "The Pleasure of Being Robbed". Os dois Irmãos já tinham assinado algumas curtas. À Quinzena voltaram, em 2009, com este (co-assinado) "Vão-me Buscar Alecrim". E, no passado mês de abril, o filme estreou finalmente em Portugal, no IndieLisboa, vencendo o prémio máximo. Agora, sim, entramos no 'alecrim', para falar do seu herói, espécie de 'pai-coragem', trintão gasto e de cabelo grisalho, divorciado, doido varrido, com vida desregrada... Chama-se Lenny (extraordinário papel de Ronny Bronstein, realizador de um filme inédito em Portugal de que gostamos muito: "Frownland"), vive sozinho e, durante duas semanas, apenas duas num ano inteiro, ele tem direito a ficar com a guarda dos seus dois filhos menores, dois rapazes. Mas Lenny é tudo menos responsável. É uma criança grande. Os dois miúdos são uma figuração dos próprios Safdie, que fazem aqui o retrato do seu pai. E o trio mete-se invariavelmente em sarilhos. Mas "Vão-me Buscar Alecrim" ultrapassa em muito o tom da autobiografia: é que aquele 'pai vagabundo' vai viver cada segundo das duas semanas com os filhos como se fosse o último. No gesto, reinventa-se uma paternidade nova, contraditória, polémica nas ruas, febris de uma Nova Iorque que Jamais foi filmada assim. A improvisação nunca tomba na caricatura, numa figura de estilo: ela é o próprio assunto do filme, a sua natureza mais absurda, emotiva e assustadora - até chegarmos à tal imersão de que falava Benny, uma imersão que deixa a story contagiar-se tanto pelo real como pelo lado mais fantástico do quotidiano que a rodeia. Sublime. Que o filme encontre entre nós o culto que merece.
No cinema actual (americano, mas para além dele) não deve haver coisa mais estereotipada do que o olhar sobre a infância, sobre as crianças, sobre as relações entre pais e filhos pequenos. Neste panorama, é refrescante encontrar um filme que, como "Vão-me Buscar Alecrim", seja capaz de filmar a história (disfuncional) de um pai divorciado (um "pai solteiro") e dos seus dois filhos desta maneira: caos total, a linha da irresponsabilidade cruzada mais do que uma vez, e no entanto... E no entanto, a relação entre aqueles três exala uma autenticidade sentimental comovente, uma espécie de felicidade acossada menos pelos sucessivos desastres do que pela maneira condenatória como o mundo (os "outros") olha para os desastres. Quer dizer, "Vão-me Buscar Alecrim" é a história de um "pai-herói", mas cuja heroicidade só é (só será, um dia) reconhecida pelos filhos. Toda a gente, todos os adultos, dos professores da escola à mãe das crianças, vê naquele homem apenas um irresponsável eventualmente perigoso; mas aqueles dois miúdos, Sage e Frey, quando crescerem, farão muito provavelmente um filme sobre o pai (que até é projeccionista e lhes mostra filmes, em película e tudo). Assim o fizeram, pelo menos, Joshua e Benny Safdie, dois nova-iorquinos de vinte e poucos anos: "Vão-me Buscar Alecrim" é a autobiográfica homenagem ao pai de ambos.
Podemos acreditar facilmente nesta Manhattan de "hot-dogs" e jardins, apartamentos atravancados, tascas e lojinhas - podemos acreditar que é nesta Manhattan que as pessoas, de facto vivem. Há uma cena em que se evoca directamente aquela célebre foto a preto-e-branco de Weegee com os miúdos a tomarem banho de mangueira na rua (a mesma foto que, no "Padrinho", Coppola também "reconstituiu", e pouco importa que ela tenha sido tirada, salvo erro, em Brooklyn), o que faz todo o sentido porque é a "rua", em sentido lato, que os Safdie querem filmar. E, no entanto, reconhecendo embora a pertinência do enquadramento de "Vão-me Buscar Alecrim" na nobre linhagem do "realismo independente nova-iorquino" (Cassavetes ''et al''), os outros emparceiramentos que o filme dos Safdie nos sugere estão um pouco longe de Manhattan: aquele belo filme do georgiano Otar Iosseliani, "Era uma vez um Melro Cantor", e o seu protagonista, sobre-comprometido como o pai dos Safdie, a lutar contra o tempo e contra o espaço para conseguir estar aonde tem de estar à hora a que tem de estar, o seu voluntarismo e entusiasmo sempre a jogarem contra ele; e, claro, o sítio de onde têm vindo sistematicamente os mais espantosos e "irregulares" retratos da infância e da família, o Irão: reparem na maneira como os Safdie conseguem criar um sentimento de angústia profunda a partir dos mais anódinos acontecimentos domésticos e, num ápice, dar o salto para o acontecimento extraordinário e extraordinariamente angustiante (toda a sequência, semi-absurda, com os miúdos adormecidos por um excesso de sedativos, é "cinema iraniano made in Manhatan", e não o dizemos com nenhuma espécie de provocação).
Longe de Manhattan: o plano final, supra-sumo da melancolia desafectada com que os Safdie filmam esta história, sugere que talvez do outro lado do rio, não muito longe mas suficientemente longe dali, o pai e os dois filhos encontrem o que lhes falta, o tempo e o espaço.
.
Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
Ponte para a infância de Josh e Ben Safdie (inclui declarações dos realizadores)
Luís Miguel Oliveira, Ípsilon
Ponte para a infância de Josh e Ben Safdie (inclui declarações dos realizadores)
Dois irmãos, o caos na infância e a necessidade de catarse. Dois cineastas, o filme do trauma e uma transbordante fantasia. Que nos rapta. Uma das estreias do ano: "Vão-me buscar alecrim"/"Go get some rosemary". Em busca da infância perdida de Joshua e Ben Safdie com a ponte Queensboro em fundo
Joshua e Ben Safdie fizeram a educação sexual na Queensboro Bridge com o carro do pai imobilizado no trânsito e as bujardas de Howard Stern na rádio. Os nova-iorquinos exasperavam com as filas no único acesso grátis a Manhattan e desenvolveram uma relação de ódio com a ponte. Mas Paul Simon, por exemplo, gostava e fez-lhe uma serenata em andamento : é ouvir "The 59th Street Bridge Song (Feelin'Groovy)" do álbum "Parsley, Sage, Rosemary and Thyme", de Simon & Garfunkel, 1966. Joshua e Ben passaram a infância ali. A entrarem e saírem de Manhattan. Por baixo da Queensboro, um Grand Canyon de asfalto - a Primeira Avenida -, o East River, Roosevelt Island e o subúrbio onde eles viviam, Queens. Por cima, um teleférico vermelho.
Joshua: "Todos aqueles cabos, e no entanto um elemento de leveza. A liberdade que aquelas pessoas que vão no teleférico têm. Como uma espécie de fuga. Tudo parece pesado, e no entanto quando o teleférico levanta...".
Joshua e Ben perguntavam-se quando eram crianças: para onde iam aquelas pessoas?
Passaram 15 anos, o teleférico já não levanta - obras de remodelação só voltam a pôr a funcionar o meio de transporte para Roosevelt Island em Setembro - mas os irmãos contemplam, numa manhã de Junho com temperatura de Agosto, o cenário onde filmaram a sequência final da sua longa-metragem "Vão-me buscar alecrim"/"Go get some rosemary". Contemplam um pedaço da memória, e a verdade é que a sequência do filme experimenta-se como uma epifania.
Quando embarcam no apelo "triunfante" daquela hipótese de fuga de Manhattan, os Safdie estão a referir-se a um momento no filme em que um pai divorciado, Lenny, misto de mágico, aldrabão e disfuncional compulsivo (profissão: projeccionista), encontra finalmente um acordo no seu tempo e no tempo dos seus dois filhos. Como se só a bordo do teleférico, no ar, afastado da terra, os conseguisse raptar ao caos que ele próprio cria. É uma vitória mas também é uma derrota.
Eles são Lenny (Ronald Bronstein) e Sage e Frey (na vida real filhos de Lee Ranaldo dos Sonic Youth) e estão, obviamente, no lugar de Alberto, o pai, e dos irmãos Joshua e Ben. Que são também filhos de um casamento que cedo acabou. O pai não era projeccionista mas filmou obsessivamente a infância dos filhos. Quando lhes quis explicar o que tinha sido a vida familiar, encurtou o discurso e deu-lhes como exemplo a batalha entre Dustin Hoffman e Meryl Streep pela posse do filho em "Kramer contra Kramer", o filme de Robert Benton. E um dia depositou-lhes nas mãos as centenas de horas de imagens deles. Portanto, para Joshua e Ben, a vida vive-se para ser documentada. Portanto o cinema tinha de ser o legado. E tinha de ser biografia.
Sabem que são filhos do trauma. Há anos que os amigos lhes dizem que a sua infância dava um filme e que deviam fazê-lo. Esse pode ser um lugar-comum, mas no caso deles ganha mesmo sinais de vida - cinematográfica.
Quando, em "Vão-me buscar alecrim", filmam Lenny a pôr os filhos "K.O.", a dormir com comprimidos, para os miúdos não se assustarem com a sua ausência porque teve de substituir um colega na cabine de projecção, Joshua e Ben até podiam esperar que os espectadores do filme se dividissem. Mas não esperavam reacções tão "politicamente correctas" de alguma imprensa americana que os vê como vítimas de abuso.
Joshua: "Percebemos que aquela cena podia ser um ponto de viragem, mas estávamos sobretudo preocupados com o que aquilo significava para nós e não para a sociedade americana."
Talvez pressentindo o pudor do jornalista em explicitar a pergunta ("o vosso pai drogava-vos com comprimidos?"), Joshua antecipa-se: "Aquela cena está no lugar de outros dramas que nos aconteceram. Mas a verdade é que a relação das pessoas com a infância é culturalmente grosseira. Pelo menos na sociedade americana. As excessivas precauções repugnam-me. Interessa-me quando as crianças são tratadas como outras pessoas."
Joshua e Ben não (se) olham como vítimas. O que aprenderam com Alberto - e o que os filhos de Lenny provavelmente aprenderão com o pai de "Vão-me buscar alecrim", embora nunca se vá saber como essa história vai acabar... - é que o caos e a disfunção podem ser uma explosão de fantasia. "Vão-me buscar alecrim" começa por parecer um estudo de personagem e de cidade, tem momentos de "screwball comedy" crispada, mas é permeável pelo fantástico e pela ficção científica, como uma energia intrusiva que corrói o edifício por vários lados (há por lá um insecto gigante, como um urso polar se cruzava no "road movie" de uma cleptomaníaca em "The Pleasure of Being Robbed", obra a solo de Joshua, de 2008).
É como um assalto. E quem é assaltado é o espectador, sem possibilidade de se acostumar a um registo, ficando ao sabor angustiante da desordem de Lenny. A necessitar de um momento de descarga, a sequência final no teleférico. O Ípsilon marcou encontro com os Safdie no local do crime, Rua 59, Manhattan. O momento em que uma ficção termina em ascensão foi o início dos Safdie como cineastas tal como os conhecemos hoje, autores de longas, curtas e curtíssimas metragens.
Joshua: "Somos filhos desta personagem, que está dentro de nós. Este filme foi a forma de entendermos que há mais de uma década andamos a estudar o comportamento dele. Mas também somos uma espécie de pai dele. O nosso pai tem hoje 50 anos mas não vamos ter com ele para pedir conselhos. Ele é que vem ter connosco para nos pedir conselhos. A minha mãe e o meu pai já viram o filme. Ele umas oito vezes. Ela, que não vive com ele já há uns 20 anos, não tem memória dele por isso para todos os efeitos, o Lenny do filme é a cara do meu pai. E claro, acha que o filme é uma 'carta de ódio' ao ex-marido. Ele, pelo contrário, acha que os seus defeitos são as suas qualidades. O facto de cada um ver o filme a partir da sua própria realidade faz sentido para nós."
O estudo da personagem continuará, porque a próxima longa que os irmãos estão a escrever, "Uncut gems", passa-se no mundo da indústria da joalharia, "ali para a Rua 47". A escolha pode parecer uma guinada depois de "Vão-me buscar alecrim", mas o cinema continua ancorado no pai: os anos em que ele trabalhou no mundo "obscuro" das jóias.
Joshua: "Benny e eu andávamos a precisar disto, e a única forma de fazermos a catarse da nossa infância, para sabermos como foram os nossos primeiros 11 anos de vida, era ficcioná-la. Há uma razão para os gregos terem inventado o teatro. Recriar apenas a nossa infância não tem interesse, é mais interessante como a vivemos. Por isso, é como quando contamos a alguém um sonho: temos que acrescentar sempre um ponto para tornar a coisa mais interessante."
E os dois olham para os cartazes que anunciam o novo teleférico remodelado que vai surgir em Setembro. Já não vai ser como antes.
Ben: "Este filme mostra pela última vez o teleférico tal como era. Lá vão outra vez dizer que 'Vão-me buscar alecrim' é um filme de época."
O teatro de uma cidade
É verdade que a pergunta surge insistente: em que época se passa "Vão-me buscar alecrim"?. Há quem jure que esta Nova Iorque suja só existiu assim no cinema americano dos anos 70 e que estas personagens, Lenny sobretudo, estão sob influência, como nos filmes de John Cassavetes. Menciona-se o nome e Joshua e Ben ameaçam revirar os olhos. Dizem eles que antes de se falar de Cassavetes tem que se falar de "Ladrões de Bicicletas" de Vittorio de Sica (1948) ou de "Bleak Moments" de Mike Leigh (1971). Mas se calhar nem se deve começar pelo cinema.
Joshua: "Nunca a referência a filmes foi um tema nas nossas conversas. E na verdade não tínhamos visto nenhum filme de John Cassavetes antes de fazermos este."
Ben: "Não é verdade. Tínhamos visto 'Uma Mulher sob Influência'. E não te esqueças que tínhamos um professor na universidade de Boston, Ray Carney, que escreveu um livro sobre Cassavetes e sobre a natureza maníaca das personagens dele. Essa natureza corresponde a um certo modo de vida que tem a ver com Lenny. Mas, se se reparar, Cassavetes estava demoradamente com as suas personagens, até à exaustão, e nós obrigamos o espectador a saltar de situação em situação, quase que o frustrando."
Joshua: "Sim, não é possível sintetizar as coisas no nome Cassavetes. Se tem que se falar de filmes que estiveram antes deste, então temos de falar de 'Milestones' de Robert Kramer [1975]."
O nome de Cassavetes pode parecer incontornável, mas novas visões do filme mudam a forma de engavetar "Vão-me buscar alecrim". Isso e entrar em www.redbucketfilms.com, o sítio em que os irmãos apresentam as várias plataformas do trabalho da sua produtora, Red Bucket Films, que partilham com três amigos e colegas da universidade de Boston. É uma associação de gostos e impulsos individuais mas disponíveis para a solidariedade: quando um deles precisa, os outros põem-se ao serviço do projecto alheio com a função que for necessária. E a experiência com a ficção não se fica só pelos filmes, estende-se aos livros, fanzines e ambiciona chegar ao museu, expondo os objectos que vão coleccionando no seu périplo pelas cidades - como Lisboa, por exemplo, onde estiveram a apresentar o filme no IndieLisboa deste ano e a receber o prémio principal do festival. O "twist" é que nesse mostruário de objectos, histórias e filmes, o verdadeiro está misturado com o falso, o documental com o ficcional.
Mas entre-se em www.redbucketfilms.com, veja-se a série "Buttons", instantâneos, alguns só duram segundos, de Nova Iorque que Joshua e Ben roubam à cidade com as suas câmaras digitais. Ou então as curtas em que Nova Iorque e arredores surgem transfigurados, habitando um tempo que não é imediatamente reconhecível, e entre o burlesco (a presença "keatoniana" de Ben como actor) e o onírico, levando o espectador a querer insistentemente datá-lo. Isto para dizer que, afinal, é menos o cinema e mais a relação com a cidade que está na base daquilo que os Safdie fazem. Temos por isso que confessar que esperávamos encontrar na Rua 59 dois rapazes a verem o mundo avidamente com as suas câmaras digitais, como se só elas provassem que "aquilo" aconteceu, mas afinal quem apareceu foram dois exemplares de uma outra vertigem, proustiana, à moda de Manhattan.
Joshua: "Se nos encontrasse há um ano era assim que nos veria, mas depois começou a tornar-se um problema. Estávamos a viver experiências apenas para as registar, apenas pelo dispositivo. Resolvemos suspender isso. Estamos agora a enveredar por uma abordagem mais interior, de recriação. Mas é verdade que há um ano poucas pessoas andavam com as suas câmaras digitais e hoje é o que toda a gente faz. E, sim, são as coisas que vemos nas ruas de Nova Iorque que estão na origem de algumas das cenas dos nossos filmes." Josh resume: "The theatrics of the city."
Mas então "Vão-me buscar alecrim" é passado ou é presente? Por que é que anda por lá Abel Ferrara (um "cameo") a falar em Bill Withers, singer songwritter dos 70s? É tudo hoje, "agora", mas como Ben se encarrega de explicar, isso também é tudo "passado".
Ben: "Queremos sempre desesperadamente captar o agora, mas nunca conseguimos porque a partir do momento em que o filmamos é sempre passado, estamos sempre a olhar para trás. Mas é um passado lembrado no presente, não é o passado pelo passado. É a memória de coisas que passaram. Pode datar-se a memória? Eu diria que a nossa Nova Iorque é intemporal."
Era disso que falávamos, Proust em Manhattan - Ben fala menos, embora compense o maior voluntarismo dicursivo do irmão com uma disponibilidade no olhar que é transbordante e com uma capacidade de síntese que ilumina o que Josh acabou de dizer; a sintonia, de resto, é de siameses, assim como a pulsão para a pantomima.
Sobre Ferrara e Bill Withers, Joshua explica então que deram ao realizador, tornado aqui actor, uma série de discos que ele era suposto andar a vender na rua, numa sequência do filme. E foi Ferrara que escolheu o singer-songwriter negro dos anos 70 no meio dos discos "modernos" que a produção pôs à sua disposição. Não houve nenhum preciosismo ou calculismo de época.
Ferrara, para Joshua, é uma personagem perfeita para aquilo que ele chama "the theatrics of the city". Conheceu-o, quando tinha 18 anos, de uma forma que deverá ser muito nova-iorquina: Ferrara era vizinho de um amigo dos irmãos Safdie, e do apartamento onde morava muito barulho antecipava invariavelmente "uma porta que se abria e alguém que era atirado pelas escadas abaixo".
"Trabalhei depois numa loja de vídeo e ele era a única pessoa que estava autorizada a levar filmes grátis. Quantas vezes vi depois o Abel na rua à noite, e a chamar por mim [imita a voz rachada de Ferrara]: 'Josh, Josh, dá-me dinheiro.' Ele é o verdadeiro poeta da rua de Nova Iorque. Fazia sentido para nós que numa determinada cena do filme ele entrasse em contacto com Lenny."
Mais "teatro de uma cidade": "Outro dia vi um rapaz na rua com o som muito alto a sair de uma 'boombox' e a dançar e alguém pediu para ele baixar o som e ele respondeu: 'Fuck, I'm taking my city with me'. Esta cidade precisa da anarquia individual. A infelicidade adora companhia. Não quero que Nova Iorque seja um gigantesco Starbucks. Gosto de ter medo das pessoas na rua, se calhar porque isso me distrai dos meus problemas."
E o perigo espreita em Nova Iorque. Não um mosquito gigante não um urso polar, mas o irascível Dirty Harry transportado de São Francisco para Manhattan e disfarçado de papagaio. "Give me your finger and make my day!", mesmo numa esquina de acesso à Queensboro Bridge, é um íman que atrai Joshua e Ben Safdie. Dentro da loja de animais, asas abertas e "hellos" e "goodbyes" papagueados ao melhor estilo rachado de Abel Ferrara.
Isto é "Vão-me buscar alecrim".
.
Vasco Câmara, Público
Vasco Câmara, Público
Realização e Argumento: Josh & Benny Safdie
Interpretação: Ronnie Bronstien, Sage Ranaldo, Frey Ranaldo, Victor Puccio, Éleonore Hendricks,
Interpretação: Ronnie Bronstien, Sage Ranaldo, Frey Ranaldo, Victor Puccio, Éleonore Hendricks,
Sean Williams, Dakota Goldhor, Aren Topdjian, Aber Ferrara, Leah Singer, Salvie Sansone, Jake Braff
Direcção de Fotografia: Brett Jutkiewicz e Josh Safdie
Montagem: Josh & Benny Safdie, Brett Jutkiewicz
Origem: EUA/França
Ano de Estreia: 2009
Duração: 100’
Direcção de Fotografia: Brett Jutkiewicz e Josh Safdie
Montagem: Josh & Benny Safdie, Brett Jutkiewicz
Origem: EUA/França
Ano de Estreia: 2009
Duração: 100’
Sem comentários:
Enviar um comentário